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Ficção, Educação e Trânsito

Uberização do trabalho

O indivíduo fica dependente dos algoritmos, das comissões e da severa cobrança diante das metas de produtividade

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chamada uberização do trabalho são pessoas que passam pelo processo de informalização das garantias e proteções necessárias para qualquer
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Professor Leonardo Campos

Se chover, não rola trabalho. Quando ocorre, as demandas ficam mais arriscadas. Caso haja um sinistro de trânsito que envolva morte ou ferimentos graves, dificilmente a família receberá algum seguro ou indenização. Cansados e movidos pela adrenalina de uma carga horária que não é regida pela legislação trabalhista, os integrantes da chamada uberização do trabalho são pessoas que passam pelo processo de informalização das garantias e proteções necessárias para qualquer trabalhador no devido exercício de sua cidadania. Nessa demanda, ele entra com os meios de produção, assume os custos de sua atividade e supostamente trabalha quando quer, dentro de seu agendamento, num esquema que é muito diferente das maravilhas pregadas pelo ideal de liberdade da uberização, pois cada vez mais, esses indivíduos ficam dependentes dos algoritmos, das comissões e da severa cobrança diante das metas de produtividade.

São pessoas que fazem parte do just-in-time, isto é, o trabalhador autogerente que organiza ele mesmo a sua rotina de trabalho, mas pressionado pelas empresas que entram como mediadoras, mas na verdade operam como uma espécie de mecanismo para novas formas de subordinação e controle das relações de trabalho. Numa pesquisa realizada em 2019 pelo PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), os dados demonstraram que 3,8 milhões de brasileiros tinham no aplicativo Uber a sua maior fonte de renda. Com as mudanças ocorridas diante do nosso atual cenário pandêmico, iniciado em 2020 e ainda em vigor em 2021, com desdobramentos possíveis para os próximos anos, esse panorama provavelmente mudou de estrutura e agora deve se encontrar ainda mais problemático.

Uberização no Brasil: Uber, Ifood e as condições precarizadas de trabalho

Outra pesquisa esclarecedora, publicada no mesmo ano do trabalho científico mencionado anteriormente, alegou que 29 anos é a média de idade dos integrantes da uberização, em sua maioria, homens, 73% apenas com Ensino Médio completo e 11% tendo concluído o Ensino Superior. Realizada pela Fundação Instituto Administração e publicada pela Associação Brasileira Online to Offline, a pesquisa traz diversos depoimentos de pessoas encantadas pela possibilidade de cumprimento de uma jornada que são elas mesmas que fazem, opiniões que não levam em consideração precarização de um trabalho que cobra jornadas longas para alcance do básico para a sobrevivência. Condutores de automóveis cansados diante de rotinas exaustivas, motoqueiros a driblar a força da gravidade para cumprir o máximo de demandas em prol da comissão e por fim, ciclistas que dependem da força física para fazer girar as rodas de seu mecanismo de mobilidade, num processo que é criticado, mas para alguns, é o único caminho possível para geração de renda num país com índices cada vez maiores de desemprego. 4

Como lidar? É quando chegamos ao conteúdo da série A Garota da Moto, produção brasileira de duas temporadas, uma mais dinâmica e interessante e outra irregular e desnecessária, narrativa episódica que possui falhas enquanto dramaturgia e entretenimento, mas permite ótimas discussões sobre o atual processo de uberização do trabalho. Joana, Túlio, Mickey, Marley e outros personagens passam pela atração ficcional e representam o quadro da uberização como jovens motoqueiros que trabalham diariamente em entregas das mais variadas pela capital paulista, uma zona cheia de perigos e obstáculos que colocam a suas respectivas integridades físicas e psicológicas em xeque a cada finalização de expediente na Motópolis, empresa fictícia que é um dos núcleos dramáticos do programa que será analisado adiante, preâmbulo para outras considerações sobre a uberização no cenário do trabalho contemporâneo, reflexão realizada em nosso terceiro e último tópico, combinado?

