
Professor Leonardo Campos
Tudo parecia muito inocente. Bastava chegar numa festa de família dos anos 1990 para esperar o momento em que alguém ousaria colocar um CD do grupo É o Tchan para tocar. Resultado: quase todo mundo levantava para dançar, e os que não dançavam, assistiam aos espetáculos alheios. Dizem que esta era uma época boa, inocente, dentre outras coisas. Será mesmo? Algo é certo: não havia nada de inocente. “Segurar o tchan”, “colocar a tcheca para sambar” e acompanhar “o trenzinho da sacanagem” nunca foram chamadas inocentes, mas ao menos, se diferenciava bastante do que temos como opção de pagode baiano na produção mais recente. Mesmo que as letras não trouxessem os elementos poéticos comuns ao que se convencionou a chamar de “boa música”, a banda e o trio de dançarinos que fizeram sucesso ao redor do Brasil e de todo o planeta tinham um projeto artístico. Era uma mescla de samba, axé music e música pop, com cenografias, coreografias e outros atrativos bem interessantes.
Não é preciso ser um especialista para perceber que a sonoridade do material que grupo É o Tchan fazia naquela época não pode ser comparado ao que se tornou o pagode baiano de hoje. A mescla de sons, os arranjos de algumas canções e a interessante representação multicultural das performances de dança, mesmo com toda a duplicidade de sentidos e insinuações sexuais, não carregavam a carga de violência simbólica e desvalorização da mulher, questões comuns ao que se realiza dentro deste campo de produção atualmente, mais voltado ao processo de subjugação do corpo feminino, da humilhação aos homossexuais, com letras voltadas ao anseio pela ostentação.
Diante do breve panorama exposto, surge uma questão bastante inquietante: o tão criticado e rentável pagode baiano pode ser considerado movimento artístico ou trata-se apenas de um amontoado de baixarias? Como podemos trafegar por esse caminho reflexivo sem entrar pelos atalhos perigosos do preconceito musical?
Momento de Epifania
A questão me surgiu recentemente, durante um momento de leitura em meu lar. Do lado de dentro, sentado em minha cama, me transportava para o próximo capítulo do romance Exorcismo, de Thomas B. Allen, quando me dei conta de que o som que explodia aos ouvidos do lado de fora não era apenas uma composição instrumental ruim, mas carregava uma letra extremamente curiosa. Fui até a cozinha, peguei um copo com água e ainda no corredor, me perguntei: é isso mesmo que estou escutando? “Senta na piroca do negão do whatsapp”? Não satisfeito, voltei ao meu quarto, deixei o livro um pouco de lado e continuei a analisar o que escutava. A faixa já havia terminado e a música seguinte dizia algo como “vai pegar a minha foto em casa para…”. Não consegui entender o final, pois é onde habita um dos problemas da evolução do pagode baiano: não há uma boa sonoridade!
Quando digo “boa”, não estou me referindo a um piano ou qualquer outro instrumento musical oriundo do mundo erudito, mas ao som que impede que você entenda o que se canta, tamanha a falta de equilíbrio dos diversos instrumentos que acompanham tal música. Como professor e crítico cultural, constantemente me encontro debruçado em analisar as coisas, desde postagem dos meus alunos em redes sociais aos mais variados tipos de discursos midiáticos, cinematográficos etc. Diante desta manifestação musical curiosa, fiz uma breve viagem no tempo, rememorei os anos 1990 e toda a ludicidade do É o Tchan, das danças, do vigor de Carla Perez, da erotização promovida pelas músicas e coreografias sensuais, e me perguntei: o que será do pagode baiano atual? É possível criar uma definição sem adentrar em polêmicas?
Em busca de compreensão: vamos compreender o pagode baiano historicamente?
As origens estilísticas do pagode baiano nos pedem um exercício diacrônico. É preciso mergulhar historicamente no samba duro, samba de roda, ritmos do candomblé, dentre outros. Pandeiros, percussão e cavaco, instrumentos comuns ao estilo, juntamente com sintetizadores, demonstra o som conhecido por fazer bastante sucesso em regiões periféricas de Salvador e cidades do interior, material que também é consumido pelas elites, hipócritas algumas vezes quando discutem o assunto com certa superioridade. Com traços do funk carioca e do arrocha interiorano, temos no pagode baiano uma atualização da mixagem entre os bailados indígenas e os batuques africanos, junção que é parte do nosso processo violento de colonização no século XVI.
