SIGA NOSSAS REDES SOCIAIS
Anúncios

Ciência, Cultura & Sociedade

Desinformação e efeito manada em Halloween Kills – o terror continua

O antagonista mascarado está presente em nosso imaginário desde 1978, com o lançamento de Halloween: A Noite do Terror

Publicado

em

Você conhece o efeito manada? Ao conferir Halloween Kills: O Terror Continua, novo filme da nova trilogia envolvendo a eterna final girl Laurie Strode,
Fotos: Divulgação

Professor Leonardo Campos

Você conhece o efeito manada? Ao conferir Halloween Kills: O Terror Continua, novo filme da nova trilogia envolvendo a eterna final girl Laurie Strode, interpretada por Jamie Lee Curtis desde o clássico de 1978, e o antagonista mascarado Michael Myers, a personificação do próprio mal, podemos observar que esse é um dos principais pontos nevrálgicos do filme, uma narrativa corajosa narrativa que não nos poupa as doses de violência física e psicológica e apresenta diversas alegorias sobre celeumas sociais do nosso mundo contemporâneo. Antes de adentrar em detalhes dramáticos e estéticos sobre a produção, farei um panorama breve, mas creio, elucidativo, sobre o foco do nosso texto, isto é, o efeito manada, para depois, no terceiro tópico, delinear como esta questão se encontra refletido ao longo dos 104 minutos desta nova empreitada da franquia Halloween. O termo designa, basicamente, a influência que afeta as nossas formas de agir diante dos demais membros que compõem o mesmo tecido social que o nosso. É quando, guiado pela maioria, você, caro leitor, age sem se dar conta de suas próprias atitudes, algo do mundo animal e do nosso processo evolutivo, debatido no campo da psicologia comportamental, campo científico que analisa a relação do homem consigo mesmo e com o seu entorno, numa ênfase na relação entre emoções, pensamentos, comportamentos e estado fisiológicos dos seres humanos, tendo o behaviorismo como base teórica.

O efeito manada se caracteriza por fazer referenciar decisões individuais ou coletivas, tomadas por influência de um líder ou de alguma maioria, como acontece no desenvolvimento de Halloween Kills: O Terror Continua, com a caçada ao antagonista Michael Myers, movimentada por vítimas do psicopata no filme de 1978, assombrada há quatro décadas pelo monstro que mescla elementos sobrenaturais e humanos para alegorizar a presença do mal que assombra os nossos tempos. Em linhas gerais, precipitada e sem considerar os riscos que existem ao investir nesta movimentação e gerar impactos negativos, o efeito manada desconsidera atitudes diferentes e impede a manifestação do que não é parte da massa homogênea, guiada pela crença e certeza em algo. Especialistas destacam quatro causas para o estabelecimento desse efeito em nossas sociedades: a garantia de segurança e aceitação; o impedimento de riscos ou punições por agir de maneira diferenciada; a lógica, mesmo que deturpada, por detrás do comportamento acompanhado; e a percepção da ação como algo que trará benefícios, naturais ou afetivos, aos envolvidos. Norteador de posturas não cuidadosas e embasada em leituras rasas sobre o cenário onde se manifesta, sem prezar por fontes confiáveis de informação, tal efeito é parte de um processo onde se julga sem ao menos tentar entender.

Diante do exposto, ativado por gatilhos que pedem aos envolvidos uma resposta imediata, sem análise apurada do contexto, esse efeito psicológico se estabelece fertilmente quando estamos frente ao desconhecido, como é o caso dos personagens de Halloween Kills: O Terror Continua, pessoas que conhecem a história de Michael Myers desde 1963, na ocasião do assassinato de sua irmã, Judith Myers. Encarcerado num sanatório por quinze anos, o perigoso antagonista foge do local e segue para Haddonfield, onde firma uma noite de sangue no dia 31 de outubro de 1978. Confinado mais uma vez, foge ao ser transferido, no filme de 2018, indo ao encontro de Laurie Strode, mulher que há quatro décadas, teme esse reencontro. A sua armadilha no desfecho da narrativa, como sabemos, não funcionou como o esperado. Os bombeiros seguem para a sua casa e sem saber, libertam o mal da armadilha, permitindo que Michael escape e ainda na mesma noite Dia das Bruxas, continue a sua saga de horror e morte. O que o vilão não esperava, no entanto, é a reinserção de personagens da produção dos anos 1970, pessoas acossadas por seus traumas, com os nervos acirrados, prontos para a combustão do efeito manada que acaba em tragédia, com inocentes ceifados pelo ódio e desinformação.

