Ficção, Educação e Trânsito
A Sociedade, de Alcântara Machado
A transformação do trânsito como reflexo dos valores que se tornam maiores que as próprias pessoas que os portam
![A Sociedade, de Alcântara Machado](https://bahiapravoce.com.br/wp-content/uploads/2021/08/WhatsApp-Image-2021-08-09-at-15.59.45.jpg)
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Professor Leonardo Campos
Alcântara Machado é um nome expressivo na história da literatura moderna no Brasil. A sua produção de destaque é a coletânea de contos dispostos em Brás, Bexiga e Barra Funda, textos voltados ao processo de radiografia do cenário urbano paulista nas primeiras décadas do século XX, era do surgimento de inovações tecnológicas e desdobramentos das revoluções industriais europeias, ressoantes em nosso território. A Sociedade é uma das histórias mais expressivas do conjunto, crítica ácida aos costumes da época, numa travessia de interpretações múltiplas, algo que vai da sociedade estabelecidas entre os personagens e suas trocas econômicas ao projeto de análise do espaço social em si, com seus relacionamentos por interesse, jogos de sedução envolvendo carros luxuosos e valorização dos seres humanos com base em suas posses. Tudo isso alocado numa narrativa envolvente e com desenvolvimento interessante desde os seus primeiros momentos ao desfecho carregado de ironia.
Narrado em terceira pessoa, A Sociedade nos apresenta, como já mencionado, o ambiente de São Paulo em constante expansão urbana e os acertos financeiros entre duas famílias, uma de imigrantes italianos em processo de estabelecimento na cidade e a outra, de habitantes locais, pessoas que já gozaram dos privilégios de sua classe econômica, mas no momento de articulação da história proposta por Alcântara Machado, encontra-se falida. De um lado temos os membros de um grupo exterior, a sofrer os preconceitos dos brasileiros e do outro, paulistas que viveram bons momentos num passado relativamente recente, mas que sucumbiram aos novos rumos sociais, políticos e industrias da sociedade. Neste encontro, um acerto financeiro será realizado, tendo em vista gerar benefícios para os dois grupos. Enquanto a família italiana ganha prestígio social ao se relacionar com uma família “importante”, os falidos serão exaltados com uma quantia generosa de dinheiro para recobrar o que chamam de “dignidade”.
Nessa história de laços matrimoniais em meio aos processos econômicos, podemos observar como o escritor destaca pontos da cidade, em especial, o bairro da Liberdade, local onde a narrativa se desenrola. Fidedigno ao seu contexto, o conto ressalta grandes marcas da época, numa exaltação do materialismo que demarca as ações dos personagens, indivíduos envoltos numa prosa enxuta, construídas com onomatopeias, sons oriundos das representações de uma sociedade agitada, em evolução intensa, característica marcante de um período que vai do desfecho do século XIX ao preâmbulo do século XX, era de mudanças também culturais, além das novas configurações econômicas. Aqui, as famílias de José Bonifácio de Matos Arruda e Salvatore Melli se unificam para a união entre Teresa Rita e Adriano Melli, jovens que se interessam mutuamente, não apenas amorosamente, mas pelos bens que podem ser conquistados com a oficialização da relação que “vai além” do amor romântico.
A decadência de um é a ascensão econômica do outro. É o que acompanhamos na trajetória destas figuras ficcionais que buscam, tal como observamos na contemporaneidade e em suas redes sociais, demonstrar os seus valores com base nas posses que dominam. A Sociedade nos mostra isso com o automóvel que Adriano utiliza para circular pelas ruas do bairro, tendo em vista conquistar as garotas com um bem que ainda hoje, é sinônimo de status social privilegiado, diferente da ideia básica do carro ocupar os espaços como meio de deslocamentos das pessoas em suas dinâmicas cotidianas de trabalho e demais tarefas pessoais. No cenário urbano que serve de palco para as ações dos personagens, o carro é uma espécie de fetiche, objeto material ao qual se atribuem poder e aclamação, sensações que estão presentes também em Gaetaninho, conto da mesma coletânea, texto que expõe o desejo de andar de carro por um viés irônico, tendo a morte como fim para que os anseios do personagem-título fossem alcançados.
