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Ciência, Cultura & Sociedade

O pagode na Bahia: baixaria ou movimento artístico?

No texto de hoje vamos falar sobre o polêmico pagode baiano. Baixaria ou arte? Acesse e confira você mesmo a reflexão!

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acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano
Fotos: Divulgação

Professor Leonardo Campos

Tudo parecia muito inocente. Bastava chegar numa festa de família dos anos 1990 para esperar o momento em que alguém ousaria colocar um CD do grupo É o Tchan para tocar. Resultado: quase todo mundo levantava para dançar, e os que não dançavam, assistiam aos espetáculos alheios. Dizem que esta era uma época boa, inocente, dentre outras coisas. Será mesmo? Algo é certo: não havia nada de inocente. “Segurar o tchan”, “colocar a tcheca para sambar” e acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano na produção mais recente. Mesmo que as letras não trouxessem os elementos poéticos comuns ao que se convencionou a chamar de “boa música”, a banda e o trio de dançarinos que fizeram sucesso ao redor do Brasil e de todo o planeta tinham um projeto artístico. Era uma mescla de samba, axé music e música pop, com cenografias, coreografias e outros atrativos bem interessantes.

acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano

Não é preciso ser um especialista para perceber que a sonoridade do material que grupo É o Tchan fazia naquela época não pode ser comparado ao que se tornou o pagode baiano de hoje. A mescla de sons, os arranjos de algumas canções e a interessante representação multicultural das performances de dança, mesmo com toda a duplicidade de sentidos e insinuações sexuais, não carregavam a carga de violência simbólica e desvalorização da mulher, questões comuns ao que se realiza dentro deste campo de produção atualmente, mais voltado ao processo de subjugação do corpo feminino, da humilhação aos homossexuais, com letras voltadas ao anseio pela ostentação.

Diante do breve panorama exposto, surge uma questão bastante inquietante: o tão criticado e rentável pagode baiano pode ser considerado movimento artístico ou trata-se apenas de um amontoado de baixarias? Como podemos trafegar por esse caminho reflexivo sem entrar pelos atalhos perigosos do preconceito musical?

 

Momento de Epifania

A questão me surgiu recentemente, durante um momento de leitura em meu lar. Do lado de dentro, sentado em minha cama, me transportava para o próximo capítulo do romance Exorcismo, de Thomas B. Allen, quando me dei conta de que o som que explodia aos ouvidos do lado de fora não era apenas uma composição instrumental ruim, mas carregava uma letra extremamente curiosa.  Fui até a cozinha, peguei um copo com água e ainda no corredor, me perguntei: é isso mesmo que estou escutando? “Senta na piroca do negão do whatsapp”? Não satisfeito, voltei ao meu quarto, deixei o livro um pouco de lado e continuei a analisar o que escutava. A faixa já havia terminado e a música seguinte dizia algo como “vai pegar a minha foto em casa para…”. Não consegui entender o final, pois é onde habita um dos problemas da evolução do pagode baiano: não há uma boa sonoridade!

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Quando digo “boa”, não estou me referindo a um piano ou qualquer outro instrumento musical oriundo do mundo erudito, mas ao som que impede que você entenda o que se canta, tamanha a falta de equilíbrio dos diversos instrumentos que acompanham tal música. Como professor e crítico cultural, constantemente me encontro debruçado em analisar as coisas, desde postagem dos meus alunos em redes sociais aos mais variados tipos de discursos midiáticos, cinematográficos etc. Diante desta manifestação musical curiosa, fiz uma breve viagem no tempo, rememorei os anos 1990 e toda a ludicidade do É o Tchan, das danças, do vigor de Carla Perez, da erotização promovida pelas músicas e coreografias sensuais, e me perguntei: o que será do pagode baiano atual? É possível criar uma definição sem adentrar em polêmicas?

acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano

Em busca de compreensão: vamos compreender o pagode baiano historicamente?

As origens estilísticas do pagode baiano nos pedem um exercício diacrônico. É preciso mergulhar historicamente no samba duro, samba de roda, ritmos do candomblé, dentre outros. Pandeiros, percussão e cavaco, instrumentos comuns ao estilo, juntamente com sintetizadores, demonstra o som conhecido por fazer bastante sucesso em regiões periféricas de Salvador e cidades do interior, material que também é consumido pelas elites, hipócritas algumas vezes quando discutem o assunto com certa superioridade. Com traços do funk carioca e do arrocha interiorano, temos no pagode baiano uma atualização da mixagem entre os bailados indígenas e os batuques africanos, junção que é parte do nosso processo violento de colonização no século XVI.