Sobre Halloween Kill: O Terror Continua

A personificação do mal. Assim podemos definir Michael Myers. O antagonista mascarado está presente em nosso imaginário desde 1978, com o lançamento de Halloween: A Noite do Terror, escrito e dirigido por John Carpenter, em parceria com a produtora Debra Hill. Na história, acompanhamos o seguinte argumento: Myers, quando criança, assassinou a sua irmã e foi confinado num sanatório, acompanhado em análise por um psiquiatra, o Dr. Loomis, interpretado seis vezes por Donald Pleasence. Depois de alguns anos, ele escapa e segue para Haddonfield, estabelecendo um reino de horror na noite do Dia das Bruxas, deixando um rastro de mortes, a perseguir Laurie Strode, personagem interpretada por Jamie Lee Curtis, a final girl mais conceituada do subgênero slasher. Com o sucesso crítico e financeiro, continuações surgiram, algumas formidáveis, como Halloween H20: Vinte Anos Depois e outras decepcionantes, sendo Halloween 6: A Última Vingança, quase dirigido por Quentin Tarantino, e Halloween: Ressurreição, os casos mais escabrosos. Quando estreou em 2018, o novo Halloween trouxe uma roupagem de luxo que reforçou a capacidade do renascimento da franquia após o desastroso empreendimento de Rob Zombie com suas refilmagens instáveis e comprometedoras, outro desacerto neste universo cheio de filmes com propostas muito repetitivas.

Para a nova empreitada, Jamie Lee Curtis e John Carpenter estavam de volta, a atriz como Laurie Strode e o cineasta como compositor da trilha sonora. David Gordon Green assumiu a direção e, ao lado de Danny McBride, assinou o roteiro para a produção que demarcou o aniversário de 40 anos do lançamento deste clássico que estabeleceu as bases para o que ficou definido como slasher, isto é, jovens incautos, um acontecimento do passado que retorna diabolicamente triunfante e um ou mais assassinos perigosos, geralmente mascarados, para o ajuste de contas relacionado aos tais momentos da memória que não foram sublimados. Para que o projeto tivesse um tom revigorado, todos os filmes da franquia posteriores ao primeiro foram desconsiderados. Reencontramos a personagem de Jamie Lee Curtis após os traumas de 1978 e na defensiva, tensa com a possibilidade de reencontrar Michael Myers. Espetacular, o filme emula diversos elementos do clássico, mas cria uma identidade muito própria. É um trunfo, repetido agora em Halloween Kills: O Terror Continua, produção que começa exatamente de onde o antecessor terminou, deixando em seu desfecho, espaço para Halloween Ends, a última participação de Curtis na franquia, narrativa que encerrará a proposta de uma nova trilogia.

ANÚNCIO
Anúncios

Você conhece o efeito manada? Ao conferir Halloween Kills: O Terror Continua, novo filme da nova trilogia envolvendo a eterna final girl Laurie Strode,

Sigamos. Depois que descobrimos que Laurie preparou uma armadilha para incendiar a sua casa e eliminar o antagonista mascarado, tudo parecia ter encontrado um fim adequado. Michael Myers seria incendiado e as três gerações de mulheres da família Strode conseguiriam pavimentar uma nova trajetória em suas vidas. Enquanto trafegam como carona na carroceria de uma caminhonete, tal como Sally de O Massacre da Serra Elétrica, avó, filha e neta se deparam com uma realidade assustadora: os bombeiros de Haddonfield estão indo em direção ao local onde Myers se encontra enjaulado e a queimar. Num movimento sem sequer compreender o que faziam adequadamente, os profissionais libertam o antagonista que sai triunfante das chamas, num massacre impiedoso que já estabelece o tom sangrento adotado ao longo dos 106 minutos de narrativa. Agora, Laurie, Karen (Judy Greer) e Allyson (Andi Matichak) enfrentarão Michael Myers sob novas circunstâncias. Ferida após a intensa batalha do antecessor, a personagem de Jamie Lee Curtis funciona como uma espécie de mentora, a mulher com expertise no assunto sobre enfrentamento do mal encarnado. A sua neta, juntamente com os habitantes da cidade, serão os responsáveis pela caçada da vez: Michael se torna o alvo de pessoas coletivamente aterrorizadas, revoltadas diante da onda de sangue e horror da noite do Dia das Bruxas.

