Professor Leonardo Campos
Se chover, não rola trabalho. Quando ocorre, as demandas ficam mais arriscadas. Caso haja um sinistro de trânsito que envolva morte ou ferimentos graves, dificilmente a família receberá algum seguro ou indenização. Cansados e movidos pela adrenalina de uma carga horária que não é regida pela legislação trabalhista, os integrantes da chamada uberização do trabalho são pessoas que passam pelo processo de informalização das garantias e proteções necessárias para qualquer trabalhador no devido exercício de sua cidadania. Nessa demanda, ele entra com os meios de produção, assume os custos de sua atividade e supostamente trabalha quando quer, dentro de seu agendamento, num esquema que é muito diferente das maravilhas pregadas pelo ideal de liberdade da uberização, pois cada vez mais, esses indivíduos ficam dependentes dos algoritmos, das comissões e da severa cobrança diante das metas de produtividade.
São pessoas que fazem parte do just-in-time, isto é, o trabalhador autogerente que organiza ele mesmo a sua rotina de trabalho, mas pressionado pelas empresas que entram como mediadoras, mas na verdade operam como uma espécie de mecanismo para novas formas de subordinação e controle das relações de trabalho. Numa pesquisa realizada em 2019 pelo PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), os dados demonstraram que 3,8 milhões de brasileiros tinham no aplicativo Uber a sua maior fonte de renda. Com as mudanças ocorridas diante do nosso atual cenário pandêmico, iniciado em 2020 e ainda em vigor em 2021, com desdobramentos possíveis para os próximos anos, esse panorama provavelmente mudou de estrutura e agora deve se encontrar ainda mais problemático.
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Uberização no Brasil: Uber, Ifood e as condições precarizadas de trabalho
Outra pesquisa esclarecedora, publicada no mesmo ano do trabalho científico mencionado anteriormente, alegou que 29 anos é a média de idade dos integrantes da uberização, em sua maioria, homens, 73% apenas com Ensino Médio completo e 11% tendo concluído o Ensino Superior. Realizada pela Fundação Instituto Administração e publicada pela Associação Brasileira Online to Offline, a pesquisa traz diversos depoimentos de pessoas encantadas pela possibilidade de cumprimento de uma jornada que são elas mesmas que fazem, opiniões que não levam em consideração precarização de um trabalho que cobra jornadas longas para alcance do básico para a sobrevivência. Condutores de automóveis cansados diante de rotinas exaustivas, motoqueiros a driblar a força da gravidade para cumprir o máximo de demandas em prol da comissão e por fim, ciclistas que dependem da força física para fazer girar as rodas de seu mecanismo de mobilidade, num processo que é criticado, mas para alguns, é o único caminho possível para geração de renda num país com índices cada vez maiores de desemprego. 4
Como lidar? É quando chegamos ao conteúdo da série A Garota da Moto, produção brasileira de duas temporadas, uma mais dinâmica e interessante e outra irregular e desnecessária, narrativa episódica que possui falhas enquanto dramaturgia e entretenimento, mas permite ótimas discussões sobre o atual processo de uberização do trabalho. Joana, Túlio, Mickey, Marley e outros personagens passam pela atração ficcional e representam o quadro da uberização como jovens motoqueiros que trabalham diariamente em entregas das mais variadas pela capital paulista, uma zona cheia de perigos e obstáculos que colocam a suas respectivas integridades físicas e psicológicas em xeque a cada finalização de expediente na Motópolis, empresa fictícia que é um dos núcleos dramáticos do programa que será analisado adiante, preâmbulo para outras considerações sobre a uberização no cenário do trabalho contemporâneo, reflexão realizada em nosso terceiro e último tópico, combinado?
Notas sobre A Garota da Moto: Ficção, Uberização e Trânsito
Duas temporadas e 51 episódios de muita adrenalina, mesclada com humor e estereótipos sobre a cultura brasileira. Irregular, A Garota da Moto diverte, mas incomoda com a sua estrutura que promete ser série, mas na verdade é construída com base nas fórmulas das telenovelas que diferente da estrutura seriada, possui peculiaridades que a prejudicam enquanto obra de entretenimento. Na seara contextual há uma abordagem válida e pedagógica sobre o que chamamos hoje de uberização, oferta de trabalho na era ilusória do autogerenciamento, encaminhamento reflexivo que impede a série de ser classificada como baixo da avaliação regular e se tornar ao menos mediana. Há bons momentos, situações cativantes e carismáticas, mas além dessa estruturação errônea como série, o programa também peca pela distância entre as duas temporadas, uma de 2016 e a outra de 2019, sendo a primeira mais atraente e dinâmica, diferentemente da segunda, excessivamente maniqueísta e caricata. Primeiro, proponho ao leitor uma leitura geral, para logo depois, expor a análise estética e as reflexões mencionadas acima.