Ligado à dança, o ritmo é herdeiro do samba de roda, comum no recôncavo baiano, expressão cultural coreográfica, conectada com traços da capoeira, manifestação cultural que sai das senzalas e encontra as ruas após a abolição. Por isso, é um ritmo que já em suas bases, sofre o preconceito e a opressão de uma sociedade que vê com ojeriza qualquer expressividade afro-brasileira.

E é por este motivo que temos que levantar um numeroso panorama de questionamentos sobre o tema, para evitar ser taxativo e tornar a reflexão em torno do tema um manancial de posturas taxativas e preconceituosas. Se formos observar a duplicidade de sentidos, não devemos ficar na hipocrisia e condenar o pagode veementemente, como se fossem o marco zero da baixaria no campo musical baiano. Lá nos anos 1980, Sarajane e a sua “rodinha” já brincavam com o duplo sentido, assim como Luís Caldas, “pai” do axé music, também flertava com duplicidades sonoras ao dizer que a “nega que não curte pentear os cabelos duros” precisa ser pega “para passar batom na boca e na bochecha”. O que diferencia estas manifestações dos anos 1980 e 1990 do que tem sido realizado na atualidade? A resposta é simples: a degradação da mulher, a ojeriza aos homossexuais, a perpetuação do racismo e a ode ao comportamento violento. As composições são quase sempre repetidas. Quem nunca escutou, mesmo que obrigado, hits como “Rala tcheca no chão”, “gostoso até o talo”, “Me dá patinha sua cachorrinha”?

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Se não teve esse desprazer, pode se nomear como uma das pessoas mais sortudas do mundo. Tais composições são apenas um pedacinho da ponta do iceberg de baixarias que são lançadas constantemente. Mais uma vez, a minha profissão, ao lidar com um amplo número de jovens cotidianamente, me permite conhecer estas produções e observá-las bem de perto. Como dito por um deles recentemente, “não me importo com a letra, mas sim com o ritmo”. Outra alegou que acha bobagem se importar com o que a letra diz, pois “não passa de escapismo e de representação”. Outra informação que se “ela quer tomar murro na costela”, é uma escolha dela. Diante do exposto, me questionei: será mesmo? As últimas faixas analisadas tratam as mulheres com adjetivos de baixo calão, tais como “vagabunda”, “safada” e “ordinária”. Será que é isso que as mulheres realmente querem para si? Ser alvo de um ritmo com som nocivo, barulhento, tomado pela falta de harmonização dos ritmos mesclados, com letras que copiam os funks cariocas e os deixam ainda piores, bem como a apologia sexual como único recurso para chocar o ouvinte. É isso mesmo que as mulheres querem para suas agendas cidadãs atuais?

 

 

acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano

Lembro bem que nos anos 1990, Carla Perez, um dos maiores ícones do pagode baiano, foi comparada a Rita Baiana, do romance O Cortiço, clássico do nosso naturalismo literário, publicado por Aluísio de Azevedo. Tal teorização que a relacionava com os aspectos míticos da famosa personagem era apenas um dos textos que questionavam a sua posição dentro do campo cultural brasileiro da época. No programa De Frente com Gabi, de maneira bastante prepotente e exalando uma falsa simpatia, a quase sempre ótima entrevistadora Marília Gabriela questionou se a dançarina tinha noção da sua promoção da erotização das garotas e, por tabela, da chegada prematura da menstruação e de outros pormenores ligados à sexualidade. Era um problema a ser pensado. Sim, era. Mas acho que a coisa hoje ganhou um caminho muito mais tenebroso.

As letras de pagode ganharam uma encapsulação tão baixa que a deputada Luíza Maia (PT-BA) trouxe em 2012 o projeto de lei que clamava pela não viabilização de verba pública para promover espetáculos com bandas que trabalham com essa modalidade musical. Polêmico, o projeto foi aprovado na Assembleia Legislativa da Bahia, no dia 27 de março de 2012, por 43 votos a 9. Como havia de ser, o debate dividiu opiniões. Para Moema Gramacho, “não se pode usar recursos públicos para incentivar a violência ou macular a imagem da mulher”. No entanto, para o antropólogo Roberto Albergaria, representante da Universidade Federal da Bahia, tal projeto é “um precedente perigoso para a democracia”. Quem coadunou com as suas ideias foi o deputado Elmar Nascimento, ao alegar que “nenhum deputado é favorável a violência, mas é preciso estar atento ao artigo 5º da Constituição, que diz ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de licença ou censura”.

