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Desinformação e efeito manada em Halloween Kills – o terror continua

Professor Leonardo Campos

Você conhece o efeito manada? Ao conferir Halloween Kills: O Terror Continua, novo filme da nova trilogia envolvendo a eterna final girl Laurie Strode, interpretada por Jamie Lee Curtis desde o clássico de 1978, e o antagonista mascarado Michael Myers, a personificação do próprio mal, podemos observar que esse é um dos principais pontos nevrálgicos do filme, uma narrativa corajosa narrativa que não nos poupa as doses de violência física e psicológica e apresenta diversas alegorias sobre celeumas sociais do nosso mundo contemporâneo. Antes de adentrar em detalhes dramáticos e estéticos sobre a produção, farei um panorama breve, mas creio, elucidativo, sobre o foco do nosso texto, isto é, o efeito manada, para depois, no terceiro tópico, delinear como esta questão se encontra refletido ao longo dos 104 minutos desta nova empreitada da franquia Halloween. O termo designa, basicamente, a influência que afeta as nossas formas de agir diante dos demais membros que compõem o mesmo tecido social que o nosso. É quando, guiado pela maioria, você, caro leitor, age sem se dar conta de suas próprias atitudes, algo do mundo animal e do nosso processo evolutivo, debatido no campo da psicologia comportamental, campo científico que analisa a relação do homem consigo mesmo e com o seu entorno, numa ênfase na relação entre emoções, pensamentos, comportamentos e estado fisiológicos dos seres humanos, tendo o behaviorismo como base teórica.

O efeito manada se caracteriza por fazer referenciar decisões individuais ou coletivas, tomadas por influência de um líder ou de alguma maioria, como acontece no desenvolvimento de Halloween Kills: O Terror Continua, com a caçada ao antagonista Michael Myers, movimentada por vítimas do psicopata no filme de 1978, assombrada há quatro décadas pelo monstro que mescla elementos sobrenaturais e humanos para alegorizar a presença do mal que assombra os nossos tempos. Em linhas gerais, precipitada e sem considerar os riscos que existem ao investir nesta movimentação e gerar impactos negativos, o efeito manada desconsidera atitudes diferentes e impede a manifestação do que não é parte da massa homogênea, guiada pela crença e certeza em algo. Especialistas destacam quatro causas para o estabelecimento desse efeito em nossas sociedades: a garantia de segurança e aceitação; o impedimento de riscos ou punições por agir de maneira diferenciada; a lógica, mesmo que deturpada, por detrás do comportamento acompanhado; e a percepção da ação como algo que trará benefícios, naturais ou afetivos, aos envolvidos. Norteador de posturas não cuidadosas e embasada em leituras rasas sobre o cenário onde se manifesta, sem prezar por fontes confiáveis de informação, tal efeito é parte de um processo onde se julga sem ao menos tentar entender.

Diante do exposto, ativado por gatilhos que pedem aos envolvidos uma resposta imediata, sem análise apurada do contexto, esse efeito psicológico se estabelece fertilmente quando estamos frente ao desconhecido, como é o caso dos personagens de Halloween Kills: O Terror Continua, pessoas que conhecem a história de Michael Myers desde 1963, na ocasião do assassinato de sua irmã, Judith Myers. Encarcerado num sanatório por quinze anos, o perigoso antagonista foge do local e segue para Haddonfield, onde firma uma noite de sangue no dia 31 de outubro de 1978. Confinado mais uma vez, foge ao ser transferido, no filme de 2018, indo ao encontro de Laurie Strode, mulher que há quatro décadas, teme esse reencontro. A sua armadilha no desfecho da narrativa, como sabemos, não funcionou como o esperado. Os bombeiros seguem para a sua casa e sem saber, libertam o mal da armadilha, permitindo que Michael escape e ainda na mesma noite Dia das Bruxas, continue a sua saga de horror e morte. O que o vilão não esperava, no entanto, é a reinserção de personagens da produção dos anos 1970, pessoas acossadas por seus traumas, com os nervos acirrados, prontos para a combustão do efeito manada que acaba em tragédia, com inocentes ceifados pelo ódio e desinformação.

Sobre Halloween Kill: O Terror Continua

A personificação do mal. Assim podemos definir Michael Myers. O antagonista mascarado está presente em nosso imaginário desde 1978, com o lançamento de Halloween: A Noite do Terror, escrito e dirigido por John Carpenter, em parceria com a produtora Debra Hill. Na história, acompanhamos o seguinte argumento: Myers, quando criança, assassinou a sua irmã e foi confinado num sanatório, acompanhado em análise por um psiquiatra, o Dr. Loomis, interpretado seis vezes por Donald Pleasence. Depois de alguns anos, ele escapa e segue para Haddonfield, estabelecendo um reino de horror na noite do Dia das Bruxas, deixando um rastro de mortes, a perseguir Laurie Strode, personagem interpretada por Jamie Lee Curtis, a final girl mais conceituada do subgênero slasher. Com o sucesso crítico e financeiro, continuações surgiram, algumas formidáveis, como Halloween H20: Vinte Anos Depois e outras decepcionantes, sendo Halloween 6: A Última Vingança, quase dirigido por Quentin Tarantino, e Halloween: Ressurreição, os casos mais escabrosos. Quando estreou em 2018, o novo Halloween trouxe uma roupagem de luxo que reforçou a capacidade do renascimento da franquia após o desastroso empreendimento de Rob Zombie com suas refilmagens instáveis e comprometedoras, outro desacerto neste universo cheio de filmes com propostas muito repetitivas.

