Ciência, Cultura & Sociedade
Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio


Professor Leonardo Campos
O lançamento do novo capítulo da franquia Invocação do Mal veio para nos dizer algo que de certa maneira, já desconfiávamos: é hora do terror se reinventar. Gênero que atravessa diversas fases desde os primórdios do cinema, atualmente traz novidades pontuais que oxigenam o campo de produção, mas na maioria dos casos, demonstra o desgaste de fórmulas que talvez não funcione mais como anteriormente, haja vista o nosso atual cenário de multiplicidade de produtos para consumo, algo que gera maior número de opções para escolhermos o entretenimento que mais nos agrade. É uma era de concorrência mais ampla. Na ocasião de Invocação do Mal, em 2013, terror dirigido pelo virtuoso James Wan, tínhamos a retomada de uma temática, analisada sob novos vieses, mesmo que a estrutura narrativa permanecesse em relação aos padrões clássicos de possessão demoníaca e habitações assombradas por demais presenças sobrenaturais. Foi assim no bem-sucedido Invocação do Mal 2 e agora, no terceiro, com a mudança de direção, assumida pelo menos competente Michael Chaves, o rumo investigativo adotado pelo texto destoa das importantes limitações territoriais para o estabelecimento dos conflitos dramáticos, numa narrativa cheia prejudicada pela diluição de sutilezas, pela dispersão da tensão, além do apagamento de elementos que antes funcionavam bastante.
Sair do terreno das casas assombradas e brincar de detetive é uma proposta ousada. Quem vos escreve, por exemplo, não é simpático da resistência, do lugar comum, ao contrário, acredite que quando o assunto é arte, as limitações não devem fazer parte do processo. Se é preciso sair da rota e ousar, que faça, mas saibam contornar para entregar ao público algo à altura quando o assunto é uma franquia com dois filmes antecessores cuidadosamente escritos e dirigidos, diferente deste terceiro episódio, ilustrado no tópico seguinte com mais detalhes, uma produção que perde a oportunidade de ser ótima para se tornar algo apenas comum e passageiro. Antes de adentrar na análise específica do filme, explanarei para os leitores o caso escolhido desta vez. Em Invocação do Mal tivemos a maldição da família Person, em Invocação do Mal 2 fomos assustados por Bill Wilkins, os spin-offs exploraram o folclore mexicano com a Chorona, além dos três episódios da amaldiçoada Annabelle e a cinebiografia de Valak, A Freira. Desta vez, o foco é um polêmico caso de possessão que se tornou processo judicial no ano de 1981, em Connecticut, nos Estados Unidos. História transformada em livro por Gerald Brittle, escrita em parceria com Lorraine Warren, traz o primeiro caso estadunidense de defesa por questões sobrenaturais do tipo. Foi um assunto que fomentou o sensacionalismo da mídia e promoveu o que ficou conhecido por satanic panic, termo criado para definir a histeria coletiva que dominou a época.
A história é no mínimo curiosa. Arne Johnson foi levado ao Tribunal Superior de Connecticut por ter assassinado Alan Bono, tratador de cães em Brookfield, região que desconhecia registros de casos de violência deste nível. Tudo começou com uma discussão. Os ânimos estavam exaltados, o consumo de álcool ultrapassava os limites do considerado básico e num ato de fúria repentina, potencializado pelo mal-estar de Johnson, as facadas ceifaram a vida da vítima e o agressor foi encontrado pela polícia num raio de 3 km do local do crime, ensanguentado e catatônico. Debbie, namorado de Johnson, interpretada no filme por Sarah Catherine Hook, única testemunha do ato, manteve-se ao lado do companheiro durante todo o processo, tendo inclusive se casado com ele ainda na prisão. A convicção diante da sua inocência veio por causa de acontecimentos anteriores entre eles e a família da moça.