Exibida entre 13 de junho de 2016 e 09 de abril de 2019, no meio, um intervalo longo dentre os dois blocos de episódios, A Garota da Moto aborda a trajetória da motogirl Joana (Christiana Ubach), uma jovem que no passado recente, se relacionou com um homem que jamais imaginou ser casado, figura que depois de anunciada a gravidez da parceria que na verdade era amante e não sabia, decidiu fugir da responsabilidade. Mais adiante, no tempo presente da série, Joana é mãe do pequeno Nico (Enzo Barone), criança bastante ativa e curiosa, mas nunca tão questionadora o quanto se espera de alguém que nunca conheceu o pai. Por ter problemas de relacionamento com o seu pai, Rei (Murilo Grossi), dono do Botecão, ponto de encontro para diversos personagens da produção, Joana se tornou uma mãe que não quer depender de homem para nada e no trabalho de entregas na Motópolis, consegue administrar as suas finanças e atender ao que é necessário na criação do seu filho. O que ela não espera é a presença de Bernarda Salles de Albuquerque (Daniela Escobar), a maniqueísta vilã da produção, esposa do falecido que no passado não assumiu Nico, mas depois de um tempo, parecia interessado em voltar atrás, mas infelizmente teve a vida ceifada em circunstâncias misteriosas.
O mistério, saberemos logo de cara, não precisa de um especialista em dramaturgia para nos elucidar. Provavelmente a esposa matou o então marido infiel e agora quer eliminar Nico, ameaça aos bens que em sua lógica de antagonista caricata, deveriam ficar apenas para ela. A primeira temporada, com sua história mais envolvente e menos frágil, traz a batalha de Joana contra os obstáculos colocados por Bernarda, uma socialite criminosa. Na segunda fase, no entanto, temos a exagerada repetição de fórmulas, numa série de episódios que parecem deslocados do que foi feito no período anterior. Situações românticas, piadas divertidas, personagens caricatos em excesso e outras demandas narrativas preenchem os núcleos da produção que se divide basicamente nos momentos da Motópolis, o ambiente da agressiva uberização; o Botecão, local comandado por seu pai; e as ruas de São Paulo, territórios de mobilidade que exalam perigo para os motoqueiros e motoqueiras que exercem cotidianamente os seus trabalhos.
A Garota da Moto: uma série de aventura e comédia que retrata a uberização do trabalhador
Além da dinâmica entre Joana, Bernarda e a proteção de Nico, A Garota da Moto traz Val (Fernanda Viacava) e Pam (Martha Nowill) como as pretendentes de Rei, o velho Reinaldo, homem que busca consertar os seus erros como pai no passado e fornecer para Joana uma assistência mais adequada. Na Motópolis, além dos motoboys, temos Bactéria (Thiago Campos Amaral), a dubiedade em pessoa, assistente da gestão da empresa de entregas. Dentre os demais destaques, além da frota de motoqueiros, temos Liége (Gilda Nomacce), personagem que representa a mudança brusca de classe social, o estereótipo da “caipira” que exala bondade e dinheiro para quem precisa, conveniente para as necessidades de Joana e de seu grupo em algumas ocasiões onde a luta, a discussão e outros recursos imateriais não conseguem dar conta de resolver os problemas. Na direção, Júlia Pacheco e Marcelo Cordeiro, com 32 e 21 episódios comandados, respectivamente, entregam um produto que tal como mencionado, é ofertado como série ao espectador, mas na verdade possuem uma estruturação mais novelesca, algo tido por aqui como frágil, tanto na estética quanto nos requisitos narrativos.
Na direção de fotografia, Jacob Solitnerick assume a maioria dos episódios, entregando ao público algumas passagens funcionais, mas nenhum momento definitivamente artístico para este setor, burocrático em praticamente todas as suas cenas. Os figurinos de Isadora Ribas trajam os personagens e os deixam com a “cara” de seus perfis psicológicos, sociais e físicos, criaturas elaboradas pelos argumentos e roteiros de João Daniel Tikhomiroff, criador da série, juntamente com David França Mendes. Na condução musical, A Garota da Moto empolga com uma trilha urbana, mesclada por uma textura percussiva voltada ao gênero ação, em consonância com as faixas que possuem letras diretamente interpretativas do conteúdo da série. Por falar em interpretação, acredito que as desnecessárias passagens com Christiana Ubach e Daniela Escobar a comentar os acontecimentos funcionam como um atestado dos produtores no que concerne a suporta incapacidade dos espectadores em compreender o que está esmiuçado em cena. É um recurso vulgar, excessivo, prejudicial para a condução do programa que já possui uma lista de coisas para se preocupar. Menos, aqui, como no popular, seria mais. Bem mais.
