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Invocação do Mal 3: A Ordem do Demônio

Professor Leonardo Campos

O lançamento do novo capítulo da franquia Invocação do Mal veio para nos dizer algo que de certa maneira, já desconfiávamos: é hora do terror se reinventar. Gênero que atravessa diversas fases desde os primórdios do cinema, atualmente traz novidades pontuais que oxigenam o campo de produção, mas na maioria dos casos, demonstra o desgaste de fórmulas que talvez não funcione mais como anteriormente, haja vista o nosso atual cenário de multiplicidade de produtos para consumo, algo que gera maior número de opções para escolhermos o entretenimento que mais nos agrade. É uma era de concorrência mais ampla. Na ocasião de Invocação do Mal, em 2013, terror dirigido pelo virtuoso James Wan, tínhamos a retomada de uma temática, analisada sob novos vieses, mesmo que a estrutura narrativa permanecesse em relação aos padrões clássicos de possessão demoníaca e habitações assombradas por demais presenças sobrenaturais. Foi assim no bem-sucedido Invocação do Mal 2 e agora, no terceiro, com a mudança de direção, assumida pelo menos competente Michael Chaves, o rumo investigativo adotado pelo texto destoa das importantes limitações territoriais para o estabelecimento dos conflitos dramáticos, numa narrativa cheia prejudicada pela diluição de sutilezas, pela dispersão da tensão, além do apagamento de elementos que antes funcionavam bastante.

Sair do terreno das casas assombradas e brincar de detetive é uma proposta ousada. Quem vos escreve, por exemplo, não é simpático da resistência, do lugar comum, ao contrário, acredite que quando o assunto é arte, as limitações não devem fazer parte do processo. Se é preciso sair da rota e ousar, que faça, mas saibam contornar para entregar ao público algo à altura quando o assunto é uma franquia com dois filmes antecessores cuidadosamente escritos e dirigidos, diferente deste terceiro episódio, ilustrado no tópico seguinte com mais detalhes, uma produção que perde a oportunidade de ser ótima para se tornar algo apenas comum e passageiro. Antes de adentrar na análise específica do filme, explanarei para os leitores o caso escolhido desta vez. Em Invocação do Mal tivemos a maldição da família Person, em Invocação do Mal 2 fomos assustados por Bill Wilkins, os spin-offs exploraram o folclore mexicano com a Chorona, além dos três episódios da amaldiçoada Annabelle e a cinebiografia de Valak, A Freira. Desta vez, o foco é um polêmico caso de possessão que se tornou processo judicial no ano de 1981, em Connecticut, nos Estados Unidos. História transformada em livro por Gerald Brittle, escrita em parceria com Lorraine Warren, traz o primeiro caso estadunidense de defesa por questões sobrenaturais do tipo. Foi um assunto que fomentou o sensacionalismo da mídia e promoveu o que ficou conhecido por satanic panic, termo criado para definir a histeria coletiva que dominou a época.

O lançamento do novo capítulo da franquia Invocação do Mal veio para nos dizer algo que de certa maneira, já desconfiávamos: é hora do terror

A história é no mínimo curiosa. Arne Johnson foi levado ao Tribunal Superior de Connecticut por ter assassinado Alan Bono, tratador de cães em Brookfield, região que desconhecia registros de casos de violência deste nível. Tudo começou com uma discussão. Os ânimos estavam exaltados, o consumo de álcool ultrapassava os limites do considerado básico e num ato de fúria repentina, potencializado pelo mal-estar de Johnson, as facadas ceifaram a vida da vítima e o agressor foi encontrado pela polícia num raio de 3 km do local do crime, ensanguentado e catatônico. Debbie, namorado de Johnson, interpretada no filme por Sarah Catherine Hook, única testemunha do ato, manteve-se ao lado do companheiro durante todo o processo, tendo inclusive se casado com ele ainda na prisão. A convicção diante da sua inocência veio por causa de acontecimentos anteriores entre eles e a família da moça.

Alguns meses antes, Lorraine e Ed tinham sido chamados para a realização de um exorcismo envolvendo David Glatzel, irmão de 10 anos de Debbie. Segundo a mãe do garoto, sogra de Johnson, o pequeno cuspia, mordia, chutava e xingava nomes terríveis, comportamento iniciado depois que a família tinha feito uma visita ao local de moradia da filha que se organizava para logo em breve, casar-se com o homem acusado pelo assassinato macabro. Na ida ao local, o menino caiu no chão, alegou ter sido empurrado por um homem que ninguém viu, tampouco acreditou, aquilo que no universo cinematográfico chamamos de clichê. Deste momento em diante, o garoto mudou completamente e acordava aos berros nas madrugadas, cheio de arranhões e hematomas por todo o corpo. Ele também descrevia a presença de uma entidade com chifres, grandes olhos negros e cascos. Puro horror, não é mesmo? Então, após o pedido de ajuda a Igreja Católica, os familiares chamaram o casal de demonologistas para a realização de um exorcismo, delineado na cena de abertura com eficiência pela equipe do cineasta Michael Chaves na versão cinematográfica do filme em questão.