Alguns meses antes, Lorraine e Ed tinham sido chamados para a realização de um exorcismo envolvendo David Glatzel, irmão de 10 anos de Debbie. Segundo a mãe do garoto, sogra de Johnson, o pequeno cuspia, mordia, chutava e xingava nomes terríveis, comportamento iniciado depois que a família tinha feito uma visita ao local de moradia da filha que se organizava para logo em breve, casar-se com o homem acusado pelo assassinato macabro. Na ida ao local, o menino caiu no chão, alegou ter sido empurrado por um homem que ninguém viu, tampouco acreditou, aquilo que no universo cinematográfico chamamos de clichê. Deste momento em diante, o garoto mudou completamente e acordava aos berros nas madrugadas, cheio de arranhões e hematomas por todo o corpo. Ele também descrevia a presença de uma entidade com chifres, grandes olhos negros e cascos. Puro horror, não é mesmo? Então, após o pedido de ajuda a Igreja Católica, os familiares chamaram o casal de demonologistas para a realização de um exorcismo, delineado na cena de abertura com eficiência pela equipe do cineasta Michael Chaves na versão cinematográfica do filme em questão.
Antes de realizar o exorcismo, a mãe do garoto deu garantias firmes de não haver motivo para aquilo ser um delírio inspirado por narrativas ficcionais da mídia, pois a criança sequer assistia televisão. Cientes da necessidade de intervenção pelo ato conhecido desde os tempos mais remotos da história ocidental, Lorraine e Ed identificaram a presença de 43 entidades demoníacas a dominar a vítima. Durante o exorcismo, Arne Johnson teria desafiado as entidades a entrarem em seu corpo, haja vista o interesse em salvar a criança de algo tão maligno. Indo de encontro ao que tinha sido orientado por Ed Warren, o rapaz continuou e consequentemente, libertou o menino das forças malignas, mas trouxe para si algo que o envolveu em constantes lapsos de memória, alucinações e momentos de transe, situação que se desdobrou no assassinato que o manteve condenado por uma sentença entre 10 e 20 anos de prisão, suavizada para cinco devido ao seu bom comportamento. Motivo de piada a alvoroço midiático, o caso defendido pelo advogado Martin Minelli, no filme trocado por uma advogada, tornou-se chacota até mesmo do juiz, autoridade que questionou o tom fantasioso da história.
O julgamento durou em torno de 15 horas e desde o começo demonstrou-se pouco favorável ao réu que teria de lidar com as consequências desta maldição que mudou para sempre a sua história e os rumos daqueles que gravitavam ao seu redor. No filme, há a ampliação da mitologia com explicações mais detalhadas dos motivos que associam o jovem homem ao caos sobrenatural que dominou a sua existência. Como destaque, há uma cena num necrotério que funciona bem, o carisma e o desempenho dramático de Vera Farmiga e Patrick Wilson continuam sendo a alma e o coração da franquia, a recriação de um assassinato envolvendo a trama central também empolga, as referências ao clássico O Exorcista em dois momentos (a chegada do padre na cena de abertura e o nome de um personagem no hospital onde Ed está internado após um infarto) implantam traços metalinguísticos que nos envolvem enquanto cinéfilos, mas a sensação geral é que numa comparação inusitada, se este novo episódio da franquia fosse uma comida, estaríamos diante de um prato temperado irregularmente. Falta emoção em muitas passagens insipidas e o desfecho anticlimático deixa bastante a desejar. São elementos explorados com maior detalhamento no tópico seguinte, dedicado exclusivamente ao processo analítico do filme em si, sem deixar, claro, de traçar associações com o seu atual contexto de produção.
Sobre os novos rumos da franquia Invocação do Mal
Mudança de rumo é algo que assusta. Se o novo caminho for melhor, enfrentamos a trajetória com satisfação, diferente quando a proposta modifica o que estava confortável e não traz nada que possa justificar o seu estabelecimento em nossas vidas. Esse é um pensamento que pode ser aplicado aos relacionamentos que vivenciamos, aos desafios profissionais e até mesmo durante um momento diletante diante de um livro, série ou filme. Ao trazer essa linha de pensamento para o universo de narrativas cinematográficas, podemos associar imediatamente com o terceiro Invocação do Mal, mais recente exemplar da longeva franquia envolvendo o casal de demonologistas Ed e Lorraine Warren, interpretados com carisma, competência e coesa por Patrick Wilson e Vera Farmiga desde o primeiro capítulo desta saga de horror com momentos de possessão, exorcismo e descoberta de objetos macabros, elementos que testam a fé dos personagens que vivenciam situações numinosas e geralmente muito assustadoras.