Você conhece o efeito manada? Ao conferir Halloween Kills: O Terror Continua, novo filme da nova trilogia envolvendo a eterna final girl Laurie Strode,

Assim, Haddonfield contra-ataca. E com isso, as sequências de sangue e ação se desenvolvem em Halloween Kills: O Terror Continua, filme que atende aos anseios esperados de uma narrativa slasher, deixando de lado os longos desenvolvimentos psicológicos da produção de 2018 para criar uma trajetória mais vertiginosa, entrelugar para o desfecho com Halloween Ends. Mais passiva, Laurie Strode agora ocupa uma posição mais intermediária, algo que pode incomodar os interessados em vê-la mais uma vez ocupando a frente de batalha. Há, no entanto, motivações dramáticas por detrás da escolha. O novo filme é um retrato de como uma sociedade enfrenta os seus medos. Temos agora Lindsey (Kyle Richards) e Tommy (Anthony Michael Hall), adultos que na história de 1978, eram as crianças cuidadas pela babá Strode. Eles, juntamente com Cameron (Dylan Arnold), o namorado de Allyson, Marion (Nancy Stephens), a enfermeira associada ao Dr. Loomis, o xerife Barker (Omar J. Dorsey), bem como o retorno digitalizado de Donald Pleasence, numa belíssima homenagem, completam o quadro de vítimas secundárias e terciárias do impacto causado por Michael Myers nesta comunidade tomada pelo ódio, pela desinformação e, concomitantemente, guiada pelo questionável efeito manada, parte integrante dos comportamentos que a cada dia, tem deixado a nossa sociedade mais tensa e perigosa.

O Tom Consciente do Slasher Contemporâneo: Debates e Reflexões

Quando Tommy (Anthony Michael Hall) começa a liderar o levante contra Michael Myers, ele sequer se deu conta do problema que estava criando para os envolvidos na massa que é uma representação cabal do efeito manada. Comandados pela expressão “O Mal Morre Hoje”, o personagem promove o maior acirramento dos ânimos, movendo pessoas aparentemente paralisadas pelo pânico, tornando-as tão desumanas quanto o responsável pela chacina em Haddonfield. Quem assistiu ao filme de 2018 lembra que no momento de fuga, Michael Myers não estava sozinho, mas sendo transferido juntamente com outros pacientes do sanatório. Um deles retorna para Halloween Kills: O Terror Continua, sendo confundido por parte da população, ao passo que apresenta um comportamento suspeito e, como tinha aparecido na televisão, pelos telejornais que cobriam os acontecimentos, acabou sendo perseguido, mesmo que no momento de histeria coletiva, Laurie e Karen, mãe e filha, tenham deixado delineado que ali não era Michael Myers, isto é, o homem errado era caçado, até encontrar o seu fim aterrorizante, vitimado por pessoas acometidas pela desinformação e imediatismo, próprios do efeito manada, manifestação comportamental altamente perigosa, muito comum em nossa atual cultura do cancelamento e emissão de opiniões desequilibradas no universo das redes sociais e correlatos.

Sobre mais temas e alegorias, podemos falar também do empoderamento feminino, já presente no filme de 2018, quando a batalha entre Michael e Laurie foi interpretada pela atriz Jamie Lee Curtis como um manancial de referências aos posicionamentos femininos de enfrentamento do patriarcado e da misoginia, desdobrados em celeumas como o movimento #metoo. Ainda nesta temática, Halloween Kills: O Terror Continua flerta com os avanços alcançados por iniciativas femininas e feministas de promover questionamentos e batalhar por posições numa sociedade ainda muito opressiva no que tange aos debates de gênero. As mulheres ganhando cada vez mais força, expondo os seus traumas e abusos sofridos no passado, deixando de fugir, como Laurie Strode fez com seus traumas em H20, para colocar-se de frente com o que traz dor e incômodo. Ademais, para nos contar este novo capítulo, o cineasta David Gordon Green capricha na visualidade e no estabelecimento de uma assertiva atmosfera sonora, tendo John Carpenter como parte dos compositores da textura percussiva. É uma trilha agressiva, imersiva, angustiante e conectada com as escolhas narrativas, mais intensa quando associada ao design de som da equipe supervisionada por P. K. Hoover, um ótimo trabalho.