Notas sobre A Garota da Moto: Ficção, Uberização e Trânsito

Duas temporadas e 51 episódios de muita adrenalina, mesclada com humor e estereótipos sobre a cultura brasileira. Irregular, A Garota da Moto diverte, mas incomoda com a sua estrutura que promete ser série, mas na verdade é construída com base nas fórmulas das telenovelas que diferente da estrutura seriada, possui peculiaridades que a prejudicam enquanto obra de entretenimento. Na seara contextual há uma abordagem válida e pedagógica sobre o que chamamos hoje de uberização, oferta de trabalho na era ilusória do autogerenciamento, encaminhamento reflexivo que impede a série de ser classificada como baixo da avaliação regular e se tornar ao menos mediana. Há bons momentos, situações cativantes e carismáticas, mas além dessa estruturação errônea como série, o programa também peca pela distância entre as duas temporadas, uma de 2016 e a outra de 2019, sendo a primeira mais atraente e dinâmica, diferentemente da segunda, excessivamente maniqueísta e caricata. Primeiro, proponho ao leitor uma leitura geral, para logo depois, expor a análise estética e as reflexões mencionadas acima.

Exibida entre 13 de junho de 2016 e 09 de abril de 2019, no meio, um intervalo longo dentre os dois blocos de episódios, A Garota da Moto aborda a trajetória da motogirl Joana (Christiana Ubach), uma jovem que no passado recente, se relacionou com um homem que jamais imaginou ser casado, figura que depois de anunciada a gravidez da parceria que na verdade era amante e não sabia, decidiu fugir da responsabilidade. Mais adiante, no tempo presente da série, Joana é mãe do pequeno Nico (Enzo Barone), criança bastante ativa e curiosa, mas nunca tão questionadora o quanto se espera de alguém que nunca conheceu o pai. Por ter problemas de relacionamento com o seu pai, Rei (Murilo Grossi), dono do Botecão, ponto de encontro para diversos personagens da produção, Joana se tornou uma mãe que não quer depender de homem para nada e no trabalho de entregas na Motópolis, consegue administrar as suas finanças e atender ao que é necessário na criação do seu filho. O que ela não espera é a presença de Bernarda Salles de Albuquerque (Daniela Escobar), a maniqueísta vilã da produção, esposa do falecido que no passado não assumiu Nico, mas depois de um tempo, parecia interessado em voltar atrás, mas infelizmente teve a vida ceifada em circunstâncias misteriosas.

O mistério, saberemos logo de cara, não precisa de um especialista em dramaturgia para nos elucidar. Provavelmente a esposa matou o então marido infiel e agora quer eliminar Nico, ameaça aos bens que em sua lógica de antagonista caricata, deveriam ficar apenas para ela. A primeira temporada, com sua história mais envolvente e menos frágil, traz a batalha de Joana contra os obstáculos colocados por Bernarda, uma socialite criminosa. Na segunda fase, no entanto, temos a exagerada repetição de fórmulas, numa série de episódios que parecem deslocados do que foi feito no período anterior. Situações românticas, piadas divertidas, personagens caricatos em excesso e outras demandas narrativas preenchem os núcleos da produção que se divide basicamente nos momentos da Motópolis, o ambiente da agressiva uberização; o Botecão, local comandado por seu pai; e as ruas de São Paulo, territórios de mobilidade que exalam perigo para os motoqueiros e motoqueiras que exercem cotidianamente os seus trabalhos.

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A Garota da Moto: uma série de aventura e comédia que retrata a uberização do trabalhador

Além da dinâmica entre Joana, Bernarda e a proteção de Nico, A Garota da Moto traz Val (Fernanda Viacava) e Pam (Martha Nowill) como as pretendentes de Rei, o velho Reinaldo, homem que busca consertar os seus erros como pai no passado e fornecer para Joana uma assistência mais adequada. Na Motópolis, além dos motoboys, temos Bactéria (Thiago Campos Amaral), a dubiedade em pessoa, assistente da gestão da empresa de entregas. Dentre os demais destaques, além da frota de motoqueiros, temos Liége (Gilda Nomacce), personagem que representa a mudança brusca de classe social, o estereótipo da “caipira” que exala bondade e dinheiro para quem precisa, conveniente para as necessidades de Joana e de seu grupo em algumas ocasiões onde a luta, a discussão e outros recursos imateriais não conseguem dar conta de resolver os problemas. Na direção, Júlia Pacheco e Marcelo Cordeiro, com 32 e 21 episódios comandados, respectivamente, entregam um produto que tal como mencionado, é ofertado como série ao espectador, mas na verdade possuem uma estruturação mais novelesca, algo tido por aqui como frágil, tanto na estética quanto nos requisitos narrativos.