Ao leitor, uma constatação para começar. Invocação do Mal: A Ordem do Demônio é um bom filme de terror, ou, como geralmente definimos no campo da crítica, uma narrativa genérica. Se a produção não é ruim, por qual motivo associar a mudança de rumo com algo desconfortável? Essa pode ser a pergunta a brotar enquanto você não chega ao final desse texto. Explico. Com o desenvolvimento muito acima da média dos seus dois capítulos antecessores, geralmente esperamos algo avassalador em sua terceira incursão, em especial, a experimentação de elementos da linguagem cinematográfica que possam manter o nível de tudo que já tinha sido apresentado com muita qualidade. Mas isso não ocorre. Sem a direção de James Wan, mais virtuoso que Michael Chaves, cineasta que assumiu o projeto mais atual, a terceira incursão do casal Ed e Lorraine Warren em um de seus casos mais polêmicos falha. Há momentos inspirados, mas nada que alcance o patamar dramático e estético de antes.
Inspirada no julgamento de Aaron Johnson (Ruari O’Connor), jovem que em 1981, assassinou um homem e alegou que no ato das facadas, estava possuído por forças demoníacas, o filme traz Ed e Lorraine em mais um desafio: garantir que as forças das trevas não dominem uma determinada família, envolta nos desdobramentos de rituais satânicos e conjurações de bruxas que devastam a vida de todos aqueles que gravitam em torno dos envolvidos nesta tragédia que se tornou piada na época, a estampar manchetes jocosas que satirizavam a situação que para a dupla de demonologistas era algo muito real, assustador e desolador, momentos de exaustão de energias e provocação da fé, principalmente para as vítimas de uma maldição sem precedentes, primeiro para o pequeno David Glatzel (Jullian Hillard), depois para o namorado de sua irmã, Johnson, levado ao tribunal e defendido por seu advogado com a tese incomum de ser sido possuído por entidades demoníacas quando cometeu o já mencionado crime.
Assim, resta lamentar, haja vista a alta expectativa que me tomou enquanto esperava o retorno do casal e da franquia aos circuitos de entretenimento, modificados completamente com o advento da pandemia da covid-19 que desde 2020 transformou a nossa forma de se entreter. Como já mencionado, desta vez, a história é dirigida por Michael Chaves, o responsável pelo fraco A Maldição da Chorona, spin-off da franquia, um dos momentos menos expressivos deste universo sobrenatural. Ao assumir o roteiro de David Leslie Johnson-McGoldrick, ele transforma o texto num festival de duplo ritmo narrativo ao longo de 112 minutos, ora com passagens frenéticas demais, ora com morosidade, sem deixar muito espaço para a sutileza que em muitos momentos, contribuem mais que o excesso de sustos e clichês, propiciados especialmente pela direção de fotografia de Michael Burgess, profissional que entrega os habituais espaços iluminados em contraste com pedaços da tela tomados por uma escuridão trevosa, como se as imagens captadas fossem alusões ao que se fazia comumente na pintura barroca. A movimentação e o uso de planos fechados em determinadas passagens funcionam bem, da mesma maneira que a utilização do ponto de vista, escolha ideal para mesclar imagens mais abertas com peculiaridades observadas exclusivamente pelos personagens, compartilhadas conosco num processo de aproximação que revela algo para logo adiante, nos fazer saltar com os sustos originados pelo jumpscare que já é uma muleta no cinema de terror há eras.
