Ciência, Cultura & Sociedade
Introdução: A Porta de Entrada de Seu Projeto de Pesquisa
Este é um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica
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Leonardo Campos
Todas as etapas de um projeto de pesquisa são importantes. Com a introdução, não seria diferente, correto, caro leitor? Em nosso breve e elucidativo artigo com toques de tutorial, explanarei sobre os principais passos para adoção durante a elaboração da parte introdutória de seu projeto, um momento importante para fisgar o leitor e garantir interesse na continuidade da leitura de sua empreitada científica. Como porta de entrada, o seu texto deve ser limpo, atraente, coeso, coerente, fornecer subsídios para comprovação da relevância social de seu tema, bem como segurança diante da proposta escolhida para trabalho. Sendo o primeiro contato com as perspectivas de seu processo investigativo, é na introdução que você expõe a questão da sua pesquisa, o desenvolvimento do problema e a pertinência de sua hipótese, num cartão de visitas que precisa convencer os leitores sobre a significância de sua jornada.
Observe este infográfico. Leia. Faça uma análise e depois reflita sobre os pontos abordados. Foi produzido para um curso de Enfermagem, mas pode ser pensado para qualquer outra área do conhecimento. Ademais, não precisa ser seguido fidedignamente, mas adaptado para a sua realidade de pesquisa.
Observou. Descreverei mais detalhadamente sobre os pontos adiante. Sigamos.
O número de páginas para a introdução é relativo e depende das normas dispostas nos editais da instituição na qual você desenvolve a pesquisa. O seu tema deve ocupar o maior espaço do texto, numa escrita que pode (e deve) contemplar os principais conceitos, um percurso histórico do tema, dados de outras pesquisas (quando houver) realizadas anteriormente, num processo explicativo do autor (você) para o leitor, tendo como uma das principais preocupações, a determinação da abrangência da pesquisa. Recentemente, uma estudante de Jornalismo me abordou para uma orientação que se referia ao fenômeno da Cultura do Cancelamento. Na proposta introdutória, ela não especificava qual era o seu recorte temporal, bem como o seu objeto. Se este fosse um projeto esboçado para um edital de seleção para mestrado, doutorado ou adentrar numa iniciação científica, provavelmente o material seria descartado, com a reprovação divulgada nos resultados posteriormente. Explico os motivos.
Mesmo que o título forneça pistas, o texto introdutório precisa evidenciar a natureza do trabalho de maneira mais elucidativa possível. Deve atravessar, talvez indiretamente, os objetivos, a finalidade da pesquisa e a justificativa. Lembre-se, caro leitor: é na introdução que fisgamos o leitor, neste caso, os avaliadores. É um texto onde teremos uma ideia geral do projeto, parte onde o autor diz por quais motivos escolheu o assunto, tendo em vista delinear a importância de seu conteúdo. Somente na justificativa foi possível compreender que a estudante em final de curso se referia ao cancelamento por meio de uma observação detida aos participantes do reality show Big Brother Brasil, numa análise pertinente sobre os desdobramentos das opiniões destes indivíduos durante a participação no programa, culminando na aceitação ou ojeriza do público em relação aos seus posicionamentos, no linchamento virtual das redes sociais e afins. Observe que uma temática interessante quase deixou de ser levada adiante por falta de comprometimento com o texto de abertura, um trecho valioso, tal como o preâmbulo de filme, série ou romance que prende a nossa atenção e mesmo que decepcione, nos leva adiante em sua jornada.
Assim é com a introdução se sua pesquisa. É o momento de contextualização dos caminhos pavimentados em sua proposta. Precisa ser atrativa, motivar a continuidade do interesse de quem lê (e avalia), bem como traçar as contribuições advindas do tema recortado na jornada que você pretende trilhar em seu projeto. O texto? Claro, conciso e “preciso”. Como já mencionado, demonstrar os antecedentes de sua abordagem, “produzir um design” para que o leitor compreenda quão pertinente é a sua linha de raciocínio para a investigação escolhida, numa escrita que deve prezar pelo tom persuasivo e, num movimento questionador, levantar indagações sobre a temática, numa conexão assertiva com as partes subsequentes, isto é, um ritmo empolgante na abertura, para que os objetivos, justificativas, hipóteses, problemas, metodologias, mapeamento bibliográfico, orçamento e cronograma, bem como os anexos e referências consultadas no formato solicitado pela ABNT estejam organicamente unificados como partes constituintes de uma tessitura alinhada, coesa e coerente com os seus propósitos.