ANÚNCIO
Anúncios

Você conhece o efeito manada? Ao conferir Halloween Kills: O Terror Continua, novo filme da nova trilogia envolvendo a eterna final girl Laurie Strode,

Ainda sobre os aspectos estéticos do filme, a direção de fotografia comandada por Michael Simmonds continua adequada como o antecessor desta nova trilogia, entregando ao espectador momentos inspirados de movimentação, iluminação e contemplação de personagens nos excelentes enquadramentos, em especial, na composição de Michael Myers em cena. Por falar no assassino, as numerosas mortes são criativas e propositalmente homenageadoras do subgênero slasher, exagerada na medida para o estabelecimento da metalinguagem que evidencia o conhecimento dos realizadores em outras empreitadas de mascarados assassinos do cinema. Na maquiagem e efeitos, Jason Willis e Rick Pour supervisionam a equipe responsável por transformar o banho de sangue em obra de arte, entregando aos olhos do público um arsenal de corpos talhados de tudo quanto é forma, massacrados pela sanha psicótica de uma versão turbinada e vertiginosa do antagonista Michael Myers. Quem também merece destaque é Richard A. Wright e seu excelente trabalho no design de produção, setor que traça referências com o evento noturno que começou na história de 2018 e ainda se desdobra neste filme, numa referência ao segundo episódio da franquia, Halloween 2: O Pesadelo Continua, também com passagens num hospital, com cidadãos e polícia abalados/revoltados com o massacre de Michael Myers.

Sobre outros retornos, temos ainda o xerife Barker (Omar Dorsey) e o veterano Hawkins (Will Patton), este último, sobrevivente do que achávamos que teria sido o seu fim no ponto de virada de Halloween (2018), personagem que também deixará o público compreender por qual motivo ele se sente relativamente responsável pelos horrores trilhados por Myers, a própria personificação do mal, como o texto deixa delineado constantemente nos diálogos, uma alegoria para tudo que há de ruim nas pessoas, reflexo do horror que nos acomete cotidianamente nas sociedades cada vez mais violentas, por isso, a imortalidade deste monstro que se tornou mais entidade que necessariamente um homem de carne e osso. Na tese desenvolvida pelos realizadores, o já mencionado efeito manada e a ideia de vingança com as próprias mãos tornam os posicionamentos de todas as peças deste jogo de horror muito questionáveis. Há um processo de desumanização nesta comunidade assolada pelo medo e em crise por causa dos desdobramentos coletivos desta sensação de insegurança. Com tempo narrativo interno de poucas horas, Halloween Kills sabiamente evita desenvolver demais os novos personagens, tornando-os peões do banho de sangue de Myers, algo já esperado no antecessor, filme que fez o que tinha que ser feito nos quesitos dramáticos e psicológicos, dando abertura para que esta continuação investisse num tom quintessencial e desmesurado para a violência latente nos personagens e, obviamente, no espectador, sentado e expurgando as suas pulsões e ansiedades por meio de um discurso ficcional que evidencia, alegoricamente, a nossa dura realidade.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Continue Lendo
ANÚNCIO
Anúncios
Clique para comentar

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Ciência, Cultura & Sociedade

Gattaca: Experiência Genética

A trama se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética

Publicado

em

Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos
Foto: Divulgação

Leonardo Campos

Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos, um campo cheio de regras, axiomas, leis e teoremas, estabelecidos para que os responsáveis por suas manipulações sigam fielmente os direcionamentos, nalgumas vezes, transbordados quando há vantagens que nem sempre dialogam com aquilo que se convencionou a chamar de postura ética do pesquisador. Ao longo de seus envolventes 106 minutos, contemplamos uma trama que reflete os impactos da intervenção genética em nosso mundo, na produção Gattaca, dividido entre os seres humanos gerados biologicamente e aqueles concebidos graças ao advento das evoluções científicas. Neste cenário sombrio, temos um eficiente debate sobre o papel da ciência em nosso cotidiano, em especial, o desenvolvimento da genética na dinâmica dos seres vivos, numa reflexão sobre bioética e seus desdobramentos, afinal, por mais positiva que seja o avanço tecnológico neste campo, estamos lidando com a perigosa eugenia, algo que nas mãos da humanidade conflituosa, pode gerar caos.