Do momento histórico que delineia a história do conto ao contemporâneo, percebemos como o terreno da Publicidade e da Propaganda, por meio dos comerciais e do cinema, deu aos automóveis esse status de ascensão social, algo que pode parecer inofensivo para alguns, mas na verdade oferta perigo não apenas para condutores, mas aos que se encontram com estas figuras nas dinâmicas cotidianas de mobilidade urbana. O que precisamos refletir é a transformação do trânsito como reflexo desses valores que se tornam maiores que as próprias pessoas que os portam. Há, em quem dirige, como já expressado noutro texto sobre velocidade como expressão da masculinidade, uma sensação de poder que leva determinados indivíduos a estacionarem seus carros em locais proibidos, nas vagas para pessoas com deficiência, bem como em ações ilegais e antiéticas, mas corriqueiras, desde a ultrapassagem no semáforo que indica o sinal vermelho e o acelerar além dos limites permitidos de velocidade.
Uma possível reflexão transversal entre literatura e educação para o trânsito com o conto A Sociedade, de Alcântara Machado, é o debate sobre a transformação do humano em acessório e o protagonismo dados aos carros em nosso contexto social, pois vivemos uma era que, tendo como base as reportagens diárias sobre sinistros dos mais diversos no trânsito, os seres humanos se comportam como se fossem “os seus carros”. A sensação que temos durante a leitura é a mesma que o disposto, salvaguardas as devidas proporções, numa música recente sobre conquistas após a compra de um Camaro Amarelo, isto é, o rapaz pobre e simplório ganha destaque para o seu alvo amoroso após estar em posse de um automóvel conhecido por sua beleza, velocidade e simbologia de status privilegiado. Debater isso não é o que se convencionou a chamar de “mimimi” ou aderência ao rígido “politicamente correto”. É a constatação de fatos, parte não apenas de comportamentos do “outro”, mas de nós mesmos. Para refletirmos.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ficção, Educação e Trânsito
Trânsito, Educação e Xadrez
Uma publicação interessante sobre o uso desta modalidade lúdica para o âmbito do ensino e da aprendizagem
![O xadrez é um jogo de tabuleiro que pede um jogador muito atento, inteligente e com as adversidades de uma partida. O trânsito, da mesma](https://bahiapravoce.com.br/wp-content/uploads/2022/05/AnyConv.com__Topo-e-Card-.webp)
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Leonardo Campos
O xadrez é um jogo de tabuleiro que pede um jogador muito atento, inteligente e sagaz para lidar com as adversidades de uma partida. O trânsito, da mesma maneira, transforma o condutor em jogador e o coloca numa situação de atenção necessário, cuidado constante diante dos possíveis obstáculos, bem como uma postura defensiva para saber lidar com o “outro” que divide o mesmo espaço neste tabuleiro da vida. Foi com esta ideia que Eurípedes Kuhl, experiente no Serviço Militar, bem como em Administração e Segurança do Trabalho, desenvolveu Trânsito, Educação e Xadrez, uma publicação interessante sobre o uso desta modalidade lúdica para o âmbito do ensino e da aprendizagem, conteúdo que parece muito complexo em seu preâmbulo, mas que vai delineando as suas intencionalidades ao passo que cada página de leitura é avançada. Se você, caro leitor, é alguém como eu, um leigo total das estratégias do xadrez, recomendo que assista ao máximo de tutoriais que puder, leia manuais, consulte o passo a passo deste jogo de tabuleiro para que a sua dinâmica no âmbito educacional seja a mais produtiva possível, combinado?
Em sua abertura, o autor comenta brevemente o estabelecimento do Código de Trânsito Brasileiro, dando destaque aos avanços que surgiram com os desdobramentos da aplicação desta legislação em 1997. Ele reflete, por sua vez, que as nossas ruas e rodovias estão longe de atingirem os ideais previstos pelo CTB, haja vista as suas respectivas estruturas problemáticas. Além disso, nos permite refletir que não apenas a questão geográfica da mobilidade, mas o fator humano, algo que mesmo diante das punições previstas nos artigos legais, ainda é um ideal que distante e precisa, constantemente, ser alcançando por meio de campanhas e demais ações educativas. É quando entra o xadrez. A sua apresentação da famosa partida de 1851, intitulada A Imortal, é demasiadamente vaga, não nos deixando entender o propósito de sua inserção no material. É uma passagem superficial, desnecessária e deslocada. Mas não atrapalha o andamento educativo do livro.