Boa escrita!
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Gattaca: Experiência Genética
A trama se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética
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Leonardo Campos
Candidato ao posto de clássico moderno e referência nos meandros da metodologia da pesquisa, Gattaca: A Experiência Genética é uma narrativa sobre os limites da ciência e seus aspectos sociais, políticos e econômicos, um campo cheio de regras, axiomas, leis e teoremas, estabelecidos para que os responsáveis por suas manipulações sigam fielmente os direcionamentos, nalgumas vezes, transbordados quando há vantagens que nem sempre dialogam com aquilo que se convencionou a chamar de postura ética do pesquisador. Ao longo de seus envolventes 106 minutos, contemplamos uma trama que reflete os impactos da intervenção genética em nosso mundo, na produção Gattaca, dividido entre os seres humanos gerados biologicamente e aqueles concebidos graças ao advento das evoluções científicas. Neste cenário sombrio, temos um eficiente debate sobre o papel da ciência em nosso cotidiano, em especial, o desenvolvimento da genética na dinâmica dos seres vivos, numa reflexão sobre bioética e seus desdobramentos, afinal, por mais positiva que seja o avanço tecnológico neste campo, estamos lidando com a perigosa eugenia, algo que nas mãos da humanidade conflituosa, pode gerar caos.
A trama Gattaca se situa num futuro não exatamente muito distante, contexto onde vigora uma ditadura da genética. Numa espécie de processo eugênico, a ciência faz a separação dos indivíduos válidos e inválidos, sendo os primeiros os dominantes nas relações sociais. O cineasta Andrew Niccol adentra pelo viés das narrativas sobre o lado vilanesco da ciência, sabiamente trabalhado em ao longo da história do cinema, em filmes como Metrópolis, de Fritz Lang, dentre outros. Aqui, ele demonstra o quão a sociedade fictícia se encontra submissa aos ditames de um discurso científico opressivo, numa existência onde os seres humanos artificiais ocupam melhores posições e os considerados inferiores, isto é, com probabilidades de problemas genético, os espaços de menor favorecimento social. Em Gattaca: A Experiência Genética, o espectador é apresentado ao mundo dos filhos da fé e dos filhos da ciência. Ao nascer, o individuo que antes tinha o destino nas mãos da vontade divina agora pode ter o seu perfil delineado pela engenharia genética. Logo em seu nascimento, apenas uma gota de seu sangue permite a impressão de um diagnóstico que conduzirá toda a sua vida, num processo que flerta com todas as etapas de uma tradicional investigação científica, da introdução da proposta ao estabelecimento dos objetivos, da justificativa, do desenho antecipado do problema e da hipótese, aos métodos selecionados e os desdobramentos das análises que tem como destino, o encontro de respostas assertivas.
Nestes cálculos, as probabilidades definem as suas qualidades genéticas, psicológicas, físicas e possíveis doenças e até o desenvolvimento da causa de morte no futuro das pessoas. Diante do exposto, conhecemos o adulto Vincent Freeman (Ethan Hawke), interpretado por Mason Gamble na infância e por Chad Christ na adolescência, um homem que é filho de Deus, ou seja, nasceu com as seguintes porcentagens nas chances para desenvolvimento de problemas: 60% para questões neurológicas, 42% para depressão, 89% de capacidade de se concentrar e 92% para a possibilidade de desenvolver distúrbios cardíacos. Desde a sua infância, ele sonha em ingressar no projeto Gattaca, uma agência que treina os melhores astronautas para missões espaciais exploratórias. O grande conflito é que a sua ficha é taxativa: ele não possui os requisitos para alcançar uma vaga, pois é um filho de Deus, portanto, possui elementos que o tornam uma figura enfraquecida diante das vantagens físicas dos filhos da ciência. Além disso, psicologicamente ele é um personagem circunspecto, desanimado, haja vista a sua trajetória em família.