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Num debate realizado em um programa jornalístico da TV Record Bahia na época, Leo Kret e a deputada Luíza Maia foram colocadas para debater. Enquanto a primeira questionava o acesso dos homossexuais periféricos ao agendamento cultural da sociedade elitista, a segunda dizia que com avanços alcançados com a Lei Maria da Penha, não podemos sequer pensar em investir dinheiro público, oriundo de nossos impostos, para financiar bandas de pagode que apresentam em seus espetáculos, versos com menções indiretas ao estupro, violência e humilhação da mulher. Durante o programa, para ampliar a polêmica, os editores colocaram no telão alguns trechos de Caetano Veloso cantando Não Enche e perguntaram: mas ele pode não é mesmo? Depois, tomaram o clássico Geni e o Zepelim, de Chico Buarque, e questionaram: ele também? Como o leitor pode observar, são reflexões que levantam mais questionamentos que afirmações incisivas. E essa é a ideia deste texto, interrogativo até mesmo em seu título.

Debates e polêmicas: o pagode baiano é arte?

O panorama nos leva ao seguinte questionamento: mas, afinal, o que é arte? Acho que esta é uma das questões mais polêmicas de todos os tempos para quem trabalha com cultura e representação. Na graduação, no mestrado e quase sempre no dia a dia, já assisti aos mais variados debates quase intermináveis sobre tal questionamento complexo. Lembro, certa vez, de ter lido um texto que citava Fernando Pessoa e dizia que “a ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são”. Se nos basearmos nesta afirmação, o pagode seria, sem dúvida, um movimento artístico onde mulheres se sentem vadias, objetos sexuais e os homens imperadores dos seus reinos lotados de escravas sexuais, abusadas e tolhidas dos seus direitos mais básicos.

No site História das Artes, local onde foi encontrada a citação de Fernando Pessoa, o organizador conceitua arte como a capacidade do homem de criar e expressar-se, transmitindo ideias, sensações e sentimentos através da manipulação de materiais e meios diversos. Se nos basearmos nesta afirmação, o pagode baiano pode, reforço mais uma vez, ser arte, afinal, transmite ideias machistas, homofóbicas e violentas através da livre expressão de alguns homens que, munidos de um tamborim, percussão, sintetizadores e um microfone, utilizam meios como o trio elétrico e os palcos de seus shows para emitir suas sensações e sentimentos. Hoje, no entanto, já temos mulheres e travestis, como A Dama do Pagode e Tertuliana, a primeira inicialmente a reforçar tudo que já havia sido feito no tal campo de produção, mas um pouco consciente nos últimos trabalhos, e a segunda, dona de sucessos como Murro na Costela do Viado, Seu Marido Me Banca e Me Fode, Ele Senta em Cima da Prostituta, dentre outros.

Questionar o status do pagode enquanto arte não é algo complexo. A resposta, por sinal, é bastante simples e objetiva: sim, o pagode é arte, manifestação de sentimentos e expressão cultural humana para consumo de determinados grupos. O que é colocado em questão aqui é se queremos ou não, como cidadãos em busca de um mundo menos violento e com pessoas que exerçam devidamente a sua cidadania, consumir esse tipo de arte que geralmente subjuga a mulher e a coloca num lugar de mero objeto. As feministas vão dizer que é uma opção de elas escolherem isso ou não. E você, caro leitor, o que acha?

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Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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1 Comentário

1 Comentário

  1. Mara Rubia Moraes Santos

    13 de março de 2021 at 10:38

    Pagode baiana séculos atrás era visto ,como ruma de cultura e luta que chegou com os escravos e a onde aqui já estava o molejo e o movimento dos índios, onde veio uma mistura boa e de pensamento que representaram vou lutar sempre.
    Ao passa do séculos veio uma visão retocida de ginga e batuque para se divertir e ganhar dinheiro usando nome de pagode baiana ,na realidade perdendo a essência da luta e a verdade dos movimentos do que é pagode.

