Ciência, Cultura & Sociedade
Histeria


Professor Leonardo Campos
Desenvolvido num contexto de muitas mudanças na sociedade, em especial, por causa das investigações científicas e suas descobertas, Histeria é uma comédia dramática de época sobre várias coisas. Para alguns, a produção é um entretenimento para os interessados numa história de amor convencional, mas envolvente, com as suas idas e vindas. Para outros, o filme funciona como uma ilustração interessante de determinadas etapas da metodologia da pesquisa, narrativa que traz um enredo com personagens diante de problemas, hipóteses, justificativas, objetivos gerais e específicos, dentre outros momentos de uma investigação. Quem vos escreve, por sua vez, consegue se colocar na posição de espectador que contempla as duas vertentes. Enquanto produto de entretenimento, funciona, mesmo que um pouco falho em determinados aspectos que englobam o desenvolvimento de seus personagens, mas nada que atrapalhe o resultado geral. Como observação científica, também possui algumas pontas soltas, mas o conjunto é satisfatório e ajuda bastante na reflexão sobre as etapas que compõem uma pesquisa. Dirigido por Tanya Wexlex, cineasta que toma como base, o roteiro de Lisa Dyer e Stephen Dyer, o filme se inspira na história de Howard Gensler e nos conta a inusitada história do vibrador.
Ao longo dos 100 minutos da trama, temos um painel de personagens com conflitos represados em seus respectivos inconscientes. Os primeiros enquadramentos nos apresentam: Londres, 1880. Como mencionado anteriormente, uma época de invenções. A histeria, vista como um sintoma físico para pulsões internas, era a manifestação de irritabilidade feminina diante de qualquer conflito. O puritanismo tomava conta da sociedade mergulhada nos ideais vitorianos. É nesse contexto que conheceremos o jovem médico Dr. Mortimer Granville (Hugh Dancy), um progressista que deseja se estabelecer melhor em seu campo de atuação. Com faro para investigação, ele trabalha numa era tomada pela falta de assepsia, amputações aleatórias e uso de sanguessugas como partes de alguns procedimentos convenientes na ocasião. Em sua jornada, encontra o Dr. Robert Dalrymple (Jonathan Pryce), médico empreendedor de um segmento bastante peculiar, ponto de partida para uma revolução que mudará a vida de todos.
Viúvo, o Dr. Dalrymple é pai de Emily (Felicity Jones) e Charlote (Maggie Gyllenhaal). Enquanto a primeira é o protótipo da bela, recatada e do lar, a segunda é revolucionária, ajuda os pobres e oprimidos da região, não liga para os bens de sua família e atua como uma feminista engajada. Logo, sabemos que em algum momento da narrativa, ela será acusada de histeria, diferente de sua irmã, uma delicada jovem que ama as artes clássicas e executa um piano divinamente. A aceitação social da recatada é o contraponto da execução moral da outra, considerada fora do lugar para a sua época. Essa dupla de mulheres metaforizam as ações profissionais de Granville e Dalrymple, homens que atendem pacientes com em busca do chamado paroxismo histérico, isto é, o orgasmo por meio da estimulação vaginal realizada durante as sessões no consultório. Este é o método de trabalho no qual o jovem médico é inserido, ao começar a trabalhar com o veterano que lhe oferece a chance de desenvolver novas técnicas na área. Com o tempo, no entanto, as mãos entram em colapso, pois a chegada de energia jovem faz a agenda lotar.