Quando pequeno, seus pais tiveram outro filho, Anton Freeman (Loren Dean), uma criança oriunda da ciência, socialmente com mais credibilidade que Vincent. Assim, a repressão advinda do campo científico não se mantém emaranhado em sua vida apenas na fase adulta, mas ao longo de toda a sua formação. Contemplamos tudo isso ao longo da narração em primeira pessoa do filme, com flashbacks explicativos para a postura do protagonista Vincent, figura que rouba a identidade de um nadador desabilitado após um acidente que o deixou tetraplégico, falsificação utilizada para adentrar no espaço de seu tão sonhado projeto de vida, algo que, no entanto, o coloca em risco. Após um assassinato, as coisas mudam e mesmo após a transformação física do personagem, bem como alguns ajustes de ordem comportamental, todos se tornam alvo de uma investigação que pode desmascará-lo. Ao tentar driblar o sistema e subverter uma ordem que delineia destinos predeterminados pela manipulação do DNA para a fabricação de organismos “melhorados”, Vincent também põe em risco a sua vida, numa perigosa e empolgante jornada que funciona como entretenimento de qualidade, bem como reflexões filosóficas intrigantes sobre a relação da humanidade com os próprios pilares tecnológicos que cria.
Na composição da estrutura cinematográfica de Gattaca: A Experiência Genética, o cineasta Andrew Niccol contou com uma eficiente equipe técnica, responsável pelo assertivo estabelecimento da materialidade fílmica em prol do tema debatido nos diálogos e situações do texto dramático. A textura percussiva de Michael Nyman, imersiva, acompanha as cenas que se passam pelos cenários devidamente dirigidos artisticamente pelo design de produção assinado por Jan Roells, setor que cria ambientes equilibrados, próximos do realismo de nosso mundo contemporâneo, mas com elementos que emulam as fascinantes ficções com teor científicos, conhecidas por delinear em cena, traços estéticos que nos remetem ao “futurismo”. Ademais, na direção de fotografia, Slawomir Idziak cria ângulos que nos permitem sentir a vulnerabilidade de alguns personagens, com planos que reforçam o contexto de tensão no qual as figuras ficcionais estão espalhadas, uma malha narrativa onde a ditadura da engenharia genética reforça preconceitos e fixa um amontado de castas sociais conflituosas, imersas num angustiante lugar de controle social e determinismo genético, retrato da nossa realidade, alegorizado por meio do brilhante tema desenvolvido nesta trama sobre a ciência e seus impactos positivos e negativos para a humanidade, afinal, as redes sociais e as novas tecnologias estão ai para nos mostrar que apesar de dominarmos aquilo que pode melhorar a nossa vida, também nos tornamos reféns de seus efeitos colaterais, não é mesmo?
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
Os tipos de conhecimento em `Quase Deuses`
A narrativa traz para a cena os impasses de personagens em buscar explicações para as investigações científicas que empreendem
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Leonardo Campos
Uma jornada pelos caminhos do conhecimento. Eis uma definição possível para Quase Deuses, telefilme dirigido por Joseph Sargent, cineasta que se baseia no roteiro de Robert Caswell e Peter Silverman para nos contar uma edificante história de superação lançada em 2004, uma saga de dedicação e empreendedorismo que atualmente é bastante mencionada em aulas de projeto de vida, cursos de metodologia da pesquisa, dentre outras áreas da aprendizagem humana. Tocante, sem apelar para um tom novelesco excessivo, algo comum na seara das produções cinematográficas para televisão, a narrativa traz para a cena os impasses de personagens mergulhados no interesse crítico para buscar explicações para as investigações científicas que empreendem, tendo o campo da medicina como espaço de desenvolvimento dos conflitos dramáticos internos, isto é, situados num caso específico de análise, bem como os externos, conectados com os desafios pessoais na vida destas figuras ficcionais com vidas atribuladas e cheias de obstáculos, mas focadas em encontrar as soluções que escreveriam os seus nomes para a eternidade, haja vista a inspiração numa história real para a concepção do filme.