Ligado à dança, o ritmo é herdeiro do samba de roda, comum no recôncavo baiano, expressão cultural coreográfica, conectada com traços da capoeira, manifestação cultural que sai das senzalas e encontra as ruas após a abolição. Por isso, é um ritmo que já em suas bases, sofre o preconceito e a opressão de uma sociedade que vê com ojeriza qualquer expressividade afro-brasileira.
E é por este motivo que temos que levantar um numeroso panorama de questionamentos sobre o tema, para evitar ser taxativo e tornar a reflexão em torno do tema um manancial de posturas taxativas e preconceituosas. Se formos observar a duplicidade de sentidos, não devemos ficar na hipocrisia e condenar o pagode veementemente, como se fossem o marco zero da baixaria no campo musical baiano. Lá nos anos 1980, Sarajane e a sua “rodinha” já brincavam com o duplo sentido, assim como Luís Caldas, “pai” do axé music, também flertava com duplicidades sonoras ao dizer que a “nega que não curte pentear os cabelos duros” precisa ser pega “para passar batom na boca e na bochecha”. O que diferencia estas manifestações dos anos 1980 e 1990 do que tem sido realizado na atualidade? A resposta é simples: a degradação da mulher, a ojeriza aos homossexuais, a perpetuação do racismo e a ode ao comportamento violento. As composições são quase sempre repetidas. Quem nunca escutou, mesmo que obrigado, hits como “Rala tcheca no chão”, “gostoso até o talo”, “Me dá patinha sua cachorrinha”?
Se não teve esse desprazer, pode se nomear como uma das pessoas mais sortudas do mundo. Tais composições são apenas um pedacinho da ponta do iceberg de baixarias que são lançadas constantemente. Mais uma vez, a minha profissão, ao lidar com um amplo número de jovens cotidianamente, me permite conhecer estas produções e observá-las bem de perto. Como dito por um deles recentemente, “não me importo com a letra, mas sim com o ritmo”. Outra alegou que acha bobagem se importar com o que a letra diz, pois “não passa de escapismo e de representação”. Outra informação que se “ela quer tomar murro na costela”, é uma escolha dela. Diante do exposto, me questionei: será mesmo? As últimas faixas analisadas tratam as mulheres com adjetivos de baixo calão, tais como “vagabunda”, “safada” e “ordinária”. Será que é isso que as mulheres realmente querem para si? Ser alvo de um ritmo com som nocivo, barulhento, tomado pela falta de harmonização dos ritmos mesclados, com letras que copiam os funks cariocas e os deixam ainda piores, bem como a apologia sexual como único recurso para chocar o ouvinte. É isso mesmo que as mulheres querem para suas agendas cidadãs atuais?
Lembro bem que nos anos 1990, Carla Perez, um dos maiores ícones do pagode baiano, foi comparada a Rita Baiana, do romance O Cortiço, clássico do nosso naturalismo literário, publicado por Aluísio de Azevedo. Tal teorização que a relacionava com os aspectos míticos da famosa personagem era apenas um dos textos que questionavam a sua posição dentro do campo cultural brasileiro da época. No programa De Frente com Gabi, de maneira bastante prepotente e exalando uma falsa simpatia, a quase sempre ótima entrevistadora Marília Gabriela questionou se a dançarina tinha noção da sua promoção da erotização das garotas e, por tabela, da chegada prematura da menstruação e de outros pormenores ligados à sexualidade. Era um problema a ser pensado. Sim, era. Mas acho que a coisa hoje ganhou um caminho muito mais tenebroso.