Em seus aspectos estéticos, Invocação do Mal: A Ordem do Demônio expressa o esmero estético dos membros que compõem a equipe técnica da franquia. Jennifer Spence expõe aos nossos olhos um excelente trabalho no design de produção, setor que compõe os cenários com uma direção de arte firme, sem espaço para nos decepcionar. Tudo está muito bem orquestrado. O necrotério, a casa da família Warren, os misteriosos túneis que nos conduzem para o macabro altar que demarca o desfecho da maldição que toma os personagens da história, dentre tantos outros cuidadosos territórios cênicos. A trilha sonora de Joseph Bishara, colaborador de longa data da franquia, também se porta de maneira eficiente, sem grandes momentos, mas adequada para o que nos é apresentado enquanto material dramático. Creio ser a fiel tradução musical para o que é ofertado ao músico e, consequentemente, aos espectadores, isto é, uma textura percussiva que dialoga exatamente com a qualidade mediana do filme que conduz.
Narrativa que depende bastante da sonoridade para produzir os efeitos necessários em seus consumidores, algo já mencionado anteriormente ao versar sobre o uso deliberado de jumpscare. aqui temos Jason W. Jennings como supervisor do design de som, setor responsável pela fabricação de ferrões musicais que alcançam níveis absurdos em determinados pontos, estratégia que não é de agora que se tornou sinônimo de preguiça para muitos filmes que dependem exclusivamente de seus atributos para criar algum impacto no espectador, mesmo quando a história em si deixa bastante a desejar. É quase o caso de Invocação do Mal: A Ordem do Demônio, produção que se equivoca quando abandona os ambientes ermos e se dispersa por uma investigação semelhante aos produtos televisivos genéricos sobre o tema. A opção por dividir o seu desfecho em duas situações justapostas por uma montagem alternada também prejudica o ritmo do filme, escolha que não deixa que nenhum dos dois lados seja potencializado, num processo de enfraquecimento da cadência narrativa, algo pecaminoso para uma produção que depende da manipulação do medo e do pavor para funcionar bem.
Um dos principais problemas que deixam Invocação do Mal: A Ordem do Demônio ser bom e não ótimo é, além do ritmo, a opacidade das entidades que dominam os personagens incautos. Diferente de Betsheeba e Valak, figuras demoníacas atordoantes dos filmes antecessores, aqui temos uma ameaça menos impactante, com menor tempo que o esperado em cena, frívola quando comparada com os “monstros” que a precederam, tornando-a banal e frágil, nada próxima do que foi prometido pelo marketing do filme, setor que deixou claro ser este “o caso mais assustador de Ed e Lorraine Warren”. Se investissem na saga dos Smurl, por exemplo, história que inspirou o tenso A Casa das Almas Perdidas, telefilme dos anos 1990, acredito que o potencial da história fosse muito maior. Não adianta, no entanto, ter uma boa trama quando a direção e o roteiro são ineficazes. Sabemos que o terror é um gênero de fases e acredito ser necessário uma nova reviravolta neste campo de produção, tal como Invocação do Mal fez em 2013, ao revitalizar temáticas desgastadas. Com oito filmes no projeto, a franquia apresenta sinais de desgaste e precisará de um novo capítulo muito mais intenso para garantir que ainda possa funcionar bem. Para nós, espectadores críticos, fica o questionamento: será que o Invocaverso ainda funciona? Resta esperar mais tempo para confirmar. Oremos.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Gattaca: Experiência Genética
A trama se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética


Leonardo Campos
Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos, um campo cheio de regras, axiomas, leis e teoremas, estabelecidos para que os responsáveis por suas manipulações sigam fielmente os direcionamentos, nalgumas vezes, transbordados quando há vantagens que nem sempre dialogam com aquilo que se convencionou a chamar de postura ética do pesquisador. Ao longo de seus envolventes 106 minutos, contemplamos uma trama que reflete os impactos da intervenção genética em nosso mundo, na produção Gattaca, dividido entre os seres humanos gerados biologicamente e aqueles concebidos graças ao advento das evoluções científicas. Neste cenário sombrio, temos um eficiente debate sobre o papel da ciência em nosso cotidiano, em especial, o desenvolvimento da genética na dinâmica dos seres vivos, numa reflexão sobre bioética e seus desdobramentos, afinal, por mais positiva que seja o avanço tecnológico neste campo, estamos lidando com a perigosa eugenia, algo que nas mãos da humanidade conflituosa, pode gerar caos.