Para a nova empreitada, Jamie Lee Curtis e John Carpenter estavam de volta, a atriz como Laurie Strode e o cineasta como compositor da trilha sonora. David Gordon Green assumiu a direção e, ao lado de Danny McBride, assinou o roteiro para a produção que demarcou o aniversário de 40 anos do lançamento deste clássico que estabeleceu as bases para o que ficou definido como slasher, isto é, jovens incautos, um acontecimento do passado que retorna diabolicamente triunfante e um ou mais assassinos perigosos, geralmente mascarados, para o ajuste de contas relacionado aos tais momentos da memória que não foram sublimados. Para que o projeto tivesse um tom revigorado, todos os filmes da franquia posteriores ao primeiro foram desconsiderados. Reencontramos a personagem de Jamie Lee Curtis após os traumas de 1978 e na defensiva, tensa com a possibilidade de reencontrar Michael Myers. Espetacular, o filme emula diversos elementos do clássico, mas cria uma identidade muito própria. É um trunfo, repetido agora em Halloween Kills: O Terror Continua, produção que começa exatamente de onde o antecessor terminou, deixando em seu desfecho, espaço para Halloween Ends, a última participação de Curtis na franquia, narrativa que encerrará a proposta de uma nova trilogia.

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Sigamos. Depois que descobrimos que Laurie preparou uma armadilha para incendiar a sua casa e eliminar o antagonista mascarado, tudo parecia ter encontrado um fim adequado. Michael Myers seria incendiado e as três gerações de mulheres da família Strode conseguiriam pavimentar uma nova trajetória em suas vidas. Enquanto trafegam como carona na carroceria de uma caminhonete, tal como Sally de O Massacre da Serra Elétrica, avó, filha e neta se deparam com uma realidade assustadora: os bombeiros de Haddonfield estão indo em direção ao local onde Myers se encontra enjaulado e a queimar. Num movimento sem sequer compreender o que faziam adequadamente, os profissionais libertam o antagonista que sai triunfante das chamas, num massacre impiedoso que já estabelece o tom sangrento adotado ao longo dos 106 minutos de narrativa. Agora, Laurie, Karen (Judy Greer) e Allyson (Andi Matichak) enfrentarão Michael Myers sob novas circunstâncias. Ferida após a intensa batalha do antecessor, a personagem de Jamie Lee Curtis funciona como uma espécie de mentora, a mulher com expertise no assunto sobre enfrentamento do mal encarnado. A sua neta, juntamente com os habitantes da cidade, serão os responsáveis pela caçada da vez: Michael se torna o alvo de pessoas coletivamente aterrorizadas, revoltadas diante da onda de sangue e horror da noite do Dia das Bruxas.

Assim, Haddonfield contra-ataca. E com isso, as sequências de sangue e ação se desenvolvem em Halloween Kills: O Terror Continua, filme que atende aos anseios esperados de uma narrativa slasher, deixando de lado os longos desenvolvimentos psicológicos da produção de 2018 para criar uma trajetória mais vertiginosa, entrelugar para o desfecho com Halloween Ends. Mais passiva, Laurie Strode agora ocupa uma posição mais intermediária, algo que pode incomodar os interessados em vê-la mais uma vez ocupando a frente de batalha. Há, no entanto, motivações dramáticas por detrás da escolha. O novo filme é um retrato de como uma sociedade enfrenta os seus medos. Temos agora Lindsey (Kyle Richards) e Tommy (Anthony Michael Hall), adultos que na história de 1978, eram as crianças cuidadas pela babá Strode. Eles, juntamente com Cameron (Dylan Arnold), o namorado de Allyson, Marion (Nancy Stephens), a enfermeira associada ao Dr. Loomis, o xerife Barker (Omar J. Dorsey), bem como o retorno digitalizado de Donald Pleasence, numa belíssima homenagem, completam o quadro de vítimas secundárias e terciárias do impacto causado por Michael Myers nesta comunidade tomada pelo ódio, pela desinformação e, concomitantemente, guiada pelo questionável efeito manada, parte integrante dos comportamentos que a cada dia, tem deixado a nossa sociedade mais tensa e perigosa.

