Ficção e Educação
A humanidade por um fio em Relatos Selvagens
Através de seis episódios independentes, Relatos Selvagens apresenta uma sequência de histórias que se interligam


Leonardo Campos
No artigo Tensão social no novo cinema latino-americano, o pesquisador João Knijnik aponta que há uma constante nas produções contemporâneas, “com filmes que em seus roteiros, reivindicam um olhar diferenciado sobre as classes sociais e nos mostram as fissuras e desníveis do tecido social no século XXI”. Relatos Selvagens, de Damián Szifron é um desses casos, assim como o excepcional O Som ao Redor, de Kleber Mendonça Filho. Para o autor, esses filmes revelam a América Latina entre crítica, arte e catarse, tendo em vista direcionar um olhar irônico para as situações apresentadas. Assim, a linguagem cinematográfica e seu poder de representação ridicularizam as desigualdades sociais constantes, e, através de metáforas bem elaboradas, revelam doses generosas de críticas através de narrativas que flertam com a luta de classes e as disparidades históricas e sociais que compõem a nossa formação. Oriundo do mundo da televisão argentina desde 2002, com larga experiência em séries policiais e de teor cômico, o cineasta Damián Szifron, também responsável pelo roteiro, nos entrega seis histórias sobre pessoas em seus “dias de fúria”. Parte integrante do catálogo da El Deseo, fundada por Pedro Almodóvar e seu irmão mais novo, Agústin Almodóvar, o filme foi o maior sucesso de bilheteria dos argentinos em 2014, além do prestígio crítico ao redor do planeta.
Através de seis episódios independentes, Relatos Selvagens apresenta uma sequência de histórias que se interligam nas temáticas: vingança, raiva, frustração diante da falência das instituições e o desejo de justiça com as próprias mãos. O filme pode ser pensado como uma reflexão sobre o “absurdo que é viver”. Na época de seu lançamento, uma matéria tratava do filme e dizia que “se toda brincadeira tem um fundo de verdade, em Relatos Selvagens, ela ri de nossa cara”. É verdade: não há como não se identificar com ao menos uma das seis absurdas e tensas histórias apresentadas pelo filme. Com humor sofisticado e inteligente, o filme tem como vantagem apresentar temas complexos, mas tratá-los através de abordagens cotidianas, com a devida proximidade com o público, sendo alvo de várias interpretações para os mais diversos campos do saber. Conectadas por seus temas, as seis histórias antológicas tratam, de maneira geral, da selvageria, parte integrante do nosso cotidiano.
O primeiro episódio, um dos mais curtos, dá o tom da narrativa: planos em bastante movimento, design de produção cuidadoso, composição musical que, a depender da história, ironiza ou integra-se ao tom do que é abordado: um rapaz que, no passado, sofreu por conta de sua namorada que o traiu, seu psiquiatra pilantra, seus pais problemáticos, sua professora primária impaciente, um colega de sala de aula que o detratava e um crítico cultural que solapou a sua a carreira enquanto músico. Ele consegue reunir todos os desafetos em um voo, com destino que o leitor pode, de antemão, imaginar. A história, por sinal, é bastante polêmica, pois causou alvoroço midiático por conta de algo parecido ter ocorrido com um voo da empresa Germanwings. O copiloto, indivíduo com tendências suicidas no passado, arremessou o Airbus A 320 contra os Alpes Franceses, ceifando a vida de cerca de 150 pessoas. A tragédia abriu espaço para várias discussões, sendo duas delas a influência do cinema em atos da vida real e se de fato copiloto não teria tido acesso ao filme antes de tomar essa decisão.
O segundo episódio, intitulado “As ratazanas”, situa-se em um restaurante de beira de estrada numa noite chuvosa. Uma garçonete atende um homem da sua cidade, responsável pela ruína da sua família, graças a uma relação de agiotagem que acaba por trazer dor e angústia para seus entes queridos. Resultado: uma das cozinheiras sugere que ela o envenene, já que, além de ter uma questão do passado não resolvida, o tal cliente é candidato político das próximas eleições. Numa determinada cena, ele chama a garçonete e pergunta o que ela acha de duas fotos para a produção de material publicitário de sua campanha. Ela escolhe a de fundo vermelho, numa clara alusão ao seu desejo: vê-lo morto, não necessariamente pelo viés físico, mas pela morte da sua existência. O que ocorre é uma série de contratempos que no final, abre espaço para a violência física como punição, numa história que tem como pano de fundo a descrença das pessoas nas atitudes cidadãs e nos bons tratos, todos, como disse o mestre Almodóvar no título de um dos seus filmes mais conhecidos, “À beira de um ataque de nervos”.