Logo mais, há uma explicação básica para os elementos que compõem o tabuleiro, bem como um breve percurso histórico dos significados destas posições. Considerado como uma ciência autêntica, envolto em olimpíadas com jogadores que levam as suas regras com seriedade, o xadrez possui um tabuleiro com espaços em preto e branco. São as vias de condução das peças. Neste jogo, temos o Rei, a Torre, o Bispo, a Dama, o Peão e o Cavalo, todos integrantes desta travessia que mescla atenção, sagacidade e inteligência, na busca de um dos jogadores em apanhar as peças do adversário e dar o xeque-mate. Cada movimentação do jogador envolvido, em associação com a dinâmica do trânsito, é preciso atuar com atitudes seguras, eficientes, tendo em vista evitar colisões, incorreções que não permitem erro, levando-o ao trágico, dentre outras iniciativas formidáveis quando associadas com nossa conduta na mobilidade.
Diante do exposto, como já dito, no xadrez, o grande lance de jogador é a atenção. Se você se perde, adentra numa zona de perigo, como o trânsito. Pedestres, ciclistas, motociclistas e condutores precisam manter-se atentos, sem o uso indevido do celular, distantes dos efeitos do álcool e conscientes dos limites velocidades das vias que atravessam. No trânsito, temos que colocar em prática a humanidade que nos define e atuar de maneira educada, para que as coisas fluam adequadamente para todos. Adequado, aqui, designa segurança. Cada seção há uma frase de epígrafe, logo no começo da representação do quadro, como nos exemplos destacados nestas ilustrações. Didático, o autor relaciona posturas comuns do trânsito com a ação inconsequente ou devidamente cidadã de cada jogador diante do tabuleiro. Há o rude, o afobado, o confuso, o hábil, o atrevido, em linhas gerais, as cabíveis alegorias para o que encontramos cotidianamente no cenário da mobilidade, seja como pedestre a aguardar um ônibus, passageiro em deslocamento no interior do Uber, ciclista ou motociclista numa travessia pelas pistas que cortam as nossas cidades, em suma, qualquer situação de trânsito do nosso dia.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ficção, Educação e Trânsito
Rota de Colisão
Ao longo de suas 93 páginas, Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você debate segurança e cidadania no trânsito
![Os impactos dos sinistros de trânsito, fatais ou com vítimas acometidas por sequelas, tragédias que antes eram chamadas de acidentes, são apresentados por meio de um texto coeso, coerente e dinâmico em Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você, publicação de 2007, assinada pelos especialistas Eduardo Biavati e Heloisa Martins. O termo acidente, como nós sabemos, expressa algo imprevisto, furtivo, diferente do que contemplamos com horror em nosso cenário de mobilidade cotidiano, espaço onde situações evitáveis poderiam não acontecer e ceifar tantas vidas ativas, numa celeuma que causa desordem não apenas diante dos familiares e amigos enlutados, mas também ocasiona graves crises econômicas para uma nação que deixa de realizar amplos investimentos em outras áreas para atender aos vitimados com sequelas, dependentes de aposentadorias, bem como as cifras que os sinistros custam para o SUS. No livro, a cidade não deixa de ter a sua culpa. Zonas com infraestrutura inacabada, projetos problemáticos, assim como o comportamento humano no trânsito, carente de educação por parte de muitos condutores, pedestres e ciclistas. Focado na importância do exercício da cidadania, o conteúdo em questão é fluente, de poucas páginas e funciona como material para educar a população em geral, além de ser subsídio básico para projetos de educação para o trânsito.](https://bahiapravoce.com.br/wp-content/uploads/2022/05/WhatsApp-Image-2022-05-22-at-19.48.17.webp)
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Leonardo Campos
Os impactos dos sinistros de trânsito, fatais ou com vítimas acometidas por sequelas, tragédias que antes eram chamadas de acidentes, são apresentados por meio de um texto coeso, coerente e dinâmico em Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você, publicação de 2007, assinada pelos especialistas Eduardo Biavati e Heloisa Martins. O termo acidente, como nós sabemos, expressa algo imprevisto, furtivo, diferente do que contemplamos com horror em nosso cenário de mobilidade cotidiano, espaço onde situações evitáveis poderiam não acontecer e ceifar tantas vidas ativas, numa celeuma que causa desordem não apenas diante dos familiares e amigos enlutados, mas também ocasiona graves crises econômicas para uma nação que deixa de realizar amplos investimentos em outras áreas para atender aos vitimados com sequelas, dependentes de aposentadorias, bem como as cifras que os sinistros custam para o SUS. No livro, a cidade não deixa de ter a sua culpa. Zonas com infraestrutura inacabada, projetos problemáticos, assim como o comportamento humano no trânsito, carente de educação por parte de muitos condutores, pedestres e ciclistas. Focado na importância do exercício da cidadania, o conteúdo em questão é fluente, de poucas páginas e funciona como material para educar a população em geral, além de ser subsídio básico para projetos de educação para o trânsito.