A trama Gattaca se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética. Numa espécie de processo eugênico, a ciência faz a separação dos indivíduos válidos e inválidos, sendo os primeiros os dominantes nas relações sociais. O cineasta Andrew Niccol adentra pelo viés das narrativas sobre o lado vilanesco da ciência, sabiamente trabalhado em ao longo da história do cinema, em filmes como Metrópolis, de Fritz Lang, dentre outros. Aqui, ele demonstra o quão a sociedade fictícia se encontra submissa aos ditames de um discurso científico opressivo, numa existência onde os seres humanos artificiais ocupam melhores posições e os considerados inferiores, isto é, com probabilidades de problemas genético, os espaços de menor favorecimento social. Em Gattaca: A Experiência Genética, o espectador é apresentado ao mundo dos filhos da fé e dos filhos da ciência. Ao nascer, o individuo que antes tinha o destino nas mãos da vontade divina agora pode ter o seu perfil delineado pela engenharia genética. Logo em seu nascimento, apenas uma gota de seu sangue permite a impressão de um diagnóstico que conduzirá toda a sua vida, num processo que flerta com todas as etapas de uma tradicional investigação científica, da introdução da proposta ao estabelecimento dos objetivos, da justificativa, do desenho antecipado do problema e da hipótese, aos métodos selecionados e os desdobramentos das análises que tem como destino, o encontro de respostas assertivas.
Nestes cálculos, as probabilidades definem as suas qualidades genéticas, psicológicas, físicas e possíveis doenças e até o desenvolvimento da causa de morte no futuro das pessoas. Diante do exposto, conhecemos o adulto Vincent Freeman (Ethan Hawke), interpretado por Mason Gamble na infância e por Chad Christ na adolescência, um homem que é filho de Deus, ou seja, nasceu com as seguintes porcentagens nas chances para desenvolvimento de problemas: 60% para questões neurológicas, 42% para depressão, 89% de capacidade de se concentrar e 92% para a possibilidade de desenvolver distúrbios cardíacos. Desde a sua infância, ele sonha em ingressar no projeto Gattaca, uma agência que treina os melhores astronautas para missões espaciais exploratórias. O grande conflito é que a sua ficha é taxativa: ele não possui os requisitos para alcançar uma vaga, pois é um filho de Deus, portanto, possui elementos que o tornam uma figura enfraquecida diante das vantagens físicas dos filhos da ciência. Além disso, psicologicamente ele é um personagem circunspecto, desanimado, haja vista a sua trajetória em família.
Quando pequeno, seus pais tiveram outro filho, Anton Freeman (Loren Dean), uma criança oriunda da ciência, socialmente com mais credibilidade que Vincent. Assim, a repressão advinda do campo científico não se mantém emaranhado em sua vida apenas na fase adulta, mas ao longo de toda a sua formação. Contemplamos tudo isso ao longo da narração em primeira pessoa do filme, com flashbacks explicativos para a postura do protagonista Vincent, figura que rouba a identidade de um nadador desabilitado após um acidente que o deixou tetraplégico, falsificação utilizada para adentrar no espaço de seu tão sonhado projeto de vida, algo que, no entanto, o coloca em risco. Após um assassinato, as coisas mudam e mesmo após a transformação física do personagem, bem como alguns ajustes de ordem comportamental, todos se tornam alvo de uma investigação que pode desmascará-lo. Ao tentar driblar o sistema e subverter uma ordem que delineia destinos predeterminados pela manipulação do DNA para a fabricação de organismos “melhorados”, Vincent também põe em risco a sua vida, numa perigosa e empolgante jornada que funciona como entretenimento de qualidade, bem como reflexões filosóficas intrigantes sobre a relação da humanidade com os próprios pilares tecnológicos que cria.