Ao longo dos 110 minutos de Quase Deuses, nos deparamos com o cotidiano de Vivien Thomas (Yassin Bey) e Alfred Blalock (Alan Rickman), o primeiro, um homem negro, pobre, desacreditado diante da possibilidade de saída do determinismo que o sufoca, sendo o segundo, um médico renomado da Universidade de Vanderbilt, em Nashville, ambos situados na década de 1940, uma era de conflitos bélicos mundiais e muitas mudanças de paradigmas sociais. A relação deles começa depois que Vivien consegue uma vaga de faxineiro na universidade. Curioso, ele sempre executa os seus serviços observando como as coisas funcionam ao redor, numa postura de pesquisador. O rapaz não quer apenas limpar e receber o seu salário no final do período, mas conhecer como se desdobram os processos por onde passa. Ele tem faro de investigador, posicionamento inicial que o fará ir tão longe, mais que o esperado, tornando-se um renomado cientista e médico, ganhador do Honoris Causa, em 1976. Acompanhamos cada passo seu com a trilha sonora emotiva de Christopher Young, importante para o impacto dramático de cada passagem transformadora na vida destes personagens que aprendem muito entre si.
Voltemos ao contato entre a dupla. Ao perceber que Vivien Thomas é um homem interessado e curioso, o Dr. Alfred começa a lhe garantir algumas oportunidades adicionais. Há momentos de observação de experimentos, contemplação de procedimentos, numa jornada que permite ao faxineiro sair da posição fixa importante, mas redutora, levando-o como auxiliar para o Hospital John Hopkins, numa época em que se relacionar com pessoas negras era tabu, tempo conflituoso que exigir ceder o lugar para os brancos num transporte público ou ter banheiros diferentes para cada grupo, em linhas gerais, uma tenebrosa fase da história humana que de vez em quando, se repete na contemporaneidade, por mais que afirmemos que passamos por consideráveis mudanças sociais. A esposa de Vivien, sempre preocupada, teme que as experiências do marido sejam ousadas demais e os deixem numa posição comprometedora futuramente. Ele, persistente, segue o seu sonho e consegue convencer a todos de sua competência, num trunfo belíssimo.
Sua trajetória é de superação sem aderir aos milagres ou religiosidade. Vivien Thomas é técnico no que faz, focado na metodologia, humilde quando os caminhos não levam para o esperado e consciente da necessidade de recomeçar quando percebe que realizou uma escolha equivocada. Em sua pesquisa com animais, faz procedimentos e experimenta muito, antes de chegar aos resultados finais, uma aula para a juventude contemporânea impaciente e obcecada pelo Google como via exclusiva para as suas respostas. É na exatidão científica que o personagem prospera, numa era de tantas dispersões e dificuldades como qualquer outra, marcada pela recessão econômica, desdobramento da Crise de 1929, época de taxas altíssimas de desemprego e miséria, queda do poder de compra e da renda, bem como da produção industrial em escala mundial. Sem falar na já mencionada segregação racial, um impasse que poderia ter acabado de vez com os primeiros passos galgados por Vivien Thomas, ao lado do Dr. Alfred, seu mentor, figuras unificadas para a resolução da Síndrome do Bebê Azul, um problema cardiológico que foi resolvido depois de muito trabalho, leitura, investigação e testes laboratoriais, em suma, após uma jornada exaustiva, mas necessária, de pesquisa embasada por métodos sérios.
Eles precisam descobrir como resolver a cianose provocada pela deficiência no transporte de oxigênio no sangue do bebê que desenvolve o problema quando nasce, nalguns casos, logo quando pequeno, uma condição que o deixa com a pela azulada ou arroxeada, cor que pode ser efeito da junção de sangue oxigenado com o não oxigenado, problema de saúde oriundo de má formação congênita. É uma situação raríssima que encontrou respostas significativas na empreitada do médico e de seu auxiliar. Nós contemplamos estas passagens com a direção de fotografia de Donald M. Morgan, eficiente na captação dos momentos de duelo entre os investigadores e a sociedade, personagens que atravessem os cenários do design de produção de Vincent Peranio, também assertivo ao emular com cautela as décadas por onde a trama se passa, além de construir um espaço de trabalho para a dupla que é simples, mas imersivo no que tange aos aspectos visuais de um local para experimentos científicos. Ademais, Quase Deuses também é uma narrativa para reflexão sobre os diversos tipos de conhecimento, sabia?