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Ciência, Cultura & Sociedade

Gattaca: Experiência Genética

A trama se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética

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Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos
Foto: Divulgação

Leonardo Campos

Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos, um campo cheio de regras, axiomas, leis e teoremas, estabelecidos para que os responsáveis por suas manipulações sigam fielmente os direcionamentos, nalgumas vezes, transbordados quando há vantagens que nem sempre dialogam com aquilo que se convencionou a chamar de postura ética do pesquisador. Ao longo de seus envolventes 106 minutos, contemplamos uma trama que reflete os impactos da intervenção genética em nosso mundo, na produção Gattaca, dividido entre os seres humanos gerados biologicamente e aqueles concebidos graças ao advento das evoluções científicas. Neste cenário sombrio, temos um eficiente debate sobre o papel da ciência em nosso cotidiano, em especial, o desenvolvimento da genética na dinâmica dos seres vivos, numa reflexão sobre bioética e seus desdobramentos, afinal, por mais positiva que seja o avanço tecnológico neste campo, estamos lidando com a perigosa eugenia, algo que nas mãos da humanidade conflituosa, pode gerar caos.

A trama Gattaca se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética. Numa espécie de processo eugênico, a ciência faz a separação dos indivíduos válidos e inválidos, sendo os primeiros os dominantes nas relações sociais.  O cineasta Andrew Niccol adentra pelo viés das narrativas sobre o lado vilanesco da ciência, sabiamente trabalhado em ao longo da história do cinema, em filmes como Metrópolis, de Fritz Lang, dentre outros. Aqui, ele demonstra o quão a sociedade fictícia se encontra submissa aos ditames de um discurso científico opressivo, numa existência onde os seres humanos artificiais ocupam melhores posições e os considerados inferiores, isto é, com probabilidades de problemas genético, os espaços de menor favorecimento social. Em Gattaca: A Experiência Genética, o espectador é apresentado ao mundo dos filhos da fé e dos filhos da ciência. Ao nascer, o individuo que antes tinha o destino nas mãos da vontade divina agora pode ter o seu perfil delineado pela engenharia genética. Logo em seu nascimento, apenas uma gota de seu sangue permite a impressão de um diagnóstico que conduzirá toda a sua vida, num processo que flerta com todas as etapas de uma tradicional investigação científica, da introdução da proposta ao estabelecimento dos objetivos, da justificativa, do desenho antecipado do problema e da hipótese, aos métodos selecionados e os desdobramentos das análises que tem como destino, o encontro de respostas assertivas.

Nestes cálculos, as probabilidades definem as suas qualidades genéticas, psicológicas, físicas e possíveis doenças e até o desenvolvimento da causa de morte no futuro das pessoas. Diante do exposto, conhecemos o adulto Vincent Freeman (Ethan Hawke), interpretado por Mason Gamble na infância e por Chad Christ na adolescência, um homem que é filho de Deus, ou seja, nasceu com as seguintes porcentagens nas chances para desenvolvimento de problemas: 60% para questões neurológicas, 42% para depressão, 89% de capacidade de se concentrar e 92% para a possibilidade de desenvolver distúrbios cardíacos. Desde a sua infância, ele sonha em ingressar no projeto Gattaca, uma agência que treina os melhores astronautas para missões espaciais exploratórias. O grande conflito é que a sua ficha é taxativa: ele não possui os requisitos para alcançar uma vaga, pois é um filho de Deus, portanto, possui elementos que o tornam uma figura enfraquecida diante das vantagens físicas dos filhos da ciência. Além disso, psicologicamente ele é um personagem circunspecto, desanimado, haja vista a sua trajetória em família.

Quando pequeno, seus pais tiveram outro filho, Anton Freeman (Loren Dean), uma criança oriunda da ciência, socialmente com mais credibilidade que Vincent. Assim, a repressão advinda do campo científico não se mantém emaranhado em sua vida apenas na fase adulta, mas ao longo de toda a sua formação. Contemplamos tudo isso ao longo da narração em primeira pessoa do filme, com flashbacks explicativos para a postura do protagonista Vincent, figura que rouba a identidade de um nadador desabilitado após um acidente que o deixou tetraplégico, falsificação utilizada para adentrar no espaço de seu tão sonhado projeto de vida, algo que, no entanto, o coloca em risco. Após um assassinato, as coisas mudam e mesmo após a transformação física do personagem, bem como alguns ajustes de ordem comportamental, todos se tornam alvo de uma investigação que pode desmascará-lo. Ao tentar driblar o sistema e subverter uma ordem que delineia destinos predeterminados pela manipulação do DNA para a fabricação de organismos “melhorados”, Vincent também põe em risco a sua vida, numa perigosa e empolgante jornada que funciona como entretenimento de qualidade, bem como reflexões filosóficas intrigantes sobre a relação da humanidade com os próprios pilares tecnológicos que cria.