As letras de pagode ganharam uma encapsulação tão baixa que a deputada Luíza Maia (PT-BA) trouxe em 2012 o projeto de lei que clamava pela não viabilização de verba pública para promover espetáculos com bandas que trabalham com essa modalidade musical. Polêmico, o projeto foi aprovado na Assembleia Legislativa da Bahia, no dia 27 de março de 2012, por 43 votos a 9. Como havia de ser, o debate dividiu opiniões. Para Moema Gramacho, “não se pode usar recursos públicos para incentivar a violência ou macular a imagem da mulher”. No entanto, para o antropólogo Roberto Albergaria, representante da Universidade Federal da Bahia, tal projeto é “um precedente perigoso para a democracia”. Quem coadunou com as suas ideias foi o deputado Elmar Nascimento, ao alegar que “nenhum deputado é favorável a violência, mas é preciso estar atento ao artigo 5º da Constituição, que diz ser livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de licença ou censura”.
Num debate realizado em um programa jornalístico da TV Record Bahia na época, Leo Kret e a deputada Luíza Maia foram colocadas para debater. Enquanto a primeira questionava o acesso dos homossexuais periféricos ao agendamento cultural da sociedade elitista, a segunda dizia que com avanços alcançados com a Lei Maria da Penha, não podemos sequer pensar em investir dinheiro público, oriundo de nossos impostos, para financiar bandas de pagode que apresentam em seus espetáculos, versos com menções indiretas ao estupro, violência e humilhação da mulher. Durante o programa, para ampliar a polêmica, os editores colocaram no telão alguns trechos de Caetano Veloso cantando Não Enche e perguntaram: mas ele pode não é mesmo? Depois, tomaram o clássico Geni e o Zepelim, de Chico Buarque, e questionaram: ele também? Como o leitor pode observar, são reflexões que levantam mais questionamentos que afirmações incisivas. E essa é a ideia deste texto, interrogativo até mesmo em seu título.
Debates e polêmicas: o pagode baiano é arte?
O panorama nos leva ao seguinte questionamento: mas, afinal, o que é arte? Acho que esta é uma das questões mais polêmicas de todos os tempos para quem trabalha com cultura e representação. Na graduação, no mestrado e quase sempre no dia a dia, já assisti aos mais variados debates quase intermináveis sobre tal questionamento complexo. Lembro, certa vez, de ter lido um texto que citava Fernando Pessoa e dizia que “a ciência descreve as coisas como são; a arte, como são sentidas, como se sente que são”. Se nos basearmos nesta afirmação, o pagode seria, sem dúvida, um movimento artístico onde mulheres se sentem vadias, objetos sexuais e os homens imperadores dos seus reinos lotados de escravas sexuais, abusadas e tolhidas dos seus direitos mais básicos.
No site História das Artes, local onde foi encontrada a citação de Fernando Pessoa, o organizador conceitua arte como a capacidade do homem de criar e expressar-se, transmitindo ideias, sensações e sentimentos através da manipulação de materiais e meios diversos. Se nos basearmos nesta afirmação, o pagode baiano pode, reforço mais uma vez, ser arte, afinal, transmite ideias machistas, homofóbicas e violentas através da livre expressão de alguns homens que, munidos de um tamborim, percussão, sintetizadores e um microfone, utilizam meios como o trio elétrico e os palcos de seus shows para emitir suas sensações e sentimentos. Hoje, no entanto, já temos mulheres e travestis, como A Dama do Pagode e Tertuliana, a primeira inicialmente a reforçar tudo que já havia sido feito no tal campo de produção, mas um pouco consciente nos últimos trabalhos, e a segunda, dona de sucessos como Murro na Costela do Viado, Seu Marido Me Banca e Me Fode, Ele Senta em Cima da Prostituta, dentre outros.
Questionar o status do pagode enquanto arte não é algo complexo. A resposta, por sinal, é bastante simples e objetiva: sim, o pagode é arte, manifestação de sentimentos e expressão cultural humana para consumo de determinados grupos. O que é colocado em questão aqui é se queremos ou não, como cidadãos em busca de um mundo menos violento e com pessoas que exerçam devidamente a sua cidadania, consumir esse tipo de arte que geralmente subjuga a mulher e a coloca num lugar de mero objeto. As feministas vão dizer que é uma opção de elas escolherem isso ou não. E você, caro leitor, o que acha?