Na direção de fotografia, Jacob Solitnerick assume a maioria dos episódios, entregando ao público algumas passagens funcionais, mas nenhum momento definitivamente artístico para este setor, burocrático em praticamente todas as suas cenas. Os figurinos de Isadora Ribas trajam os personagens e os deixam com a “cara” de seus perfis psicológicos, sociais e físicos, criaturas elaboradas pelos argumentos e roteiros de João Daniel Tikhomiroff, criador da série, juntamente com David França Mendes. Na condução musical, A Garota da Moto empolga com uma trilha urbana, mesclada por uma textura percussiva voltada ao gênero ação, em consonância com as faixas que possuem letras diretamente interpretativas do conteúdo da série. Por falar em interpretação, acredito que as desnecessárias passagens com Christiana Ubach e Daniela Escobar a comentar os acontecimentos funcionam como um atestado dos produtores no que concerne a suporta incapacidade dos espectadores em compreender o que está esmiuçado em cena. É um recurso vulgar, excessivo, prejudicial para a condução do programa que já possui uma lista de coisas para se preocupar. Menos, aqui, como no popular, seria mais. Bem mais.

Ademais, sobre a uberização mencionada, devo dizer que o tema foi o responsável por me fazer chegar no conteúdo de A Garota da Moto. Em 2019, enquanto procurava compreender melhor o assunto, deparei-me com a série como uma opção para discussão desse tema. Se usada para esse propósito educativo, os episódios da saga de Joana e Nico versus Bernarda podem ilustrar muitíssimo bem o termo que hoje é utilizado para se debater as relações comerciais na atual era do autogerenciamento, a era do just-in-time, termo que designa o trabalhador que gerencia a sua rotina de trabalho, mediado por empresas que se apresentam como tais, mas na verdade, operam por meio de novas formas de subordinação e controle do trabalho, transformando o suposto trabalhador livre de formalidade em alguém sem direitos e desprovido de garantias. É um dos caminhos para o futuro do trabalho, trilha macabra mostrada com graciosidade e senso de aventura na série, mas que na realidade, revela o quão desumanos nos tornamos na contemporaneidade, em diversas nuances, inclusive nas relações de trabalho, precarizadas. O termo é uma referência ao aplicativo de transporte “Uber”, empresa com grande visibilidade na última década e em constante ascensão em nossa rotina de mobilidade na atualidade. Para mais reflexões sobre o assunto, basta ler algumas publicações recentes sobre o tema, uma das palavras-chave dos debates na esfera virtual pública, presente nos momentos diletantes de A Garota da Moto, série irregular, mas divertida.

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Uberização: Tom Slee e a ampliação do entendimento sobre o assunto

Muitos jovens do esquema da uberização são moradores de regiões periféricas da cidade. Eles às vezes atravessam uma longa quilometragem para chegar aos grandes centros onde rolam as entregas. Alguns, muitas vezes, dormem nas ruas para evitar atrasos e problemas no cumprimento das metas de um cenário bastante criticado, mas também muito concorrido, afinal, basta assistir cotidianamente os telejornais para saber que estamos muito longe da melhoria nos gráficos que indicam as taxas de desemprego em nosso país. Com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, os indivíduos da uberização encontram no aplicativo a chance de trazer para casa o básico para a sobrevivência. É um esquema que parece sem volta, refletido muito bem por Tom Slee em seu livro Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado, publicado aqui no Brasil pela Editora Elefante. Em sua publicação, o autor aborda a Economia do Compartilhamento com um sentimento de traição. Ele busca desmitificar a aura de esperança diante da maneira como lidamos com uma proposta que inicialmente, apresentava-se como promotora da cooperação social, numa falsa exaltação da sustentabilidade. Executivos desafiam as regras democráticas, lucram bastante e se aproveitam do cenário de desemprego e miséria para se manter numa fachada de movimento social.