Antes de realizar o exorcismo, a mãe do garoto deu garantias firmes de não haver motivo para aquilo ser um delírio inspirado por narrativas ficcionais da mídia, pois a criança sequer assistia televisão. Cientes da necessidade de intervenção pelo ato conhecido desde os tempos mais remotos da história ocidental, Lorraine e Ed identificaram a presença de 43 entidades demoníacas a dominar a vítima. Durante o exorcismo, Arne Johnson teria desafiado as entidades a entrarem em seu corpo, haja vista o interesse em salvar a criança de algo tão maligno. Indo de encontro ao que tinha sido orientado por Ed Warren, o rapaz continuou e consequentemente, libertou o menino das forças malignas, mas trouxe para si algo que o envolveu em constantes lapsos de memória, alucinações e momentos de transe, situação que se desdobrou no assassinato que o manteve condenado por uma sentença entre 10 e 20 anos de prisão, suavizada para cinco devido ao seu bom comportamento. Motivo de piada a alvoroço midiático, o caso defendido pelo advogado Martin Minelli, no filme trocado por uma advogada, tornou-se chacota até mesmo do juiz, autoridade que questionou o tom fantasioso da história.

O julgamento durou em torno de 15 horas e desde o começo demonstrou-se pouco favorável ao réu que teria de lidar com as consequências desta maldição que mudou para sempre a sua história e os rumos daqueles que gravitavam ao seu redor. No filme, há a ampliação da mitologia com explicações mais detalhadas dos motivos que associam o jovem homem ao caos sobrenatural que dominou a sua existência. Como destaque, há uma cena num necrotério que funciona bem, o carisma e o desempenho dramático de Vera Farmiga e Patrick Wilson continuam sendo a alma e o coração da franquia, a recriação de um assassinato envolvendo a trama central também empolga, as referências ao clássico O Exorcista em dois momentos (a chegada do padre na cena de abertura e o nome de um personagem no hospital onde Ed está internado após um infarto) implantam traços metalinguísticos que nos envolvem enquanto cinéfilos, mas a sensação geral é que numa comparação inusitada, se este novo episódio da franquia fosse uma comida, estaríamos diante de um prato temperado irregularmente. Falta emoção em muitas passagens insipidas e o desfecho anticlimático deixa bastante a desejar. São elementos explorados com maior detalhamento no tópico seguinte, dedicado exclusivamente ao processo analítico do filme em si, sem deixar, claro, de traçar associações com o seu atual contexto de produção.

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Sobre os novos rumos da franquia Invocação do Mal

Mudança de rumo é algo que assusta. Se o novo caminho for melhor, enfrentamos a trajetória com satisfação, diferente quando a proposta modifica o que estava confortável e não traz nada que possa justificar o seu estabelecimento em nossas vidas. Esse é um pensamento que pode ser aplicado aos relacionamentos que vivenciamos, aos desafios profissionais e até mesmo durante um momento diletante diante de um livro, série ou filme. Ao trazer essa linha de pensamento para o universo de narrativas cinematográficas, podemos associar imediatamente com o terceiro Invocação do Mal, mais recente exemplar da longeva franquia envolvendo o casal de demonologistas Ed e Lorraine Warren, interpretados com carisma, competência e coesa por Patrick Wilson e Vera Farmiga desde o primeiro capítulo desta saga de horror com momentos de possessão, exorcismo e descoberta de objetos macabros, elementos que testam a fé dos personagens que vivenciam situações numinosas e geralmente muito assustadoras.

Ao leitor, uma constatação para começar. Invocação do Mal: A Ordem do Demônio é um bom filme de terror, ou, como geralmente definimos no campo da crítica, uma narrativa genérica. Se a produção não é ruim, por qual motivo associar a mudança de rumo com algo desconfortável? Essa pode ser a pergunta a brotar enquanto você não chega ao final desse texto. Explico. Com o desenvolvimento muito acima da média dos seus dois capítulos antecessores, geralmente esperamos algo avassalador em sua terceira incursão, em especial, a experimentação de elementos da linguagem cinematográfica que possam manter o nível de tudo que já tinha sido apresentado com muita qualidade. Mas isso não ocorre. Sem a direção de James Wan, mais virtuoso que Michael Chaves, cineasta que assumiu o projeto mais atual, a terceira incursão do casal Ed e Lorraine Warren em um de seus casos mais polêmicos falha. Há momentos inspirados, mas nada que alcance o patamar dramático e estético de antes.

Inspirada no julgamento de Aaron Johnson (Ruari O’Connor), jovem que em 1981, assassinou um homem e alegou que no ato das facadas, estava possuído por forças demoníacas, o filme traz Ed e Lorraine em mais um desafio: garantir que as forças das trevas não dominem uma determinada família, envolta nos desdobramentos de rituais satânicos e conjurações de bruxas que devastam a vida de todos aqueles que gravitam em torno dos envolvidos nesta tragédia que se tornou piada na época, a estampar manchetes jocosas que satirizavam a situação que para a dupla de demonologistas era algo muito real, assustador e desolador, momentos de exaustão de energias e provocação da fé, principalmente para as vítimas de uma maldição sem precedentes, primeiro para o pequeno David Glatzel (Jullian Hillard), depois para o namorado de sua irmã, Johnson, levado ao tribunal e defendido por seu advogado com a tese incomum de ser sido possuído por entidades demoníacas quando cometeu o já mencionado crime.