A trama Gattaca se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética. Numa espécie de processo eugênico, a ciência faz a separação dos indivíduos válidos e inválidos, sendo os primeiros os dominantes nas relações sociais.  O cineasta Andrew Niccol adentra pelo viés das narrativas sobre o lado vilanesco da ciência, sabiamente trabalhado em ao longo da história do cinema, em filmes como Metrópolis, de Fritz Lang, dentre outros. Aqui, ele demonstra o quão a sociedade fictícia se encontra submissa aos ditames de um discurso científico opressivo, numa existência onde os seres humanos artificiais ocupam melhores posições e os considerados inferiores, isto é, com probabilidades de problemas genético, os espaços de menor favorecimento social. Em Gattaca: A Experiência Genética, o espectador é apresentado ao mundo dos filhos da fé e dos filhos da ciência. Ao nascer, o individuo que antes tinha o destino nas mãos da vontade divina agora pode ter o seu perfil delineado pela engenharia genética. Logo em seu nascimento, apenas uma gota de seu sangue permite a impressão de um diagnóstico que conduzirá toda a sua vida, num processo que flerta com todas as etapas de uma tradicional investigação científica, da introdução da proposta ao estabelecimento dos objetivos, da justificativa, do desenho antecipado do problema e da hipótese, aos métodos selecionados e os desdobramentos das análises que tem como destino, o encontro de respostas assertivas.

Nestes cálculos, as probabilidades definem as suas qualidades genéticas, psicológicas, físicas e possíveis doenças e até o desenvolvimento da causa de morte no futuro das pessoas. Diante do exposto, conhecemos o adulto Vincent Freeman (Ethan Hawke), interpretado por Mason Gamble na infância e por Chad Christ na adolescência, um homem que é filho de Deus, ou seja, nasceu com as seguintes porcentagens nas chances para desenvolvimento de problemas: 60% para questões neurológicas, 42% para depressão, 89% de capacidade de se concentrar e 92% para a possibilidade de desenvolver distúrbios cardíacos. Desde a sua infância, ele sonha em ingressar no projeto Gattaca, uma agência que treina os melhores astronautas para missões espaciais exploratórias. O grande conflito é que a sua ficha é taxativa: ele não possui os requisitos para alcançar uma vaga, pois é um filho de Deus, portanto, possui elementos que o tornam uma figura enfraquecida diante das vantagens físicas dos filhos da ciência. Além disso, psicologicamente ele é um personagem circunspecto, desanimado, haja vista a sua trajetória em família.

Quando pequeno, seus pais tiveram outro filho, Anton Freeman (Loren Dean), uma criança oriunda da ciência, socialmente com mais credibilidade que Vincent. Assim, a repressão advinda do campo científico não se mantém emaranhado em sua vida apenas na fase adulta, mas ao longo de toda a sua formação. Contemplamos tudo isso ao longo da narração em primeira pessoa do filme, com flashbacks explicativos para a postura do protagonista Vincent, figura que rouba a identidade de um nadador desabilitado após um acidente que o deixou tetraplégico, falsificação utilizada para adentrar no espaço de seu tão sonhado projeto de vida, algo que, no entanto, o coloca em risco. Após um assassinato, as coisas mudam e mesmo após a transformação física do personagem, bem como alguns ajustes de ordem comportamental, todos se tornam alvo de uma investigação que pode desmascará-lo. Ao tentar driblar o sistema e subverter uma ordem que delineia destinos predeterminados pela manipulação do DNA para a fabricação de organismos “melhorados”, Vincent também põe em risco a sua vida, numa perigosa e empolgante jornada que funciona como entretenimento de qualidade, bem como reflexões filosóficas intrigantes sobre a relação da humanidade com os próprios pilares tecnológicos que cria.