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Charge para reflexão sobre a Uberização e indicações de leitura sobre esse tema atual

Em suas reflexões, Slee faz uma denúncia ancorada em dados que comprovam a Economia do Compartilhamento como uma espécie de playground dos bilionários que habitam o Vale do Silício, território de startups de um cenário também chamado de economia dos bicos (gig economy), economia da viração, Consumo colaborativo, dentre outras nomenclaturas destes projetos que desregulam diversas áreas de nossas vidas e promovem a precarização do trabalho, tal como acontece com os personagens da série A Garota da Moto, ilustração para o cenário de tantos entregadores de aplicativos que além das baixas renumerações e ausência de direitos, trabalham em regimes exaustivos, situação que gera o aumento nas taxas de sinistros de trânsito e, consequentemente, mexem com as estruturas sociais das famílias, do SUS que precisa dar atendimento aos vitimados, numa corrente de resultados negativos que demonstram como a uberização é na verdade um vetor de concentração de renda, responsável pela perda da autonomia de muitos trabalhadores da atualidade. O que era um apelo para à comunidade, as conexões interpessoais e a sustentabilidade se transformou numa agressiva manifestação do capitalismo, espaço para novas formas de consumismo e precarização da vida.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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Ficção, Educação e Trânsito

Trânsito, Educação e Xadrez

Uma publicação interessante sobre o uso desta modalidade lúdica para o âmbito do ensino e da aprendizagem

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O xadrez é um jogo de tabuleiro que pede um jogador muito atento, inteligente e com as adversidades de uma partida. O trânsito, da mesma
Foto: Divulgação

Leonardo Campos

O xadrez é um jogo de tabuleiro que pede um jogador muito atento, inteligente e sagaz para lidar com as adversidades de uma partida. O trânsito, da mesma maneira, transforma o condutor em jogador e o coloca numa situação de atenção necessário, cuidado constante diante dos possíveis obstáculos, bem como uma postura defensiva para saber lidar com o “outro” que divide o mesmo espaço neste tabuleiro da vida. Foi com esta ideia que Eurípedes Kuhl, experiente no Serviço Militar, bem como em Administração e Segurança do Trabalho, desenvolveu Trânsito, Educação e Xadrez, uma publicação interessante sobre o uso desta modalidade lúdica para o âmbito do ensino e da aprendizagem, conteúdo que parece muito complexo em seu preâmbulo, mas que vai delineando as suas intencionalidades ao passo que cada página de leitura é avançada. Se você, caro leitor, é alguém como eu, um leigo total das estratégias do xadrez, recomendo que assista ao máximo de tutoriais que puder, leia manuais, consulte o passo a passo deste jogo de tabuleiro para que a sua dinâmica no âmbito educacional seja a mais produtiva possível, combinado?

Em sua abertura, o autor comenta brevemente o estabelecimento do Código de Trânsito Brasileiro, dando destaque aos avanços que surgiram com os desdobramentos da aplicação desta legislação em 1997. Ele reflete, por sua vez, que as nossas ruas e rodovias estão longe de atingirem os ideais previstos pelo CTB, haja vista as suas respectivas estruturas problemáticas. Além disso, nos permite refletir que não apenas a questão geográfica da mobilidade, mas o fator humano, algo que mesmo diante das punições previstas nos artigos legais, ainda é um ideal que distante e precisa, constantemente, ser alcançando por meio de campanhas e demais ações educativas. É quando entra o xadrez. A sua apresentação da famosa partida de 1851, intitulada A Imortal, é demasiadamente vaga, não nos deixando entender o propósito de sua inserção no material. É uma passagem superficial, desnecessária e deslocada. Mas não atrapalha o andamento educativo do livro.

Logo mais, há uma explicação básica para os elementos que compõem o tabuleiro, bem como um breve percurso histórico dos significados destas posições. Considerado como uma ciência autêntica, envolto em olimpíadas com jogadores que levam as suas regras com seriedade, o xadrez possui um tabuleiro com espaços em preto e branco. São as vias de condução das peças. Neste jogo, temos o Rei, a Torre, o Bispo, a Dama, o Peão e o Cavalo, todos integrantes desta travessia que mescla atenção, sagacidade e inteligência, na busca de um dos jogadores em apanhar as peças do adversário e dar o xeque-mate. Cada movimentação do jogador envolvido, em associação com a dinâmica do trânsito, é preciso atuar com atitudes seguras, eficientes, tendo em vista evitar colisões, incorreções que não permitem erro, levando-o ao trágico, dentre outras iniciativas formidáveis quando associadas com nossa conduta na mobilidade.