Na composição da estrutura cinematográfica de Gattaca: A Experiência Genética, o cineasta Andrew Niccol contou com uma eficiente equipe técnica, responsável pelo assertivo estabelecimento da materialidade fílmica em prol do tema debatido nos diálogos e situações do texto dramático. A textura percussiva de Michael Nyman, imersiva, acompanha as cenas que se passam pelos cenários devidamente dirigidos artisticamente pelo design de produção assinado por Jan Roells, setor que cria ambientes equilibrados, próximos do realismo de nosso mundo contemporâneo, mas com elementos que emulam as fascinantes ficções com teor científicos, conhecidas por delinear em cena, traços estéticos que nos remetem ao “futurismo”. Ademais, na direção de fotografia, Slawomir Idziak cria ângulos que nos permitem sentir a vulnerabilidade de alguns personagens, com planos que reforçam o contexto de tensão no qual as figuras ficcionais estão espalhadas, uma malha narrativa onde a ditadura da engenharia genética reforça preconceitos e fixa um amontado de castas sociais conflituosas, imersas num angustiante lugar de controle social e determinismo genético, retrato da nossa realidade, alegorizado por meio do brilhante tema desenvolvido nesta trama sobre a ciência e seus impactos positivos e negativos para a humanidade, afinal, as redes sociais e as novas tecnologias estão ai para nos mostrar que apesar de dominarmos aquilo que pode melhorar a nossa vida, também nos tornamos reféns de seus efeitos colaterais, não é mesmo?
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Introdução: A Porta de Entrada de Seu Projeto de Pesquisa
Este é um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica


Leonardo Campos
Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e elucidativo artigo com toques de tutorial, explanarei sobre os principais passos para adoção durante a elaboração da parte introdutória de seu projeto, um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica. Como porta de entrada, o seu texto deve ser limpo, atraente, coeso, coerente, fornecer subsídios para comprovação da relevância social de seu tema, bem como segurança diante da proposta escolhida para trabalho. Sendo o primeiro contato com as perspectivas de seu processo investigativo, é na introdução que você expõe a questão da sua pesquisa, o desenvolvimento do problema e a pertinência de sua hipótese, num cartão de visitas que precisa convencer os leitores sobre a significância de sua jornada.
Observe este infográfico. Leia. Faça uma análise e depois reflita sobre os pontos abordados. Foi produzido para um curso de Enfermagem, mas pode ser pensado para qualquer outra área do conhecimento. Ademais, não precisa ser seguido fidedignamente, mas adaptado para a sua realidade de pesquisa.
Observou. Descreverei mais detalhadamente sobre os pontos adiante. Sigamos.
O número de páginas para a introdução é relativo e depende das normas dispostas nos editais da instituição na qual você desenvolve a pesquisa. O seu tema deve ocupar o maior espaço do texto, numa escrita que pode (e deve) contemplar os principais conceitos, um percurso histórico do tema, dados de outras pesquisas (quando houver) realizadas anteriormente, num processo explicativo do autor (você) para o leitor, tendo como uma das principais preocupações, a determinação da abrangência da pesquisa. Recentemente, uma estudante de Jornalismo me abordou para uma orientação que se referia ao fenômeno da Cultura do Cancelamento. Na proposta introdutória, ela não especificava qual era o seu recorte temporal, bem como o seu objeto. Se este fosse um projeto esboçado para um edital de seleção para mestrado, doutorado ou adentrar numa iniciação científica, provavelmente o material seria descartado, com a reprovação divulgada nos resultados posteriormente. Explico os motivos.
Mesmo que o título forneça pistas, o texto introdutório precisa evidenciar a natureza do trabalho de maneira mais elucidativa possível. Deve atravessar, talvez indiretamente, os objetivos, a finalidade da pesquisa e a justificativa. Lembre-se, caro leitor: é na introdução que fisgamos o leitor, neste caso, os avaliadores. É um texto onde teremos uma ideia geral do projeto, parte onde o autor diz por quais motivos escolheu o assunto, tendo em vista delinear a importância de seu conteúdo. Somente na justificativa foi possível compreender que a estudante em final de curso se referia ao cancelamento por meio de uma observação detida aos participantes do reality show Big Brother Brasil, numa análise pertinente sobre os desdobramentos das opiniões destes indivíduos durante a participação no programa, culminando na aceitação ou ojeriza do público em relação aos seus posicionamentos, no linchamento virtual das redes sociais e afins. Observe que uma temática interessante quase deixou de ser levada adiante por falta de comprometimento com o texto de abertura, um trecho valioso, tal como o preâmbulo de filme, série ou romance que prende a nossa atenção e mesmo que decepcione, nos leva adiante em sua jornada.