Na composição da estrutura cinematográfica de Gattaca: A Experiência Genética, o cineasta Andrew Niccol contou com uma eficiente equipe técnica, responsável pelo assertivo estabelecimento da materialidade fílmica em prol do tema debatido nos diálogos e situações do texto dramático. A textura percussiva de Michael Nyman, imersiva, acompanha as cenas que se passam pelos cenários devidamente dirigidos artisticamente pelo design de produção assinado por Jan Roells, setor que cria ambientes equilibrados, próximos do realismo de nosso mundo contemporâneo, mas com elementos que emulam as fascinantes ficções com teor científicos, conhecidas por delinear em cena, traços estéticos que nos remetem ao “futurismo”. Ademais, na direção de fotografia, Slawomir Idziak cria ângulos que nos permitem sentir a vulnerabilidade de alguns personagens, com planos que reforçam o contexto de tensão no qual as figuras ficcionais estão espalhadas, uma malha narrativa onde a ditadura da engenharia genética reforça preconceitos e fixa um amontado de castas sociais conflituosas, imersas num angustiante lugar de controle social e determinismo genético, retrato da nossa realidade, alegorizado por meio do brilhante tema desenvolvido nesta trama sobre a ciência e seus impactos positivos e negativos para a humanidade, afinal, as redes sociais e as novas tecnologias estão ai para nos mostrar que apesar de dominarmos aquilo que pode melhorar a nossa vida, também nos tornamos reféns de seus efeitos colaterais, não é mesmo?

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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Ciência, Cultura & Sociedade

Introdução: A Porta de Entrada de Seu Projeto de Pesquisa

Este é um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica

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Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e

Leonardo Campos

Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e elucidativo artigo com toques de tutorial, explanarei sobre os principais passos para adoção durante a elaboração da parte introdutória de seu projeto, um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica. Como porta de entrada, o seu texto deve ser limpo, atraente, coeso, coerente, fornecer subsídios para comprovação da relevância social de seu tema, bem como segurança diante da proposta escolhida para trabalho. Sendo o primeiro contato com as perspectivas de seu processo investigativo, é na introdução que você expõe a questão da sua pesquisa, o desenvolvimento do problema e a pertinência de sua hipótese, num cartão de visitas que precisa convencer os leitores sobre a significância de sua jornada.

Observe este infográfico. Leia. Faça uma análise e depois reflita sobre os pontos abordados. Foi produzido para um curso de Enfermagem, mas pode ser pensado para qualquer outra área do conhecimento. Ademais, não precisa ser seguido fidedignamente, mas adaptado para a sua realidade de pesquisa.

Observou. Descreverei mais detalhadamente sobre os pontos adiante. Sigamos.

O número de páginas para a introdução é relativo e depende das normas dispostas nos editais da instituição na qual você desenvolve a pesquisa. O seu tema deve ocupar o maior espaço do texto, numa escrita que pode (e deve) contemplar os principais conceitos, um percurso histórico do tema, dados de outras pesquisas (quando houver) realizadas anteriormente, num processo explicativo do autor (você) para o leitor, tendo como uma das principais preocupações, a determinação da abrangência da pesquisa. Recentemente, uma estudante de Jornalismo me abordou para uma orientação que se referia ao fenômeno da Cultura do Cancelamento. Na proposta introdutória, ela não especificava qual era o seu recorte temporal, bem como o seu objeto. Se este fosse um projeto esboçado para um edital de seleção para mestrado, doutorado ou adentrar numa iniciação científica, provavelmente o material seria descartado, com a reprovação divulgada nos resultados posteriormente. Explico os motivos.