Diante do exposto, como já dito, no xadrez, o grande lance de jogador é a atenção. Se você se perde, adentra numa zona de perigo, como o trânsito. Pedestres, ciclistas, motociclistas e condutores precisam manter-se atentos, sem o uso indevido do celular, distantes dos efeitos do álcool e conscientes dos limites velocidades das vias que atravessam. No trânsito, temos que colocar em prática a humanidade que nos define e atuar de maneira educada, para que as coisas fluam adequadamente para todos. Adequado, aqui, designa segurança. Cada seção há uma frase de epígrafe, logo no começo da representação do quadro, como nos exemplos destacados nestas ilustrações. Didático, o autor relaciona posturas comuns do trânsito com a ação inconsequente ou devidamente cidadã de cada jogador diante do tabuleiro. Há o rude, o afobado, o confuso, o hábil, o atrevido, em linhas gerais, as cabíveis alegorias para o que encontramos cotidianamente no cenário da mobilidade, seja como pedestre a aguardar um ônibus, passageiro em deslocamento no interior do Uber, ciclista ou motociclista numa travessia pelas pistas que cortam as nossas cidades, em suma, qualquer situação de trânsito do nosso dia.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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Rota de Colisão

Ao longo de suas 93 páginas, Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você debate segurança e cidadania no trânsito

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Os impactos dos sinistros de trânsito, fatais ou com vítimas acometidas por sequelas, tragédias que antes eram chamadas de acidentes, são apresentados por meio de um texto coeso, coerente e dinâmico em Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você, publicação de 2007, assinada pelos especialistas Eduardo Biavati e Heloisa Martins. O termo acidente, como nós sabemos, expressa algo imprevisto, furtivo, diferente do que contemplamos com horror em nosso cenário de mobilidade cotidiano, espaço onde situações evitáveis poderiam não acontecer e ceifar tantas vidas ativas, numa celeuma que causa desordem não apenas diante dos familiares e amigos enlutados, mas também ocasiona graves crises econômicas para uma nação que deixa de realizar amplos investimentos em outras áreas para atender aos vitimados com sequelas, dependentes de aposentadorias, bem como as cifras que os sinistros custam para o SUS.  No livro, a cidade não deixa de ter a sua culpa. Zonas com infraestrutura inacabada, projetos problemáticos, assim como o comportamento humano no trânsito, carente de educação por parte de muitos condutores, pedestres e ciclistas. Focado na importância do exercício da cidadania, o conteúdo em questão é fluente, de poucas páginas e funciona como material para educar a população em geral, além de ser subsídio básico para projetos de educação para o trânsito.

Leonardo Campos

Os impactos dos sinistros de trânsito, fatais ou com vítimas acometidas por sequelas, tragédias que antes eram chamadas de acidentes, são apresentados por meio de um texto coeso, coerente e dinâmico em Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você, publicação de 2007, assinada pelos especialistas Eduardo Biavati e Heloisa Martins. O termo acidente, como nós sabemos, expressa algo imprevisto, furtivo, diferente do que contemplamos com horror em nosso cenário de mobilidade cotidiano, espaço onde situações evitáveis poderiam não acontecer e ceifar tantas vidas ativas, numa celeuma que causa desordem não apenas diante dos familiares e amigos enlutados, mas também ocasiona graves crises econômicas para uma nação que deixa de realizar amplos investimentos em outras áreas para atender aos vitimados com sequelas, dependentes de aposentadorias, bem como as cifras que os sinistros custam para o SUS.  No livro, a cidade não deixa de ter a sua culpa. Zonas com infraestrutura inacabada, projetos problemáticos, assim como o comportamento humano no trânsito, carente de educação por parte de muitos condutores, pedestres e ciclistas. Focado na importância do exercício da cidadania, o conteúdo em questão é fluente, de poucas páginas e funciona como material para educar a população em geral, além de ser subsídio básico para projetos de educação para o trânsito.