Assim é com a introdução se sua pesquisa. É o momento de contextualização dos caminhos pavimentados em sua proposta. Precisa ser atrativa, motivar a continuidade do interesse de quem lê (e avalia), bem como traçar as contribuições advindas do tema recortado na jornada que você pretende trilhar em seu projeto. O texto? Claro, conciso e “preciso”. Como já mencionado, demonstrar os antecedentes de sua abordagem, “produzir um design” para que o leitor compreenda quão pertinente é a sua linha de raciocínio para a investigação escolhida, numa escrita que deve prezar pelo tom persuasivo e, num movimento questionador, levantar indagações sobre a temática, numa conexão assertiva com as partes subsequentes, isto é, um ritmo empolgante na abertura, para que os objetivos, justificativas, hipóteses, problemas, metodologias, mapeamento bibliográfico, orçamento e cronograma, bem como os anexos e referências consultadas no formato solicitado pela ABNT estejam organicamente unificados como partes constituintes de uma tessitura alinhada, coesa e coerente com os seus propósitos.
Boa escrita!
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Os tipos de conhecimento em `Quase Deuses`
A narrativa traz para a cena os impasses de personagens em buscar explicações para as investigações científicas que empreendem


Leonardo Campos
Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta que se baseia no roteiro de Robert Caswell e Peter Silverman para nos contar uma edificante história de superação lançada em 2004, uma saga de dedicação e empreendedorismo que atualmente é bastante mencionada em aulas de projeto de vida, cursos de metodologia da pesquisa, dentre outras áreas da aprendizagem humana. Tocante, sem apelar para um tom novelesco excessivo, algo comum na seara das produções cinematográficas para televisão, a narrativa traz para a cena os impasses de personagens mergulhados no interesse crítico para buscar explicações para as investigações científicas que empreendem, tendo o campo da medicina como espaço de desenvolvimento dos conflitos dramáticos internos, isto é, situados num caso específico de análise, bem como os externos, conectados com os desafios pessoais na vida destas figuras ficcionais com vidas atribuladas e cheias de obstáculos, mas focadas em encontrar as soluções que escreveriam os seus nomes para a eternidade, haja vista a inspiração numa história real para a concepção do filme.
Ao longo dos 110 minutos de Quase Deuses, nos deparamos com o cotidiano de Vivien Thomas (Yassin Bey) e Alfred Blalock (Alan Rickman), o primeiro, um homem negro, pobre, desacreditado diante da possibilidade de saída do determinismo que o sufoca, sendo o segundo, um médico renomado da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, ambos situados na década de 1940, uma era de conflitos bélicos mundiais e muitas mudanças de paradigmas sociais. A relação deles começa depois que Vivien consegue uma vaga de faxineiro na universidade. Curioso, ele sempre executa os seus serviços observando como as coisas funcionam ao redor, numa postura de pesquisador. O rapaz não quer apenas limpar e receber o seu salário no final do período, mas conhecer como se desdobram os processos por onde passa. Ele tem faro de investigador, posicionamento inicial que o fará ir tão longe, mais que o esperado, tornando-se um renomado cientista e médico, ganhador do Honoris Causa, em 1976. Acompanhamos cada passo seu com a trilha sonora emotiva de Christopher Young, importante para o impacto dramático de cada passagem transformadora na vida destes personagens que aprendem muito entre si.