Nos momentos em que os dois homens debatem sobre como descobrir a cura para a cura do bebê e assim, explicar tal fenômeno, nós temos pontos de articulação com o conhecimento filosófico, obtido na lógica e na construção de conceitos. Após numerosas tentativas com animais que não dão certo, os testes acabam levando Vivien para o seu objetivo, num diálogo com o que chamamos de conhecimento sensível, aquele obtido através dos sentidos, neste caso, pelo olhar atento do personagem. Quando um representante religioso deseja intervir na cirurgia, alegando que os médicos querem interceder diante da vontade divina, temos impregnado o conhecimento religioso. No caso do conhecimento científico, podemos contemplar a sua passagem em diversos momentos de Quase Deuses, em especial, quando Vivien Thomas se apaixona pelos estudos na área de medicina e começa a devorar todos os livros possíveis sobre o assunto, numa busca por problemas, hipóteses, respostas por meio de experimentos e investigação.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
Ciência, Cultura & Sociedade
A persistência da memória: o legado de Tubarão
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Leonardo Campos
Sempre considerei Tubarão, de Steven Spielberg, um filme impactante por questões pessoais, haja vista as sessões de cinema repletas de uma sensação atualmente nostálgica, típica da busca por escapismo da juventude. Depois que ingressei na graduação em Letras, posteriormente complementada por uma Especialização em Cinema e Vídeo, bem como um Mestrado em Memória Cultura, Crítica Cinematográfica e seus desdobramentos na internet, a visão se tornou mais ampla e percebi a importância e as motivações da permanência do filme nas malhas da memória cultural e na produção industrial contemporânea.
Tubarão é considerado uma das principais narrativas que tinham como proposta, atualizar a linguagem do cinema clássico narrativo, além de dar nova roupagem aos esquemas que envolviam as polêmicas discussões sobre autoria e indústria. Precisamos compreender que após mais de 40 anos do seu lançamento, a produção não dialoga com a linguagem “veloz e furiosa” do cinema atual, com um leve envelhecimento apenas do último ato, mas ainda assim, é um digno exemplar de “como fazer bom cinema”, numa simbiose que mescla boa direção, eficiência da direção de fotografia, trilha sonora impactante, personagens esféricos bem delineados e uma temática “universal” que estará sempre no bojo das histórias que acompanham a humanidade.
Recentemente, anotei em meu diário do projeto “A Persistência da Memória”, repleto de numerosas menções ao filme Tubarão na cultura da mídia, uma cena peculiar na minissérie A Ex, com Debra Messing. Ela interpreta Molly, uma dona de casa que usufruía das vantagens de ser casada com um produtor cinematográfico de Hollywood, até que na véspera do aniversário de dez anos de casamento, o marido demonstra interesse em se divorciar. Entre idas e vindas, repletas de humor, a filha de sete anos do casal vai passar o final de semana com o pai e ao retornar para casa, demonstra pavor ao ter que entrar na piscina. O motivo: seu pai permitiu que a garota assistisse ao filme Tubarão durante uma descompromissada sessão de cinema em casa.
Em outro momento, por acaso, ao passar de canal por insatisfação, diante da programação da grade televisiva de um final de semana qualquer, observei a presença velada do filme numa briga, dentro de uma piscina de bolinhas, entre os personagens de Ben Stiller e Robert De Niro na comédia Entrando Numa Fria Maior Ainda Com a Família. O filme pouco interessava, mas sim a percepção de como a memória da “fera assassina” de Spielberg ainda é tão viva em nossa cultura contemporânea, algo surpreendente, afinal, vivemos diante de um público inconstante que geralmente rejeita o “velho” em prol do “novo”, um comportamento típico do que se convencionou chamar de modernidade.
O cineasta J. A. Bayona confessou recentemente, nas entrevistas para a promoção de Jurassic World: Reino Ameaçado, que filmou Tubarão quando criança, durante os seus experimentos com as técnicas em stop-motion em tom rudimentar. As qualidades narrativas não importam, mas o que vale é observar a permanência da narrativa no interesse do jovem incipiente em “fazer cinema”. Em 2014, ao assumir a direção Godzilla, o realizador Gareth Edwards contou ao público que as suas fontes de inspiração estavam entre Tubarão e Alien – O Oitavo Passageiro. O mesmo ocorreu, de maneira ainda mais eficiente, com Um Lugar Silencioso, de John Krasinski, cineasta que diz também ter se inspirado no filme de Spielberg para a construção do clima de suspense e horror, pois de acordo com as suas observações, retardar a aparição do monstro é ressaltar o poder da sugestão, algo mais impactante que a banalização dos efeitos especiais e a demonstração constante das criaturas aterrorizantes.