Como lidar? As coisas mudam depois que o Lord Edmund St. John-Smythe (Rupert Everett), um excêntrico homem de negócios em Londres, desperta para uma nova modalidade de vibrador. Esse personagem idolatra qualquer coisa conectada com as novas tecnologias e um simples espanador elétrico em movimento o desperta para os movimentos circulares que darão prazer para as pacientes da dupla de médicos e permitirá que a execução do trabalho seja menos dolorosa para as suas mãos comprometidas. Ao patentear a sua invenção, o Lord investe cientificamente no produto e permite que novos modelos sejam alcançados no futuro. Há até um momento de testagem com Molly (Sheridan Smith), uma das empregadas que cuidam da casa do Dr. Dalrymple. Ousada e sexualmente interessada no médico jovem logo após a sua chegada ao local, ela aceita ser parte do experimento com o estimulador elétrico, permitindo que a invenção tenha caráter de pesquisa científica que busca ajustar o modelo conforme as necessidades dos seus usuários. Tudo isso, costurado num tecido narrativo divertido e fluente, ideal para sensibilização de pessoas interessadas ou que precisam compreender métodos de pesquisa.
Neste processo, então, as etapas de uma pesquisa estão bem desenvolvidas. Temos as manifestações de histeria como problema, a justificativa em torno do prazer atribuído ao conjunto de mulheres supostamente reprimidas, a hipótese em torno da massagem na região como alívio para os sintomas e resolução das crises, seguido do método que envolve a estimulação, etapa que revela a descoberta de novos caminhos para a questão, afinal, ao adquirir lesões por esforços repetitivos, o médico protagonista se mantém atento a tudo que possa gerar um novo procedimento para o seu trabalho, chegando ao invento do Lord Edmund, primeiro passo para os protótipos que se tornariam vibradores no futuro e chegariam ao nosso tempo em novos formatos, mas dentro de outras concepções de uso, voltadas ao prazer e distanciados destas reflexões científicas já refutadas atualmente. No desfecho de Histeria, os personagens debates as frustrações das mulheres na época, exaltada erroneamente como comportamento histérico, quando na verdade se originavam de problemas mais gerais.
Como narrativa cinematográfica, o filme funciona muito bem, desde a direção de fotografia de Sean Bobbitt e seus planos que contemplam curiosamente as sessões de atendimento dos médicos, aos espaços concebidos pelo design de produção, assinado por Sophie Becher, profissional fidedigna ao contexto histórico da narrativa, detalhista na estruturação dos cenários e elementos que compõem a direção artística. Em sua proposta visual, mergulhamos no período e assim, nos relacionamos melhor com a história contada. Ponto positivo também para os figurinos de Nic Eole e a trilha sonora de Gast Waltizing, textura percussiva cheia de graça. Ademais, sem aprofundar muito nos temas, Histeria é apressado enquanto construção romântica e um pouco superficial enquanto narrativa de entretenimento com abordagem sobre a metodologia da pesquisa científica. Na caminhada para dar conta dos dois aspectos, acaba sem conseguir dar maior amplitude para um lado ou outro, mas acredito que é nesse equilíbrio que o filme funciona para o grande público e permite a nós, professores ou estudantes em busca de produções que exponham a realização da pesquisa como ilustração, aderir ao discurso cinematográfico em questão e extrair dele as partes que necessitamos para o estabelecimento de uma boa discussão.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Gattaca: Experiência Genética
A trama se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética


Leonardo Campos
Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos, um campo cheio de regras, axiomas, leis e teoremas, estabelecidos para que os responsáveis por suas manipulações sigam fielmente os direcionamentos, nalgumas vezes, transbordados quando há vantagens que nem sempre dialogam com aquilo que se convencionou a chamar de postura ética do pesquisador. Ao longo de seus envolventes 106 minutos, contemplamos uma trama que reflete os impactos da intervenção genética em nosso mundo, na produção Gattaca, dividido entre os seres humanos gerados biologicamente e aqueles concebidos graças ao advento das evoluções científicas. Neste cenário sombrio, temos um eficiente debate sobre o papel da ciência em nosso cotidiano, em especial, o desenvolvimento da genética na dinâmica dos seres vivos, numa reflexão sobre bioética e seus desdobramentos, afinal, por mais positiva que seja o avanço tecnológico neste campo, estamos lidando com a perigosa eugenia, algo que nas mãos da humanidade conflituosa, pode gerar caos.