Assim, resta lamentar, haja vista a alta expectativa que me tomou enquanto esperava o retorno do casal e da franquia aos circuitos de entretenimento, modificados completamente com o advento da pandemia da covid-19 que desde 2020 transformou a nossa forma de se entreter. Como já mencionado, desta vez, a história é dirigida por Michael Chaves, o responsável pelo fraco A Maldição da Chorona, spin-off da franquia, um dos momentos menos expressivos deste universo sobrenatural. Ao assumir o roteiro de David Leslie Johnson-McGoldrick, ele transforma o texto num festival de duplo ritmo narrativo ao longo de 112 minutos, ora com passagens frenéticas demais, ora com morosidade, sem deixar muito espaço para a sutileza que em muitos momentos, contribuem mais que o excesso de sustos e clichês, propiciados especialmente pela direção de fotografia de Michael Burgess, profissional que entrega os habituais espaços iluminados em contraste com pedaços da tela tomados por uma escuridão trevosa, como se as imagens captadas fossem alusões ao que se fazia comumente na pintura barroca. A movimentação e o uso de planos fechados em determinadas passagens funcionam bem, da mesma maneira que a utilização do ponto de vista, escolha ideal para mesclar imagens mais abertas com peculiaridades observadas exclusivamente pelos personagens, compartilhadas conosco num processo de aproximação que revela algo para logo adiante, nos fazer saltar com os sustos originados pelo jumpscare que já é uma muleta no cinema de terror há eras.

Em seus aspectos estéticos, Invocação do Mal: A Ordem do Demônio expressa o esmero estético dos membros que compõem a equipe técnica da franquia. Jennifer Spence expõe aos nossos olhos um excelente trabalho no design de produção, setor que compõe os cenários com uma direção de arte firme, sem espaço para nos decepcionar. Tudo está muito bem orquestrado. O necrotério, a casa da família Warren, os misteriosos túneis que nos conduzem para o macabro altar que demarca o desfecho da maldição que toma os personagens da história, dentre tantos outros cuidadosos territórios cênicos. A trilha sonora de Joseph Bishara, colaborador de longa data da franquia, também se porta de maneira eficiente, sem grandes momentos, mas adequada para o que nos é apresentado enquanto material dramático. Creio ser a fiel tradução musical para o que é ofertado ao músico e, consequentemente, aos espectadores, isto é, uma textura percussiva que dialoga exatamente com a qualidade mediana do filme que conduz.

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Narrativa que depende bastante da sonoridade para produzir os efeitos necessários em seus consumidores, algo já mencionado anteriormente ao versar sobre o uso deliberado de jumpscare. aqui temos Jason W. Jennings como supervisor do design de som, setor responsável pela fabricação de ferrões musicais que alcançam níveis absurdos em determinados pontos, estratégia que não é de agora que se tornou sinônimo de preguiça para muitos filmes que dependem exclusivamente de seus atributos para criar algum impacto no espectador, mesmo quando a história em si deixa bastante a desejar. É quase o caso de Invocação do Mal: A Ordem do Demônio, produção que se equivoca quando abandona os ambientes ermos e se dispersa por uma investigação semelhante aos produtos televisivos genéricos sobre o tema. A opção por dividir o seu desfecho em duas situações justapostas por uma montagem alternada também prejudica o ritmo do filme, escolha que não deixa que nenhum dos dois lados seja potencializado, num processo de enfraquecimento da cadência narrativa, algo pecaminoso para uma produção que depende da manipulação do medo e do pavor para funcionar bem.

Um dos principais problemas que deixam Invocação do Mal: A Ordem do Demônio ser bom e não ótimo é, além do ritmo, a opacidade das entidades que dominam os personagens incautos. Diferente de Betsheeba e Valak, figuras demoníacas atordoantes dos filmes antecessores, aqui temos uma ameaça menos impactante, com menor tempo que o esperado em cena, frívola quando comparada com os “monstros” que a precederam, tornando-a banal e frágil, nada próxima do que foi prometido pelo marketing do filme, setor que deixou claro ser este “o caso mais assustador de Ed e Lorraine Warren”. Se investissem na saga dos Smurl, por exemplo, história que inspirou o tenso A Casa das Almas Perdidas, telefilme dos anos 1990, acredito que o potencial da história fosse muito maior. Não adianta, no entanto, ter uma boa trama quando a direção e o roteiro são ineficazes. Sabemos que o terror é um gênero de fases e acredito ser necessário uma nova reviravolta neste campo de produção, tal como Invocação do Mal fez em 2013, ao revitalizar temáticas desgastadas. Com oito filmes no projeto, a franquia apresenta sinais de desgaste e precisará de um novo capítulo muito mais intenso para garantir que ainda possa funcionar bem. Para nós, espectadores críticos, fica o questionamento: será que o Invocaverso ainda funciona? Resta esperar mais tempo para confirmar. Oremos.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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