Ao longo de suas 93 páginas, Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você debate segurança e cidadania no trânsito em seus seis capítulos curtos, todos ilustrados e com desenvolvimento de ideias pedagogicamente dinâmicas para o entendimento de todos os públicos. Trânsito e Transitar, o primeiro capítulo, versa sobre como o movimento das ruas depende da atividade humana que acontece ao redor dos espaços de circulação, apresentando questões sobre o desenho das cidades e a solução de alargamento das pistas como uma opção que não resolve os problemas no cenário da mobilidade urbana contemporânea, algo que envolve demolição de prédios, casas, indenizações, dentre outras circunstâncias. Construir novas avenidas em zonas já estabelecidas não é algo tão tranquilo quanto se imagina. Os autores refletem a quantidade de carros na rua, a questão do meio ambiente degradado pelos combustíveis e o desinteresse da população pelos modais no deslocamento, não apenas por culpa dos usuários, mas pelas condições precárias de transporte em muitas zonas urbanas brasileiras.
No desenvolvimento de As Regras: De Quem é A Vez, o texto relaciona os espaços urbanos com regras de um jogo, onde precisamos seguis as orientações adequadamente para vencer as etapas e conquistar a linha de chegada. São alegorias importantes para transformação do que está previsto por lei em explicações pedagógicas para o grande público. Obedecer às regras é algo chato? Sim, mas estamos num espaço coletivo, por isso, temos que levar em consideração os nossos interesses, mas as vontades alheias, afinal, não somos donos da rua. Existem centenas de regras no Código de Trânsito Brasileiro, a maioria, desconhecida pela população, sendo uma delas o destaque do capítulo: a hierarquia de responsabilidades ao trafegar, espaço que tem o pedestre como elemento mais frágil diante de ciclistas, carros, caminhões e ônibus.
Em Os Acidentes: Onde Mora o Perigo, terceiro capítulo da jornada de Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você, encontramos algumas pontuações sobre os chamados acidentes, agora sinistros de trânsito, conforme a atual legislação, eventos que não devem ser pensados como obras do destino, mas acontecimentos que podem ser evitados se todos que circulam pelas vias da cidade obedecessem ao que está disposto no CTB e também respeitasse o lugar de passagem de cada um. O grande índice de tragédias nas vias não para de crescer pelo fato de nós, agentes do processo de mobilidade cotidiana, não respeitamos adequadamente o outro, colocando-se muitas vezes como irresponsáveis. Uso de álcool, mesmo na quantidade mínima, não por o cinto de segurança e exceder a velocidade: três grandes problemas contemporâneos, somados ao mais recente de todos, o uso de celular na direção, situação que está, atualmente, entre as três mais perigosas e registradas nos casos de colisão e atropelamento no mundo.
No elucidativo Atropelamento e Lesão Cerebral, os autores falam sobre como a mídia menciona as tragédias, mas não dá o mesmo enfoque para as vítimas não fatais, figuras da tessitura cotidiana que custam muito para os cofres públicos, sejam por seus tratamentos ou processos de aposentadoria. No Brasil, a maioria dos sinistros ocorre entre sexta-feira (noite) e domingo (final da tarde). Por que será? No mundo de hoje, diríamos que é porque “sextou”. E é exatamente por isso, o que nos abre as portas para conteúdo de Álcool, óbvio e quase senso comum, mas parece que ainda não nos alertamos assertivamente para esta substância que é, ao lado do excesso de velocidade, um dos elementos responsáveis pelas tragédias no trânsito, algumas irreversíveis para os envolvidos. No desfecho, temos Colisões e Lesão Medular, uma exposição dos problemas causados em determinadas situações de sinistro. Os autores explicam o que ocorre com o nosso corpo por meio de exemplos que reforçam a pequenez dos humanos diante dos impactos da dinâmica física de uma colisão ou atropelamento. É tudo muito assustador, mas ainda assim, nos pegamos sem seguir as orientações para evitar tudo aquilo que é mostrado nos casos descritos pelo livro. Ademais, em seu encerramento, os autores pedem reflexão e postura dos leitores, fornecendo ótimas sugestões de leitura complementar.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ficção, Educação e Trânsito