Ademais, sobre a uberização mencionada, devo dizer que o tema foi o responsável por me fazer chegar no conteúdo de A Garota da Moto. Em 2019, enquanto procurava compreender melhor o assunto, deparei-me com a série como uma opção para discussão desse tema. Se usada para esse propósito educativo, os episódios da saga de Joana e Nico versus Bernarda podem ilustrar muitíssimo bem o termo que hoje é utilizado para se debater as relações comerciais na atual era do autogerenciamento, a era do just-in-time, termo que designa o trabalhador que gerencia a sua rotina de trabalho, mediado por empresas que se apresentam como tais, mas na verdade, operam por meio de novas formas de subordinação e controle do trabalho, transformando o suposto trabalhador livre de formalidade em alguém sem direitos e desprovido de garantias. É um dos caminhos para o futuro do trabalho, trilha macabra mostrada com graciosidade e senso de aventura na série, mas que na realidade, revela o quão desumanos nos tornamos na contemporaneidade, em diversas nuances, inclusive nas relações de trabalho, precarizadas. O termo é uma referência ao aplicativo de transporte “Uber”, empresa com grande visibilidade na última década e em constante ascensão em nossa rotina de mobilidade na atualidade. Para mais reflexões sobre o assunto, basta ler algumas publicações recentes sobre o tema, uma das palavras-chave dos debates na esfera virtual pública, presente nos momentos diletantes de A Garota da Moto, série irregular, mas divertida.
Uberização: Tom Slee e a ampliação do entendimento sobre o assunto
Muitos jovens do esquema da uberização são moradores de regiões periféricas da cidade. Eles às vezes atravessam uma longa quilometragem para chegar aos grandes centros onde rolam as entregas. Alguns, muitas vezes, dormem nas ruas para evitar atrasos e problemas no cumprimento das metas de um cenário bastante criticado, mas também muito concorrido, afinal, basta assistir cotidianamente os telejornais para saber que estamos muito longe da melhoria nos gráficos que indicam as taxas de desemprego em nosso país. Com dificuldade de inserção no mercado de trabalho, os indivíduos da uberização encontram no aplicativo a chance de trazer para casa o básico para a sobrevivência. É um esquema que parece sem volta, refletido muito bem por Tom Slee em seu livro Uberização: A Nova Onda do Trabalho Precarizado, publicado aqui no Brasil pela Editora Elefante. Em sua publicação, o autor aborda a Economia do Compartilhamento com um sentimento de traição. Ele busca desmitificar a aura de esperança diante da maneira como lidamos com uma proposta que inicialmente, apresentava-se como promotora da cooperação social, numa falsa exaltação da sustentabilidade. Executivos desafiam as regras democráticas, lucram bastante e se aproveitam do cenário de desemprego e miséria para se manter numa fachada de movimento social.
Charge para reflexão sobre a Uberização e indicações de leitura sobre esse tema atual
Em suas reflexões, Slee faz uma denúncia ancorada em dados que comprovam a Economia do Compartilhamento como uma espécie de playground dos bilionários que habitam o Vale do Silício, território de startups de um cenário também chamado de economia dos bicos (gig economy), economia da viração, Consumo colaborativo, dentre outras nomenclaturas destes projetos que desregulam diversas áreas de nossas vidas e promovem a precarização do trabalho, tal como acontece com os personagens da série A Garota da Moto, ilustração para o cenário de tantos entregadores de aplicativos que além das baixas renumerações e ausência de direitos, trabalham em regimes exaustivos, situação que gera o aumento nas taxas de sinistros de trânsito e, consequentemente, mexem com as estruturas sociais das famílias, do SUS que precisa dar atendimento aos vitimados, numa corrente de resultados negativos que demonstram como a uberização é na verdade um vetor de concentração de renda, responsável pela perda da autonomia de muitos trabalhadores da atualidade. O que era um apelo para à comunidade, as conexões interpessoais e a sustentabilidade se transformou numa agressiva manifestação do capitalismo, espaço para novas formas de consumismo e precarização da vida.