Mesmo que o título forneça pistas, o texto introdutório precisa evidenciar a natureza do trabalho de maneira mais elucidativa possível. Deve atravessar, talvez indiretamente, os objetivos, a finalidade da pesquisa e a justificativa. Lembre-se, caro leitor: é na introdução que fisgamos o leitor, neste caso, os avaliadores. É um texto onde teremos uma ideia geral do projeto, parte onde o autor diz por quais motivos escolheu o assunto, tendo em vista delinear a importância de seu conteúdo. Somente na justificativa foi possível compreender que a estudante em final de curso se referia ao cancelamento por meio de uma observação detida aos participantes do reality show Big Brother Brasil, numa análise pertinente sobre os desdobramentos das opiniões destes indivíduos durante a participação no programa, culminando na aceitação ou ojeriza do público em relação aos seus posicionamentos, no linchamento virtual das redes sociais e afins. Observe que uma temática interessante quase deixou de ser levada adiante por falta de comprometimento com o texto de abertura, um trecho valioso, tal como o preâmbulo de filme, série ou romance que prende a nossa atenção e mesmo que decepcione, nos leva adiante em sua jornada.

Assim é com a introdução se sua pesquisa. É o momento de contextualização dos caminhos pavimentados em sua proposta. Precisa ser atrativa, motivar a continuidade do interesse de quem lê (e avalia), bem como traçar as contribuições advindas do tema recortado na jornada que você pretende trilhar em seu projeto. O texto? Claro, conciso e “preciso”. Como já mencionado, demonstrar os antecedentes de sua abordagem, “produzir um design” para que o leitor compreenda quão pertinente é a sua linha de raciocínio para a investigação escolhida, numa escrita que deve prezar pelo tom persuasivo e, num movimento questionador, levantar indagações sobre a temática, numa conexão assertiva com as partes subsequentes, isto é, um ritmo empolgante na abertura, para que os objetivos, justificativas, hipóteses, problemas, metodologias, mapeamento bibliográfico, orçamento e cronograma, bem como os anexos e referências consultadas no formato solicitado pela ABNT estejam organicamente unificados como partes constituintes de uma tessitura alinhada, coesa e coerente com os seus propósitos.

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Boa escrita!

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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Ciência, Cultura & Sociedade

Os tipos de conhecimento em `Quase Deuses`

A narrativa traz para a cena os impasses de personagens em buscar explicações para as investigações científicas que empreendem

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Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta
Fotos: Divulgação

Leonardo Campos

Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta que se baseia no roteiro de Robert Caswell e Peter Silverman para nos contar uma edificante história de superação lançada em 2004, uma saga de dedicação e empreendedorismo que atualmente é bastante mencionada em aulas de projeto de vida, cursos de metodologia da pesquisa, dentre outras áreas da aprendizagem humana. Tocante, sem apelar para um tom novelesco excessivo, algo comum na seara das produções cinematográficas para televisão, a narrativa traz para a cena os impasses de personagens mergulhados no interesse crítico para buscar explicações para as investigações científicas que empreendem, tendo o campo da medicina como espaço de desenvolvimento dos conflitos dramáticos internos, isto é, situados num caso específico de análise, bem como os externos, conectados com os desafios pessoais na vida destas figuras ficcionais com vidas atribuladas e cheias de obstáculos, mas focadas em encontrar as soluções que escreveriam os seus nomes para a eternidade, haja vista a inspiração numa história real para a concepção do filme.

Ao longo dos 110 minutos de Quase Deuses, nos deparamos com o cotidiano de Vivien Thomas (Yassin Bey) e Alfred Blalock (Alan Rickman), o primeiro, um homem negro, pobre, desacreditado diante da possibilidade de saída do determinismo que o sufoca, sendo o segundo, um médico renomado da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, ambos situados na década de 1940, uma era de conflitos bélicos mundiais e muitas mudanças de paradigmas sociais.  A relação deles começa depois que Vivien consegue uma vaga de faxineiro na universidade. Curioso, ele sempre executa os seus serviços observando como as coisas funcionam ao redor, numa postura de pesquisador. O rapaz não quer apenas limpar e receber o seu salário no final do período, mas conhecer como se desdobram os processos por onde passa. Ele tem faro de investigador, posicionamento inicial que o fará ir tão longe, mais que o esperado, tornando-se um renomado cientista e médico, ganhador do Honoris Causa, em 1976. Acompanhamos cada passo seu com a trilha sonora emotiva de Christopher Young, importante para o impacto dramático de cada passagem transformadora na vida destes personagens que aprendem muito entre si.