Sem data, sem assinatura
O filme uma é história de luto considerada como uma das mais atordoantes do cinema contemporâneo
![colisões, capotamentos, bem como condutores alcoolizados ou sem cinto de segurança, para o estabelecimento da catarse. Sem Data,](https://bahiapravoce.com.br/wp-content/uploads/2022/05/Sem-Data-Sem-Assinatura-Topo.jpg)
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Leonardo Campos
Pode ser diferente em cada região do planeta, mas a constante taxa de sinistros de trânsito envolvendo vítimas fatais é uma realidade contemporânea que infelizmente devasta não apenas países economicamente desfavorecidos, mas também os lugares considerados de “primeiro mundo”. O cinema, sabiamente, já trabalhou diversas vezes com atropelamentos, colisões, capotamentos, bem como condutores alcoolizados ou sem cinto de segurança, para o estabelecimento da catarse. Sem Data, Sem Assinatura, um apurado exemplar do cinema iraniano recente, é uma destas narrativas arrebatadoras sobre os desdobramentos de uma situação evitável na vida daqueles que perderam alguém e na trajetória daqueles sufocados pela angústia e culpa, isto é, indivíduos que precisam lidar com as consequências de seus erros, numa punição que pode ser até ser mais severa que a aplicação de algo previsto na legislação, afinal, ser preso ou responder processo pode ser tão doloroso quanto acordar e dormir todos os dias pensando na vida do outro que você destruiu após agir de maneira indevida no trânsito.
Lançado em 2017, a produção dirigida por Vahid Jalilvand, também responsável pelo roteiro, escrito ao lado de Ali Zarnegar, é uma lição de drama assertivo. Em seus 104 minutos, acompanhamos a saga de um homem devidamente equilibrado em sociedade, aquele tipo de personagem que goza dos privilégios de sua profissão, numa existência confortável e tranquila, tendo os habituais altos e baixos que qualquer ser humano enfrenta cotidianamente, mas que não precisa lidar com dificuldades mais extremas para garantir a sua sobrevivência. Ele é o catalisador das reflexões sobre ética em Sem Data, Sem Assinatura, uma história de luto considerada como uma das mais atordoantes do cinema contemporâneo. Na trama, seguimos os passos de Kaveh (Amir Aghave), um médico que colide com uma moto numa situação inesperada durante uma de duas travessias diárias. Ele não comete aquilo que geralmente contemplamos horrorizados nos telejornais e em muitos filmes: a omissão de socorro.
O médico percebe que o filho do condutor, machucado no pescoço, sofreu as consequências da forte colisão, mas não teve a vida ceifada. Tranquilo, ele propõe ajuda e o encaminha para o atendimento hospitalar. O susto, no entanto, surge no dia seguinte, quando chega ao ponto de trabalho para mais um plantão. Descobre que o menino morto é a vítima do acidente. Na autopsia, a pessoa responsável pelo perito identificou um problema de intoxicação alimentar, mas Kaveh acredita que o motivo real tenha sido a pancada durante o sinistro de trânsito. E agora? Como lidar com essa dúvida corrosiva, acompanhada de um sentimento de culpa devastador? É assim que ele não fica quieto e resolve investigar as causas da morte do garoto. Será mesmo que ele deve se sentir responsável pelo falecimento? Aqui, o espectador é colocado diante de uma trama instigante sobre atos irrisórios que mudam para sempre as nossas vidas, escolhas do presente que determinam tacitamente o nosso futuro.
Nada é tão fácil quanto o esperado, talvez mais mastigado e melodramático se fosse uma narrativa de estrutura estadunidense. Sem Data, Sem Assinatura trabalha em torno de clichês, mas propõe uma abordagem mais complexa de sua proposta. Com muitas cenas no interior de carros, satisfatoriamente concebidas pela ótima direção de fotografia, o filme reflete a realidade iraniana da falta de liberdade de expressão, algo curiosamente destacado na divulgação da produção em sua época de lançamento, escolha narrativa que também dialoga com o que está designado como tema do filme, isto é, a travessia de personagens pela vida, os embates entre as pessoas, em colisões cotidianas repletas de tensões, a maioria psicológicas, mas também físicas, como a tragédia que envolve o médico Kaveh e Moosa (Navid Mohammadzadeh), pai do garoto que perde a vida, talvez pelo sinistro ou quem sabe, pela intoxicação alimentar.