Na composição da estrutura cinematográfica de Gattaca: A Experiência Genética, o cineasta Andrew Niccol contou com uma eficiente equipe técnica, responsável pelo assertivo estabelecimento da materialidade fílmica em prol do tema debatido nos diálogos e situações do texto dramático. A textura percussiva de Michael Nyman, imersiva, acompanha as cenas que se passam pelos cenários devidamente dirigidos artisticamente pelo design de produção assinado por Jan Roells, setor que cria ambientes equilibrados, próximos do realismo de nosso mundo contemporâneo, mas com elementos que emulam as fascinantes ficções com teor científicos, conhecidas por delinear em cena, traços estéticos que nos remetem ao “futurismo”. Ademais, na direção de fotografia, Slawomir Idziak cria ângulos que nos permitem sentir a vulnerabilidade de alguns personagens, com planos que reforçam o contexto de tensão no qual as figuras ficcionais estão espalhadas, uma malha narrativa onde a ditadura da engenharia genética reforça preconceitos e fixa um amontado de castas sociais conflituosas, imersas num angustiante lugar de controle social e determinismo genético, retrato da nossa realidade, alegorizado por meio do brilhante tema desenvolvido nesta trama sobre a ciência e seus impactos positivos e negativos para a humanidade, afinal, as redes sociais e as novas tecnologias estão ai para nos mostrar que apesar de dominarmos aquilo que pode melhorar a nossa vida, também nos tornamos reféns de seus efeitos colaterais, não é mesmo?

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
ANÚNCIO
Anúncios
Continue Lendo

Ciência, Cultura & Sociedade

Introdução: A Porta de Entrada de Seu Projeto de Pesquisa

Este é um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica

Publicado

em

Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e

Leonardo Campos

Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e elucidativo artigo com toques de tutorial, explanarei sobre os principais passos para adoção durante a elaboração da parte introdutória de seu projeto, um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica. Como porta de entrada, o seu texto deve ser limpo, atraente, coeso, coerente, fornecer subsídios para comprovação da relevância social de seu tema, bem como segurança diante da proposta escolhida para trabalho. Sendo o primeiro contato com as perspectivas de seu processo investigativo, é na introdução que você expõe a questão da sua pesquisa, o desenvolvimento do problema e a pertinência de sua hipótese, num cartão de visitas que precisa convencer os leitores sobre a significância de sua jornada.

Observe este infográfico. Leia. Faça uma análise e depois reflita sobre os pontos abordados. Foi produzido para um curso de Enfermagem, mas pode ser pensado para qualquer outra área do conhecimento. Ademais, não precisa ser seguido fidedignamente, mas adaptado para a sua realidade de pesquisa.

Observou. Descreverei mais detalhadamente sobre os pontos adiante. Sigamos.

O número de páginas para a introdução é relativo e depende das normas dispostas nos editais da instituição na qual você desenvolve a pesquisa. O seu tema deve ocupar o maior espaço do texto, numa escrita que pode (e deve) contemplar os principais conceitos, um percurso histórico do tema, dados de outras pesquisas (quando houver) realizadas anteriormente, num processo explicativo do autor (você) para o leitor, tendo como uma das principais preocupações, a determinação da abrangência da pesquisa. Recentemente, uma estudante de Jornalismo me abordou para uma orientação que se referia ao fenômeno da Cultura do Cancelamento. Na proposta introdutória, ela não especificava qual era o seu recorte temporal, bem como o seu objeto. Se este fosse um projeto esboçado para um edital de seleção para mestrado, doutorado ou adentrar numa iniciação científica, provavelmente o material seria descartado, com a reprovação divulgada nos resultados posteriormente. Explico os motivos.