Voltemos ao contato entre a dupla. Ao perceber que Vivien Thomas é um homem interessado e curioso, o Dr. Alfred começa a lhe garantir algumas oportunidades adicionais. Há momentos de observação de experimentos, contemplação de procedimentos, numa jornada que permite ao faxineiro sair da posição fixa importante, mas redutora, levando-o como auxiliar para o Hospital John Hopkins, numa época em que se relacionar com pessoas negras era tabu, tempo conflituoso que exigir ceder o lugar para os brancos num transporte público ou ter banheiros diferentes para cada grupo, em linhas gerais, uma tenebrosa fase da história humana que de vez em quando, se repete na contemporaneidade, por mais que afirmemos que passamos por consideráveis mudanças sociais. A esposa de Vivien, sempre preocupada, teme que as experiências do marido sejam ousadas demais e os deixem numa posição comprometedora futuramente. Ele, persistente, segue o seu sonho e consegue convencer a todos de sua competência, num trunfo belíssimo.
Sua trajetória é de superação sem aderir aos milagres ou religiosidade. Vivien Thomas é técnico no que faz, focado na metodologia, humilde quando os caminhos não levam para o esperado e consciente da necessidade de recomeçar quando percebe que realizou uma escolha equivocada. Em sua pesquisa com animais, faz procedimentos e experimenta muito, antes de chegar aos resultados finais, uma aula para a juventude contemporânea impaciente e obcecada pelo Google como via exclusiva para as suas respostas. É na exatidão científica que o personagem prospera, numa era de tantas dispersões e dificuldades como qualquer outra, marcada pela recessão econômica, desdobramento da Crise de 1929, época de taxas altíssimas de desemprego e miséria, queda do poder de compra e da renda, bem como da produção industrial em escala mundial. Sem falar na já mencionada segregação racial, um impasse que poderia ter acabado de vez com os primeiros passos galgados por Vivien Thomas, ao lado do Dr. Alfred, seu mentor, figuras unificadas para a resolução da Síndrome do Bebê Azul, um problema cardiológico que foi resolvido depois de muito trabalho, leitura, investigação e testes laboratoriais, em suma, após uma jornada exaustiva, mas necessária, de pesquisa embasada por métodos sérios.
Eles precisam descobrir como resolver a cianose provocada pela deficiência no transporte de oxigênio no sangue do bebê que desenvolve o problema quando nasce, nalguns casos, logo quando pequeno, uma condição que o deixa com a pela azulada ou arroxeada, cor que pode ser efeito da junção de sangue oxigenado com o não oxigenado, problema de saúde oriundo de má formação congênita. É uma situação raríssima que encontrou respostas significativas na empreitada do médico e de seu auxiliar. Nós contemplamos estas passagens com a direção de fotografia de Donald M. Morgan, eficiente na captação dos momentos de duelo entre os investigadores e a sociedade, personagens que atravessem os cenários do design de produção de Vincent Peranio, também assertivo ao emular com cautela as décadas por onde a trama se passa, além de construir um espaço de trabalho para a dupla que é simples, mas imersivo no que tange aos aspectos visuais de um local para experimentos científicos. Ademais, Quase Deuses também é uma narrativa para reflexão sobre os diversos tipos de conhecimento, sabia?
Nos momentos em que os dois homens debatem sobre como descobrir a cura para a cura do bebê e assim, explicar tal fenômeno, nós temos pontos de articulação com o conhecimento filosófico, obtido na lógica e na construção de conceitos. Após numerosas tentativas com animais que não dão certo, os testes acabam levando Vivien para o seu objetivo, num diálogo com o que chamamos de conhecimento sensível, aquele obtido através dos sentidos, neste caso, pelo olhar atento do personagem. Quando um representante religioso deseja intervir na cirurgia, alegando que os médicos querem interceder diante da vontade divina, temos impregnado o conhecimento religioso. No caso do conhecimento científico, podemos contemplar a sua passagem em diversos momentos de Quase Deuses, em especial, quando Vivien Thomas se apaixona pelos estudos na área de medicina e começa a devorar todos os livros possíveis sobre o assunto, numa busca por problemas, hipóteses, respostas por meio de experimentos e investigação.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
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