Voltemos ao contato entre a dupla. Ao perceber que Vivien Thomas é um homem interessado e curioso, o Dr. Alfred começa a lhe garantir algumas oportunidades adicionais. Há momentos de observação de experimentos, contemplação de procedimentos, numa jornada que permite ao faxineiro sair da posição fixa importante, mas redutora, levando-o como auxiliar para o Hospital John Hopkins, numa época em que se relacionar com pessoas negras era tabu, tempo conflituoso que exigir ceder o lugar para os brancos num transporte público ou ter banheiros diferentes para cada grupo, em linhas gerais, uma tenebrosa fase da história humana que de vez em quando, se repete na contemporaneidade, por mais que afirmemos que passamos por consideráveis mudanças sociais. A esposa de Vivien, sempre preocupada, teme que as experiências do marido sejam ousadas demais e os deixem numa posição comprometedora futuramente. Ele, persistente, segue o seu sonho e consegue convencer a todos de sua competência, num trunfo belíssimo.

Sua trajetória é de superação sem aderir aos milagres ou religiosidade. Vivien Thomas é técnico no que faz, focado na metodologia, humilde quando os caminhos não levam para o esperado e consciente da necessidade de recomeçar quando percebe que realizou uma escolha equivocada. Em sua pesquisa com animais, faz procedimentos e experimenta muito, antes de chegar aos resultados finais, uma aula para a juventude contemporânea impaciente e obcecada pelo Google como via exclusiva para as suas respostas. É na exatidão científica que o personagem prospera, numa era de tantas dispersões e dificuldades como qualquer outra, marcada pela recessão econômica, desdobramento da Crise de 1929, época de taxas altíssimas de desemprego e miséria, queda do poder de compra e da renda, bem como da produção industrial em escala mundial. Sem falar na já mencionada segregação racial, um impasse que poderia ter acabado de vez com os primeiros passos galgados por Vivien Thomas, ao lado do Dr. Alfred, seu mentor, figuras unificadas para a resolução da Síndrome do Bebê Azul, um problema cardiológico que foi resolvido depois de muito trabalho, leitura, investigação e testes laboratoriais, em suma, após uma jornada exaustiva, mas necessária, de pesquisa embasada por métodos sérios.

Eles precisam descobrir como resolver a cianose provocada pela deficiência no transporte de oxigênio no sangue do bebê que desenvolve o problema quando nasce, nalguns casos, logo quando pequeno, uma condição que o deixa com a pela azulada ou arroxeada, cor que pode ser efeito da junção de sangue oxigenado com o não oxigenado, problema de saúde oriundo de má formação congênita. É uma situação raríssima que encontrou respostas significativas na empreitada do médico e de seu auxiliar. Nós contemplamos estas passagens com a direção de fotografia de Donald M. Morgan, eficiente na captação dos momentos de duelo entre os investigadores e a sociedade, personagens que atravessem os cenários do design de produção de Vincent Peranio, também assertivo ao emular com cautela as décadas por onde a trama se passa, além de construir um espaço de trabalho para a dupla que é simples, mas imersivo no que tange aos aspectos visuais de um local para experimentos científicos. Ademais, Quase Deuses também é uma narrativa para reflexão sobre os diversos tipos de conhecimento, sabia?

Nos momentos em que os dois homens debatem sobre como descobrir a cura para a cura do bebê e assim, explicar tal fenômeno, nós temos pontos de articulação com o conhecimento filosófico, obtido na lógica e na construção de conceitos. Após numerosas tentativas com animais que não dão certo, os testes acabam levando Vivien para o seu objetivo, num diálogo com o que chamamos de conhecimento sensível, aquele obtido através dos sentidos, neste caso, pelo olhar atento do personagem. Quando um representante religioso deseja intervir na cirurgia, alegando que os médicos querem interceder diante da vontade divina, temos impregnado o conhecimento religioso. No caso do conhecimento científico, podemos contemplar a sua passagem em diversos momentos de Quase Deuses, em especial, quando Vivien Thomas se apaixona pelos estudos na área de medicina e começa a devorar todos os livros possíveis sobre o assunto, numa busca por problemas, hipóteses, respostas por meio de experimentos e investigação.

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Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
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