Mesmo que o título forneça pistas, o texto introdutório precisa evidenciar a natureza do trabalho de maneira mais elucidativa possível. Deve atravessar, talvez indiretamente, os objetivos, a finalidade da pesquisa e a justificativa. Lembre-se, caro leitor: é na introdução que fisgamos o leitor, neste caso, os avaliadores. É um texto onde teremos uma ideia geral do projeto, parte onde o autor diz por quais motivos escolheu o assunto, tendo em vista delinear a importância de seu conteúdo. Somente na justificativa foi possível compreender que a estudante em final de curso se referia ao cancelamento por meio de uma observação detida aos participantes do reality show Big Brother Brasil, numa análise pertinente sobre os desdobramentos das opiniões destes indivíduos durante a participação no programa, culminando na aceitação ou ojeriza do público em relação aos seus posicionamentos, no linchamento virtual das redes sociais e afins. Observe que uma temática interessante quase deixou de ser levada adiante por falta de comprometimento com o texto de abertura, um trecho valioso, tal como o preâmbulo de filme, série ou romance que prende a nossa atenção e mesmo que decepcione, nos leva adiante em sua jornada.

Assim é com a introdução se sua pesquisa. É o momento de contextualização dos caminhos pavimentados em sua proposta. Precisa ser atrativa, motivar a continuidade do interesse de quem lê (e avalia), bem como traçar as contribuições advindas do tema recortado na jornada que você pretende trilhar em seu projeto. O texto? Claro, conciso e “preciso”. Como já mencionado, demonstrar os antecedentes de sua abordagem, “produzir um design” para que o leitor compreenda quão pertinente é a sua linha de raciocínio para a investigação escolhida, numa escrita que deve prezar pelo tom persuasivo e, num movimento questionador, levantar indagações sobre a temática, numa conexão assertiva com as partes subsequentes, isto é, um ritmo empolgante na abertura, para que os objetivos, justificativas, hipóteses, problemas, metodologias, mapeamento bibliográfico, orçamento e cronograma, bem como os anexos e referências consultadas no formato solicitado pela ABNT estejam organicamente unificados como partes constituintes de uma tessitura alinhada, coesa e coerente com os seus propósitos.

ANÚNCIO
Anúncios

Boa escrita!

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Continue Lendo

Ciência, Cultura & Sociedade

Os tipos de conhecimento em `Quase Deuses`

A narrativa traz para a cena os impasses de personagens em buscar explicações para as investigações científicas que empreendem

Publicado

em

Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta
Fotos: Divulgação

Leonardo Campos

Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta que se baseia no roteiro de Robert Caswell e Peter Silverman para nos contar uma edificante história de superação lançada em 2004, uma saga de dedicação e empreendedorismo que atualmente é bastante mencionada em aulas de projeto de vida, cursos de metodologia da pesquisa, dentre outras áreas da aprendizagem humana. Tocante, sem apelar para um tom novelesco excessivo, algo comum na seara das produções cinematográficas para televisão, a narrativa traz para a cena os impasses de personagens mergulhados no interesse crítico para buscar explicações para as investigações científicas que empreendem, tendo o campo da medicina como espaço de desenvolvimento dos conflitos dramáticos internos, isto é, situados num caso específico de análise, bem como os externos, conectados com os desafios pessoais na vida destas figuras ficcionais com vidas atribuladas e cheias de obstáculos, mas focadas em encontrar as soluções que escreveriam os seus nomes para a eternidade, haja vista a inspiração numa história real para a concepção do filme.

Ao longo dos 110 minutos de Quase Deuses, nos deparamos com o cotidiano de Vivien Thomas (Yassin Bey) e Alfred Blalock (Alan Rickman), o primeiro, um homem negro, pobre, desacreditado diante da possibilidade de saída do determinismo que o sufoca, sendo o segundo, um médico renomado da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, ambos situados na década de 1940, uma era de conflitos bélicos mundiais e muitas mudanças de paradigmas sociais.  A relação deles começa depois que Vivien consegue uma vaga de faxineiro na universidade. Curioso, ele sempre executa os seus serviços observando como as coisas funcionam ao redor, numa postura de pesquisador. O rapaz não quer apenas limpar e receber o seu salário no final do período, mas conhecer como se desdobram os processos por onde passa. Ele tem faro de investigador, posicionamento inicial que o fará ir tão longe, mais que o esperado, tornando-se um renomado cientista e médico, ganhador do Honoris Causa, em 1976. Acompanhamos cada passo seu com a trilha sonora emotiva de Christopher Young, importante para o impacto dramático de cada passagem transformadora na vida destes personagens que aprendem muito entre si.