Ao longo de suas 93 páginas, Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você debate segurança e cidadania no trânsito em seus seis capítulos curtos, todos ilustrados e com desenvolvimento de ideias pedagogicamente dinâmicas para o entendimento de todos os públicos. Trânsito e Transitar, o primeiro capítulo, versa sobre como o movimento das ruas depende da atividade humana que acontece ao redor dos espaços de circulação, apresentando questões sobre o desenho das cidades e a solução de alargamento das pistas como uma opção que não resolve os problemas no cenário da mobilidade urbana contemporânea, algo que envolve demolição de prédios, casas, indenizações, dentre outras circunstâncias. Construir novas avenidas em zonas já estabelecidas não é algo tão tranquilo quanto se imagina. Os autores refletem a quantidade de carros na rua, a questão do meio ambiente degradado pelos combustíveis e o desinteresse da população pelos modais no deslocamento, não apenas por culpa dos usuários, mas pelas condições precárias de transporte em muitas zonas urbanas brasileiras.

No desenvolvimento de As Regras: De Quem é A Vez, o texto relaciona os espaços urbanos com regras de um jogo, onde precisamos seguis as orientações adequadamente para vencer as etapas e conquistar a linha de chegada. São alegorias importantes para transformação do que está previsto por lei em explicações pedagógicas para o grande público. Obedecer às regras é algo chato? Sim, mas estamos num espaço coletivo, por isso, temos que levar em consideração os nossos interesses, mas as vontades alheias, afinal, não somos donos da rua. Existem centenas de regras no Código de Trânsito Brasileiro, a maioria, desconhecida pela população, sendo uma delas o destaque do capítulo: a hierarquia de responsabilidades ao trafegar, espaço que tem o pedestre como elemento mais frágil diante de ciclistas, carros, caminhões e ônibus.

Em Os Acidentes: Onde Mora o Perigo, terceiro capítulo da jornada de Rota de Colisão: A Cidade, O Trânsito e Você, encontramos algumas pontuações sobre os chamados acidentes, agora sinistros de trânsito, conforme a atual legislação, eventos que não devem ser pensados como obras do destino, mas acontecimentos que podem ser evitados se todos que circulam pelas vias da cidade obedecessem ao que está disposto no CTB e também respeitasse o lugar de passagem de cada um. O grande índice de tragédias nas vias não para de crescer pelo fato de nós, agentes do processo de mobilidade cotidiana, não respeitamos adequadamente o outro, colocando-se muitas vezes como irresponsáveis. Uso de álcool, mesmo na quantidade mínima, não por o cinto de segurança e exceder a velocidade: três grandes problemas contemporâneos, somados ao mais recente de todos, o uso de celular na direção, situação que está, atualmente, entre as três mais perigosas e registradas nos casos de colisão e atropelamento no mundo.

No elucidativo Atropelamento e Lesão Cerebral, os autores falam sobre como a mídia menciona as tragédias, mas não dá o mesmo enfoque para as vítimas não fatais, figuras da tessitura cotidiana que custam muito para os cofres públicos, sejam por seus tratamentos ou processos de aposentadoria. No Brasil, a maioria dos sinistros ocorre entre sexta-feira (noite) e domingo (final da tarde). Por que será? No mundo de hoje, diríamos que é porque “sextou”. E é exatamente por isso, o que nos abre as portas para conteúdo de Álcool, óbvio e quase senso comum, mas parece que ainda não nos alertamos assertivamente para esta substância que é, ao lado do excesso de velocidade, um dos elementos responsáveis pelas tragédias no trânsito, algumas irreversíveis para os envolvidos. No desfecho, temos Colisões e Lesão Medular, uma exposição dos problemas causados em determinadas situações de sinistro. Os autores explicam o que ocorre com o nosso corpo por meio de exemplos que reforçam a pequenez dos humanos diante dos impactos da dinâmica física de uma colisão ou atropelamento. É tudo muito assustador, mas ainda assim, nos pegamos sem seguir as orientações para evitar tudo aquilo que é mostrado nos casos descritos pelo livro.  Ademais, em seu encerramento, os autores pedem reflexão e postura dos leitores, fornecendo ótimas sugestões de leitura complementar.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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Sem data, sem assinatura