A trama Gattaca se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética. Numa espécie de processo eugênico, a ciência faz a separação dos indivíduos válidos e inválidos, sendo os primeiros os dominantes nas relações sociais. O cineasta Andrew Niccol adentra pelo viés das narrativas sobre o lado vilanesco da ciência, sabiamente trabalhado em ao longo da história do cinema, em filmes como Metrópolis, de Fritz Lang, dentre outros. Aqui, ele demonstra o quão a sociedade fictícia se encontra submissa aos ditames de um discurso científico opressivo, numa existência onde os seres humanos artificiais ocupam melhores posições e os considerados inferiores, isto é, com probabilidades de problemas genético, os espaços de menor favorecimento social. Em Gattaca: A Experiência Genética, o espectador é apresentado ao mundo dos filhos da fé e dos filhos da ciência. Ao nascer, o individuo que antes tinha o destino nas mãos da vontade divina agora pode ter o seu perfil delineado pela engenharia genética. Logo em seu nascimento, apenas uma gota de seu sangue permite a impressão de um diagnóstico que conduzirá toda a sua vida, num processo que flerta com todas as etapas de uma tradicional investigação científica, da introdução da proposta ao estabelecimento dos objetivos, da justificativa, do desenho antecipado do problema e da hipótese, aos métodos selecionados e os desdobramentos das análises que tem como destino, o encontro de respostas assertivas.
Nestes cálculos, as probabilidades definem as suas qualidades genéticas, psicológicas, físicas e possíveis doenças e até o desenvolvimento da causa de morte no futuro das pessoas. Diante do exposto, conhecemos o adulto Vincent Freeman (Ethan Hawke), interpretado por Mason Gamble na infância e por Chad Christ na adolescência, um homem que é filho de Deus, ou seja, nasceu com as seguintes porcentagens nas chances para desenvolvimento de problemas: 60% para questões neurológicas, 42% para depressão, 89% de capacidade de se concentrar e 92% para a possibilidade de desenvolver distúrbios cardíacos. Desde a sua infância, ele sonha em ingressar no projeto Gattaca, uma agência que treina os melhores astronautas para missões espaciais exploratórias. O grande conflito é que a sua ficha é taxativa: ele não possui os requisitos para alcançar uma vaga, pois é um filho de Deus, portanto, possui elementos que o tornam uma figura enfraquecida diante das vantagens físicas dos filhos da ciência. Além disso, psicologicamente ele é um personagem circunspecto, desanimado, haja vista a sua trajetória em família.
Quando pequeno, seus pais tiveram outro filho, Anton Freeman (Loren Dean), uma criança oriunda da ciência, socialmente com mais credibilidade que Vincent. Assim, a repressão advinda do campo científico não se mantém emaranhado em sua vida apenas na fase adulta, mas ao longo de toda a sua formação. Contemplamos tudo isso ao longo da narração em primeira pessoa do filme, com flashbacks explicativos para a postura do protagonista Vincent, figura que rouba a identidade de um nadador desabilitado após um acidente que o deixou tetraplégico, falsificação utilizada para adentrar no espaço de seu tão sonhado projeto de vida, algo que, no entanto, o coloca em risco. Após um assassinato, as coisas mudam e mesmo após a transformação física do personagem, bem como alguns ajustes de ordem comportamental, todos se tornam alvo de uma investigação que pode desmascará-lo. Ao tentar driblar o sistema e subverter uma ordem que delineia destinos predeterminados pela manipulação do DNA para a fabricação de organismos “melhorados”, Vincent também põe em risco a sua vida, numa perigosa e empolgante jornada que funciona como entretenimento de qualidade, bem como reflexões filosóficas intrigantes sobre a relação da humanidade com os próprios pilares tecnológicos que cria.