O Tom Consciente do Slasher Contemporâneo: Debates e Reflexões

Quando Tommy (Anthony Michael Hall) começa a liderar o levante contra Michael Myers, ele sequer se deu conta do problema que estava criando para os envolvidos na massa que é uma representação cabal do efeito manada. Comandados pela expressão “O Mal Morre Hoje”, o personagem promove o maior acirramento dos ânimos, movendo pessoas aparentemente paralisadas pelo pânico, tornando-as tão desumanas quanto o responsável pela chacina em Haddonfield. Quem assistiu ao filme de 2018 lembra que no momento de fuga, Michael Myers não estava sozinho, mas sendo transferido juntamente com outros pacientes do sanatório. Um deles retorna para Halloween Kills: O Terror Continua, sendo confundido por parte da população, ao passo que apresenta um comportamento suspeito e, como tinha aparecido na televisão, pelos telejornais que cobriam os acontecimentos, acabou sendo perseguido, mesmo que no momento de histeria coletiva, Laurie e Karen, mãe e filha, tenham deixado delineado que ali não era Michael Myers, isto é, o homem errado era caçado, até encontrar o seu fim aterrorizante, vitimado por pessoas acometidas pela desinformação e imediatismo, próprios do efeito manada, manifestação comportamental altamente perigosa, muito comum em nossa atual cultura do cancelamento e emissão de opiniões desequilibradas no universo das redes sociais e correlatos.

Sobre mais temas e alegorias, podemos falar também do empoderamento feminino, já presente no filme de 2018, quando a batalha entre Michael e Laurie foi interpretada pela atriz Jamie Lee Curtis como um manancial de referências aos posicionamentos femininos de enfrentamento do patriarcado e da misoginia, desdobrados em celeumas como o movimento #metoo. Ainda nesta temática, Halloween Kills: O Terror Continua flerta com os avanços alcançados por iniciativas femininas e feministas de promover questionamentos e batalhar por posições numa sociedade ainda muito opressiva no que tange aos debates de gênero. As mulheres ganhando cada vez mais força, expondo os seus traumas e abusos sofridos no passado, deixando de fugir, como Laurie Strode fez com seus traumas em H20, para colocar-se de frente com o que traz dor e incômodo. Ademais, para nos contar este novo capítulo, o cineasta David Gordon Green capricha na visualidade e no estabelecimento de uma assertiva atmosfera sonora, tendo John Carpenter como parte dos compositores da textura percussiva. É uma trilha agressiva, imersiva, angustiante e conectada com as escolhas narrativas, mais intensa quando associada ao design de som da equipe supervisionada por P. K. Hoover, um ótimo trabalho.

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Ainda sobre os aspectos estéticos do filme, a direção de fotografia comandada por Michael Simmonds continua adequada como o antecessor desta nova trilogia, entregando ao espectador momentos inspirados de movimentação, iluminação e contemplação de personagens nos excelentes enquadramentos, em especial, na composição de Michael Myers em cena. Por falar no assassino, as numerosas mortes são criativas e propositalmente homenageadoras do subgênero slasher, exagerada na medida para o estabelecimento da metalinguagem que evidencia o conhecimento dos realizadores em outras empreitadas de mascarados assassinos do cinema. Na maquiagem e efeitos, Jason Willis e Rick Pour supervisionam a equipe responsável por transformar o banho de sangue em obra de arte, entregando aos olhos do público um arsenal de corpos talhados de tudo quanto é forma, massacrados pela sanha psicótica de uma versão turbinada e vertiginosa do antagonista Michael Myers. Quem também merece destaque é Richard A. Wright e seu excelente trabalho no design de produção, setor que traça referências com o evento noturno que começou na história de 2018 e ainda se desdobra neste filme, numa referência ao segundo episódio da franquia, Halloween 2: O Pesadelo Continua, também com passagens num hospital, com cidadãos e polícia abalados/revoltados com o massacre de Michael Myers.

Sobre outros retornos, temos ainda o xerife Barker (Omar Dorsey) e o veterano Hawkins (Will Patton), este último, sobrevivente do que achávamos que teria sido o seu fim no ponto de virada de Halloween (2018), personagem que também deixará o público compreender por qual motivo ele se sente relativamente responsável pelos horrores trilhados por Myers, a própria personificação do mal, como o texto deixa delineado constantemente nos diálogos, uma alegoria para tudo que há de ruim nas pessoas, reflexo do horror que nos acomete cotidianamente nas sociedades cada vez mais violentas, por isso, a imortalidade deste monstro que se tornou mais entidade que necessariamente um homem de carne e osso. Na tese desenvolvida pelos realizadores, o já mencionado efeito manada e a ideia de vingança com as próprias mãos tornam os posicionamentos de todas as peças deste jogo de horror muito questionáveis. Há um processo de desumanização nesta comunidade assolada pelo medo e em crise por causa dos desdobramentos coletivos desta sensação de insegurança. Com tempo narrativo interno de poucas horas, Halloween Kills sabiamente evita desenvolver demais os novos personagens, tornando-os peões do banho de sangue de Myers, algo já esperado no antecessor, filme que fez o que tinha que ser feito nos quesitos dramáticos e psicológicos, dando abertura para que esta continuação investisse num tom quintessencial e desmesurado para a violência latente nos personagens e, obviamente, no espectador, sentado e expurgando as suas pulsões e ansiedades por meio de um discurso ficcional que evidencia, alegoricamente, a nossa dura realidade.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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