O filme uma é história de luto considerada como uma das mais atordoantes do cinema contemporâneo

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colisões, capotamentos, bem como condutores alcoolizados ou sem cinto de segurança, para o estabelecimento da catarse. Sem Data,
Foto: Divulgação

Leonardo Campos

Pode ser diferente em cada região do planeta, mas a constante taxa de sinistros de trânsito envolvendo vítimas fatais é uma realidade contemporânea que infelizmente devasta não apenas países economicamente desfavorecidos, mas também os lugares considerados de “primeiro mundo”. O cinema, sabiamente, já trabalhou diversas vezes com atropelamentos, colisões, capotamentos, bem como condutores alcoolizados ou sem cinto de segurança, para o estabelecimento da catarse. Sem Data, Sem Assinatura, um apurado exemplar do cinema iraniano recente, é uma destas narrativas arrebatadoras sobre os desdobramentos de uma situação evitável na vida daqueles que perderam alguém e na trajetória daqueles sufocados pela angústia e culpa, isto é, indivíduos que precisam lidar com as consequências de seus erros, numa punição que pode ser até ser mais severa que a aplicação de algo previsto na legislação, afinal, ser preso ou responder processo pode ser tão doloroso quanto acordar e dormir todos os dias pensando na vida do outro que você destruiu após agir de maneira indevida no trânsito.

Lançado em 2017, a produção dirigida por Vahid Jalilvand, também responsável pelo roteiro, escrito ao lado de Ali Zarnegar, é uma lição de drama assertivo. Em seus 104 minutos, acompanhamos a saga de um homem devidamente equilibrado em sociedade, aquele tipo de personagem que goza dos privilégios de sua profissão, numa existência confortável e tranquila, tendo os habituais altos e baixos que qualquer ser humano enfrenta cotidianamente, mas que não precisa lidar com dificuldades mais extremas para garantir a sua sobrevivência. Ele é o catalisador das reflexões sobre ética em Sem Data, Sem Assinatura, uma história de luto considerada como uma das mais atordoantes do cinema contemporâneo. Na trama, seguimos os passos de Kaveh (Amir Aghave), um médico que colide com uma moto numa situação inesperada durante uma de duas travessias diárias. Ele não comete aquilo que geralmente contemplamos horrorizados nos telejornais e em muitos filmes: a omissão de socorro.

O médico percebe que o filho do condutor, machucado no pescoço, sofreu as consequências da forte colisão, mas não teve a vida ceifada. Tranquilo, ele propõe ajuda e o encaminha para o atendimento hospitalar. O susto, no entanto, surge no dia seguinte, quando chega ao ponto de trabalho para mais um plantão. Descobre que o menino morto é a vítima do acidente. Na autopsia, a pessoa responsável pelo perito identificou um problema de intoxicação alimentar, mas Kaveh acredita que o motivo real tenha sido a pancada durante o sinistro de trânsito. E agora? Como lidar com essa dúvida corrosiva, acompanhada de um sentimento de culpa devastador? É assim que ele não fica quieto e resolve investigar as causas da morte do garoto. Será mesmo que ele deve se sentir responsável pelo falecimento? Aqui, o espectador é colocado diante de uma trama instigante sobre atos irrisórios que mudam para sempre as nossas vidas, escolhas do presente que determinam tacitamente o nosso futuro.

Nada é tão fácil quanto o esperado, talvez mais mastigado e melodramático se fosse uma narrativa de estrutura estadunidense. Sem Data, Sem Assinatura trabalha em torno de clichês, mas propõe uma abordagem mais complexa de sua proposta. Com muitas cenas no interior de carros, satisfatoriamente concebidas pela ótima direção de fotografia, o filme reflete a realidade iraniana da falta de liberdade de expressão, algo curiosamente destacado na divulgação da produção em sua época de lançamento, escolha narrativa que também dialoga com o que está designado como tema do filme, isto é, a travessia de personagens pela vida, os embates entre as pessoas, em colisões cotidianas repletas de tensões, a maioria psicológicas, mas também físicas, como a tragédia que envolve o médico Kaveh e Moosa (Navid Mohammadzadeh), pai do garoto que perde a vida, talvez pelo sinistro ou quem sabe, pela intoxicação alimentar.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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