Na composição da estrutura cinematográfica de Gattaca: A Experiência Genética, o cineasta Andrew Niccol contou com uma eficiente equipe técnica, responsável pelo assertivo estabelecimento da materialidade fílmica em prol do tema debatido nos diálogos e situações do texto dramático. A textura percussiva de Michael Nyman, imersiva, acompanha as cenas que se passam pelos cenários devidamente dirigidos artisticamente pelo design de produção assinado por Jan Roells, setor que cria ambientes equilibrados, próximos do realismo de nosso mundo contemporâneo, mas com elementos que emulam as fascinantes ficções com teor científicos, conhecidas por delinear em cena, traços estéticos que nos remetem ao “futurismo”. Ademais, na direção de fotografia, Slawomir Idziak cria ângulos que nos permitem sentir a vulnerabilidade de alguns personagens, com planos que reforçam o contexto de tensão no qual as figuras ficcionais estão espalhadas, uma malha narrativa onde a ditadura da engenharia genética reforça preconceitos e fixa um amontado de castas sociais conflituosas, imersas num angustiante lugar de controle social e determinismo genético, retrato da nossa realidade, alegorizado por meio do brilhante tema desenvolvido nesta trama sobre a ciência e seus impactos positivos e negativos para a humanidade, afinal, as redes sociais e as novas tecnologias estão ai para nos mostrar que apesar de dominarmos aquilo que pode melhorar a nossa vida, também nos tornamos reféns de seus efeitos colaterais, não é mesmo?
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Introdução: A Porta de Entrada de Seu Projeto de Pesquisa
Este é um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica


Leonardo Campos
Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e elucidativo artigo com toques de tutorial, explanarei sobre os principais passos para adoção durante a elaboração da parte introdutória de seu projeto, um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica. Como porta de entrada, o seu texto deve ser limpo, atraente, coeso, coerente, fornecer subsídios para comprovação da relevância social de seu tema, bem como segurança diante da proposta escolhida para trabalho. Sendo o primeiro contato com as perspectivas de seu processo investigativo, é na introdução que você expõe a questão da sua pesquisa, o desenvolvimento do problema e a pertinência de sua hipótese, num cartão de visitas que precisa convencer os leitores sobre a significância de sua jornada.
Observe este infográfico. Leia. Faça uma análise e depois reflita sobre os pontos abordados. Foi produzido para um curso de Enfermagem, mas pode ser pensado para qualquer outra área do conhecimento. Ademais, não precisa ser seguido fidedignamente, mas adaptado para a sua realidade de pesquisa.
Observou. Descreverei mais detalhadamente sobre os pontos adiante. Sigamos.
O número de páginas para a introdução é relativo e depende das normas dispostas nos editais da instituição na qual você desenvolve a pesquisa. O seu tema deve ocupar o maior espaço do texto, numa escrita que pode (e deve) contemplar os principais conceitos, um percurso histórico do tema, dados de outras pesquisas (quando houver) realizadas anteriormente, num processo explicativo do autor (você) para o leitor, tendo como uma das principais preocupações, a determinação da abrangência da pesquisa. Recentemente, uma estudante de Jornalismo me abordou para uma orientação que se referia ao fenômeno da Cultura do Cancelamento. Na proposta introdutória, ela não especificava qual era o seu recorte temporal, bem como o seu objeto. Se este fosse um projeto esboçado para um edital de seleção para mestrado, doutorado ou adentrar numa iniciação científica, provavelmente o material seria descartado, com a reprovação divulgada nos resultados posteriormente. Explico os motivos.
Mesmo que o título forneça pistas, o texto introdutório precisa evidenciar a natureza do trabalho de maneira mais elucidativa possível. Deve atravessar, talvez indiretamente, os objetivos, a finalidade da pesquisa e a justificativa. Lembre-se, caro leitor: é na introdução que fisgamos o leitor, neste caso, os avaliadores. É um texto onde teremos uma ideia geral do projeto, parte onde o autor diz por quais motivos escolheu o assunto, tendo em vista delinear a importância de seu conteúdo. Somente na justificativa foi possível compreender que a estudante em final de curso se referia ao cancelamento por meio de uma observação detida aos participantes do reality show Big Brother Brasil, numa análise pertinente sobre os desdobramentos das opiniões destes indivíduos durante a participação no programa, culminando na aceitação ou ojeriza do público em relação aos seus posicionamentos, no linchamento virtual das redes sociais e afins. Observe que uma temática interessante quase deixou de ser levada adiante por falta de comprometimento com o texto de abertura, um trecho valioso, tal como o preâmbulo de filme, série ou romance que prende a nossa atenção e mesmo que decepcione, nos leva adiante em sua jornada.