O terceiro episódio, intitulado “O mais forte”, é a representação mais próxima do fio tênue que há entre a civilização e a barbárie. Nesta, tal como em quase todos os seis segmentos do filme, o “outro” é visto como diferente, jamais como um semelhante. Um sujeito bem de vida dirige por uma estrada longa e deserta, até que se depara com outro motorista, dono de um carro inferior, indivíduo que, aparentemente, atrapalha os seus planos de “voar” na estrada. Na ultrapassagem, abre a janela, ofende o outro motorista e segue adiante. O que ele não esperava era o pneu furar e dentro de instantes, o alvo da sua arrogância se aproximar e colocá-lo enclausurado dentro do próprio carro, sentindo-se ameaçado e acuado, numa postura bem diferente da anterior. O tal homem o faz sofrer longamente, com humilhações e agressões verbais e físicas que terminam de maneira extremamente trágica, mas com a pitada de ironia comum aos episódios anteriores.
O quarto episódio é curioso, pois, de todos, talvez seja um dos mais próximos da nossa realidade, visto que trata da descrença total no Estado. Um engenheiro é levado ao status de terrorista, depois de uma multa indevida. No dia do aniversário de uma das filhas, estaciona o carro diante de um acostamento que não possui sinalização alguma de proibição. O seu carro é levado pelo guincho; ele tenta reclamar, mas não consegue, sendo aconselhado a fazer uma denúncia formal em um setor público. Independente da razão, ele paga o valor para retirada e posteriormente, segue para casa, onde é recebido friamente pela esposa, mulher que o acusa de sempre se preocupar com o trabalho em detrimento da família. Ela pede o divórcio, todos entram em crise e, depois de ser multado mais uma vez, o homem perde o controle, comete um ato de justiça com as próprias mãos, é alçado ao posto de herói nacional pelas redes sociais e termina o episódio encarcerado, porém sentindo-se vingado. Sendo também representante de uma revanche inicialmente individual, acaba por se tornar um ato em nome de todas as pessoas que constantemente são obrigadas a enfrentar a burocracia desnecessária de setores públicos que deveriam resolver as nossas questões, mas ao invés disso, tornam tudo mais complicado do que já é, tamanha a incompetência na gestão de muitos desses espaços. Esse episódio nos leva a pensar qual é o papel da consciência: manter o controle dos nossos instintos e afastar os seres humanos da bestialidade ou se entregar ao momento e simpatizar com a violência e o gosto da vingança apresentado? Não há algo errado com este sistema?
O quinto episódio, mais soturno, é “A proposta”, parte da antologia que também não deixa de ser chocante, pois nos remete ao que Freud traz em um dos trechos de O mal-estar da civilização, ao apontar que “o poder revela o que há dentro do homem, o que já estava lá, expondo seu avesso”. Um jovem atropela por acidente uma mulher grávida durante o retorno de uma festa. Ao chegar em casa, desesperado, conta aos pais o que aconteceu. Quando a polícia começa as investigações, o patriarca milionário, seduzido pelas propostas do advogado da família, decide pedir ao jardineiro da mansão, homem que trabalha há dez anos no local, para assumir a culpa e responder ao processo, tendo como recompensa apoio financeiro para a família e um valor estipulado que ele não ganharia mesmo trabalhando lá pelo resto da sua vida. Esse trecho, bastante desolador, finalizado de maneira trágica, nos mostra de que modo as classes elitistas usam as classes inferiores para a promoção do próprio ego, como se fossem vampiros a sugar a vitalidade dos menos favorecidos.
Apesar da importância de todos os episódios anteriores, o sexto e último pode ser considerado como um dos melhores pela exposição de absurdos que, ao se delinearem como elementos ficcionais, revelam-se uma daquelas histórias da vida real que acontecem e tiram-nos do estado de normalidade. O episódio começa com uma animada festa de casamento. A música alta e a alegria das pessoas que dançam ao som de Titanium, de Sia e David Guetta, potencializam que, naquele local, há muita energia dispersada. Entretanto, após descobrir que na festa de seu casamento há a presença de uma amante recente de seu marido, a noiva surta e um espetáculo de absurdos, repleto de ironia e críticas a uma das maiores instituições da história da humanidade, o casamento, se estabelece, com o desfacelamento do que se convencionou chamar de família tradicional, sendo despedaçada diante do espectador, tal como o bolo de casamento, ícone do evento, que termina aos pedaços no chão. A letra da música de abertura do episódio é direta: “Você atira em mim, mas eu me levanto, sou à prova de balas”. A noiva, o noivo, a sogra, os convidados, todos entram num estado de transe e participam, provavelmente, da festa mais antológica de suas vidas.
Indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro e à Palma de Ouro de Cannes, o filme, de 122 minutos, é um exercício reflexivo sobre como nós estamos constantemente na trilha do colapso e da autodestruição, numa trama que trata com eficácia a descrença nas instituições e no “outro”. Conforme dito por Miguel Arroz, na Carta Capital, estamos diante de pessoas que acham que podem comprar tudo: a vítima que acredita ter o poder de comprar o destino de seus algozes; o agiota que achava que podia comprar a ruína de uma família; o motorista que acredita ter o poder de comprar a estrada para si; a prefeitura que lucra com a desumanização do contribuinte; os pais que pretendem negociar a liberdade do filho criminoso; e os noivos que compram a projeção da felicidade. Em suma, uma sociedade controversa e com todos os seus pontos nevrálgicos próximos a atingir o ponto máximo de seus limites.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