Voltemos ao contato entre a dupla. Ao perceber que Vivien Thomas é um homem interessado e curioso, o Dr. Alfred começa a lhe garantir algumas oportunidades adicionais. Há momentos de observação de experimentos, contemplação de procedimentos, numa jornada que permite ao faxineiro sair da posição fixa importante, mas redutora, levando-o como auxiliar para o Hospital John Hopkins, numa época em que se relacionar com pessoas negras era tabu, tempo conflituoso que exigir ceder o lugar para os brancos num transporte público ou ter banheiros diferentes para cada grupo, em linhas gerais, uma tenebrosa fase da história humana que de vez em quando, se repete na contemporaneidade, por mais que afirmemos que passamos por consideráveis mudanças sociais. A esposa de Vivien, sempre preocupada, teme que as experiências do marido sejam ousadas demais e os deixem numa posição comprometedora futuramente. Ele, persistente, segue o seu sonho e consegue convencer a todos de sua competência, num trunfo belíssimo.

Sua trajetória é de superação sem aderir aos milagres ou religiosidade. Vivien Thomas é técnico no que faz, focado na metodologia, humilde quando os caminhos não levam para o esperado e consciente da necessidade de recomeçar quando percebe que realizou uma escolha equivocada. Em sua pesquisa com animais, faz procedimentos e experimenta muito, antes de chegar aos resultados finais, uma aula para a juventude contemporânea impaciente e obcecada pelo Google como via exclusiva para as suas respostas. É na exatidão científica que o personagem prospera, numa era de tantas dispersões e dificuldades como qualquer outra, marcada pela recessão econômica, desdobramento da Crise de 1929, época de taxas altíssimas de desemprego e miséria, queda do poder de compra e da renda, bem como da produção industrial em escala mundial. Sem falar na já mencionada segregação racial, um impasse que poderia ter acabado de vez com os primeiros passos galgados por Vivien Thomas, ao lado do Dr. Alfred, seu mentor, figuras unificadas para a resolução da Síndrome do Bebê Azul, um problema cardiológico que foi resolvido depois de muito trabalho, leitura, investigação e testes laboratoriais, em suma, após uma jornada exaustiva, mas necessária, de pesquisa embasada por métodos sérios.

Eles precisam descobrir como resolver a cianose provocada pela deficiência no transporte de oxigênio no sangue do bebê que desenvolve o problema quando nasce, nalguns casos, logo quando pequeno, uma condição que o deixa com a pela azulada ou arroxeada, cor que pode ser efeito da junção de sangue oxigenado com o não oxigenado, problema de saúde oriundo de má formação congênita. É uma situação raríssima que encontrou respostas significativas na empreitada do médico e de seu auxiliar. Nós contemplamos estas passagens com a direção de fotografia de Donald M. Morgan, eficiente na captação dos momentos de duelo entre os investigadores e a sociedade, personagens que atravessem os cenários do design de produção de Vincent Peranio, também assertivo ao emular com cautela as décadas por onde a trama se passa, além de construir um espaço de trabalho para a dupla que é simples, mas imersivo no que tange aos aspectos visuais de um local para experimentos científicos. Ademais, Quase Deuses também é uma narrativa para reflexão sobre os diversos tipos de conhecimento, sabia?

Nos momentos em que os dois homens debatem sobre como descobrir a cura para a cura do bebê e assim, explicar tal fenômeno, nós temos pontos de articulação com o conhecimento filosófico, obtido na lógica e na construção de conceitos. Após numerosas tentativas com animais que não dão certo, os testes acabam levando Vivien para o seu objetivo, num diálogo com o que chamamos de conhecimento sensível, aquele obtido através dos sentidos, neste caso, pelo olhar atento do personagem. Quando um representante religioso deseja intervir na cirurgia, alegando que os médicos querem interceder diante da vontade divina, temos impregnado o conhecimento religioso. No caso do conhecimento científico, podemos contemplar a sua passagem em diversos momentos de Quase Deuses, em especial, quando Vivien Thomas se apaixona pelos estudos na área de medicina e começa a devorar todos os livros possíveis sobre o assunto, numa busca por problemas, hipóteses, respostas por meio de experimentos e investigação.

ANÚNCIO
Anúncios
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Continue Lendo

Mais Lidas