Assim é com a introdução se sua pesquisa. É o momento de contextualização dos caminhos pavimentados em sua proposta. Precisa ser atrativa, motivar a continuidade do interesse de quem lê (e avalia), bem como traçar as contribuições advindas do tema recortado na jornada que você pretende trilhar em seu projeto. O texto? Claro, conciso e “preciso”. Como já mencionado, demonstrar os antecedentes de sua abordagem, “produzir um design” para que o leitor compreenda quão pertinente é a sua linha de raciocínio para a investigação escolhida, numa escrita que deve prezar pelo tom persuasivo e, num movimento questionador, levantar indagações sobre a temática, numa conexão assertiva com as partes subsequentes, isto é, um ritmo empolgante na abertura, para que os objetivos, justificativas, hipóteses, problemas, metodologias, mapeamento bibliográfico, orçamento e cronograma, bem como os anexos e referências consultadas no formato solicitado pela ABNT estejam organicamente unificados como partes constituintes de uma tessitura alinhada, coesa e coerente com os seus propósitos.
Boa escrita!
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Os tipos de conhecimento em `Quase Deuses`
A narrativa traz para a cena os impasses de personagens em buscar explicações para as investigações científicas que empreendem


Leonardo Campos
Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta que se baseia no roteiro de Robert Caswell e Peter Silverman para nos contar uma edificante história de superação lançada em 2004, uma saga de dedicação e empreendedorismo que atualmente é bastante mencionada em aulas de projeto de vida, cursos de metodologia da pesquisa, dentre outras áreas da aprendizagem humana. Tocante, sem apelar para um tom novelesco excessivo, algo comum na seara das produções cinematográficas para televisão, a narrativa traz para a cena os impasses de personagens mergulhados no interesse crítico para buscar explicações para as investigações científicas que empreendem, tendo o campo da medicina como espaço de desenvolvimento dos conflitos dramáticos internos, isto é, situados num caso específico de análise, bem como os externos, conectados com os desafios pessoais na vida destas figuras ficcionais com vidas atribuladas e cheias de obstáculos, mas focadas em encontrar as soluções que escreveriam os seus nomes para a eternidade, haja vista a inspiração numa história real para a concepção do filme.
Ao longo dos 110 minutos de Quase Deuses, nos deparamos com o cotidiano de Vivien Thomas (Yassin Bey) e Alfred Blalock (Alan Rickman), o primeiro, um homem negro, pobre, desacreditado diante da possibilidade de saída do determinismo que o sufoca, sendo o segundo, um médico renomado da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, ambos situados na década de 1940, uma era de conflitos bélicos mundiais e muitas mudanças de paradigmas sociais. A relação deles começa depois que Vivien consegue uma vaga de faxineiro na universidade. Curioso, ele sempre executa os seus serviços observando como as coisas funcionam ao redor, numa postura de pesquisador. O rapaz não quer apenas limpar e receber o seu salário no final do período, mas conhecer como se desdobram os processos por onde passa. Ele tem faro de investigador, posicionamento inicial que o fará ir tão longe, mais que o esperado, tornando-se um renomado cientista e médico, ganhador do Honoris Causa, em 1976. Acompanhamos cada passo seu com a trilha sonora emotiva de Christopher Young, importante para o impacto dramático de cada passagem transformadora na vida destes personagens que aprendem muito entre si.
Voltemos ao contato entre a dupla. Ao perceber que Vivien Thomas é um homem interessado e curioso, o Dr. Alfred começa a lhe garantir algumas oportunidades adicionais. Há momentos de observação de experimentos, contemplação de procedimentos, numa jornada que permite ao faxineiro sair da posição fixa importante, mas redutora, levando-o como auxiliar para o Hospital John Hopkins, numa época em que se relacionar com pessoas negras era tabu, tempo conflituoso que exigir ceder o lugar para os brancos num transporte público ou ter banheiros diferentes para cada grupo, em linhas gerais, uma tenebrosa fase da história humana que de vez em quando, se repete na contemporaneidade, por mais que afirmemos que passamos por consideráveis mudanças sociais. A esposa de Vivien, sempre preocupada, teme que as experiências do marido sejam ousadas demais e os deixem numa posição comprometedora futuramente. Ele, persistente, segue o seu sonho e consegue convencer a todos de sua competência, num trunfo belíssimo.
Sua trajetória é de superação sem aderir aos milagres ou religiosidade. Vivien Thomas é técnico no que faz, focado na metodologia, humilde quando os caminhos não levam para o esperado e consciente da necessidade de recomeçar quando percebe que realizou uma escolha equivocada. Em sua pesquisa com animais, faz procedimentos e experimenta muito, antes de chegar aos resultados finais, uma aula para a juventude contemporânea impaciente e obcecada pelo Google como via exclusiva para as suas respostas. É na exatidão científica que o personagem prospera, numa era de tantas dispersões e dificuldades como qualquer outra, marcada pela recessão econômica, desdobramento da Crise de 1929, época de taxas altíssimas de desemprego e miséria, queda do poder de compra e da renda, bem como da produção industrial em escala mundial. Sem falar na já mencionada segregação racial, um impasse que poderia ter acabado de vez com os primeiros passos galgados por Vivien Thomas, ao lado do Dr. Alfred, seu mentor, figuras unificadas para a resolução da Síndrome do Bebê Azul, um problema cardiológico que foi resolvido depois de muito trabalho, leitura, investigação e testes laboratoriais, em suma, após uma jornada exaustiva, mas necessária, de pesquisa embasada por métodos sérios.
Eles precisam descobrir como resolver a cianose provocada pela deficiência no transporte de oxigênio no sangue do bebê que desenvolve o problema quando nasce, nalguns casos, logo quando pequeno, uma condição que o deixa com a pela azulada ou arroxeada, cor que pode ser efeito da junção de sangue oxigenado com o não oxigenado, problema de saúde oriundo de má formação congênita. É uma situação raríssima que encontrou respostas significativas na empreitada do médico e de seu auxiliar. Nós contemplamos estas passagens com a direção de fotografia de Donald M. Morgan, eficiente na captação dos momentos de duelo entre os investigadores e a sociedade, personagens que atravessem os cenários do design de produção de Vincent Peranio, também assertivo ao emular com cautela as décadas por onde a trama se passa, além de construir um espaço de trabalho para a dupla que é simples, mas imersivo no que tange aos aspectos visuais de um local para experimentos científicos. Ademais, Quase Deuses também é uma narrativa para reflexão sobre os diversos tipos de conhecimento, sabia?
Nos momentos em que os dois homens debatem sobre como descobrir a cura para a cura do bebê e assim, explicar tal fenômeno, nós temos pontos de articulação com o conhecimento filosófico, obtido na lógica e na construção de conceitos. Após numerosas tentativas com animais que não dão certo, os testes acabam levando Vivien para o seu objetivo, num diálogo com o que chamamos de conhecimento sensível, aquele obtido através dos sentidos, neste caso, pelo olhar atento do personagem. Quando um representante religioso deseja intervir na cirurgia, alegando que os médicos querem interceder diante da vontade divina, temos impregnado o conhecimento religioso. No caso do conhecimento científico, podemos contemplar a sua passagem em diversos momentos de Quase Deuses, em especial, quando Vivien Thomas se apaixona pelos estudos na área de medicina e começa a devorar todos os livros possíveis sobre o assunto, numa busca por problemas, hipóteses, respostas por meio de experimentos e investigação.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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