Conhecida por homenagear a cultura pop constantemente, a série Stranger Things também colaborou com mais uma imagem para o catálogo de referências metalinguísticas que envolvem o clássico dirigido por Spielberg. Um dos cartazes de divulgação da segunda temporada fez uma homenagem ao filme, algo similar ao que a cerveja Heineken realizou numa campanha de divulgação lançada em um período próximo aos 40 anos de lançamento da produção. Noutro momento, a cantora pop Rihanna fez uma homenagem ao filme durante um ensaio fotográfico em 2015, com imagens que ganharam bastante visualização nas redes sociais e demonstrou como as pessoas insistem em resgatar o seu potencial narrativo na frenética cultura pop. A questão é: a narrativa de Spielberg é parte da memória cinematográfica que lateja constantemente e encontra ressonâncias em produções artísticas de suportes diversos. E é por convicção desta persistência de Tubarão na cultura cinematográfica contemporânea que a reflexão em questão se bifurca.
Para compreender a questão, no entanto, será preciso um breve, mas elucidativo, panorama dos filmes de monstros na história do cinema. Após traçar as bases do subgênero em busca de dados substanciais, adentro pela crítica genética do filme, tendo em vista delinear os bastidores de produção de um clássico conhecido por ganhar forma e entusiasmar os realizadores apenas na pós-produção, haja vista os diversos problemas enfrentados pela equipe na concepção da aventura inspirada no romance homônimo de Peter Benchley. Em seguida, uma análise estrutural e contextual expõe reflexões de cunho estético e histórico, preâmbulo para o desfecho que aponta o legado e expõe os novos caminhos para os filmes inspirados em tubarões como algozes dos seres humanos, tal como o mais recente blockbuster Megatubarão, dirigido por Jon Turteltaub, tradução intersemiótica do romance de Steven Alten.
Conforme o lema de Jameson, “historicizar sempre”!
Mitos fundacionais são complicados. Os estudos em ciências humanas comprovam isso constantemente. O sucesso comercial de Tubarão e as suas qualidades narrativas são praticamente inquestionáveis, mas a captação de imagens do temido tubarão-branco foi ao público muito antes da narrativa ficcional de Spielberg, convenhamos, um mago das imagens nos anos 1970. Por isso, ao realizar a crítica do filme mais simplório, fico com a filosofia do marxista Frederic Jameson e seu “historicizar sempre”, apontado no tópico anterior, pois de fato todo exercício reflexivo requer um panorama histórico para compreensão das suas bases.
No caso deste documentário, tudo começou no primeiro ano da produtiva década de 1970. Sob a direção de Peter Gimbel e James Lipscomb, também responsável pela condução do roteiro, Morte Branca em Mar Azul traz 99 minutos de uma trajetória árdua dos pesquisadores no que tange ao registro de imagens do tubarão-branco. Mas não se trata de qualquer imagem. Os realizadores estavam interessados em inovar, pois o material sobre a espécie era praticamente nulo na cultura da mídia e na sociedade do espetáculo.
A produção segue a trajetória da expedição liderada por Peter Gimbel junto ao seu grupo de fotógrafos interessados na captação das primeiras imagens de tubarões-brancos. Proprietário de uma loja de departamentos durante bastante tempo, Gimbel decidiu apelar para seu lado aventureiro e partiu com a expedição para tentar fazer algo diferente e mais relevante para a sua história. O trabalho, entretanto, não foi nada fácil.
Foi preciso bastante tempo para conseguir encontrar com a espécie numa situação favorável para captação de imagens. Passou pela África do Sul, mas foi na Austrália que a produção conseguiu alcançar o sucesso almejado. Com o apoio de Rodney Fox, inicialmente um caçador de tubarões que depois mudou para o time da preservação da espécie, os realizadores encontraram e se deliciaram com as imagens para ganhar dinheiro e, posteriormente, ganharem convites para participação do processo de produção de Tubarão, bancado pelos executivos da Universal.
No mesmo ano de lançamento do documentário, Peter Matthiessen escreveu Blue Meridian. Nas páginas da publicação, o escritor contou detalhes sobre a expedição e com isso, injetou mais adrenalina no imaginário dos futuros leitores de Tubarão, de Peter Benchley, e por sua vez, no filme baseado no romance homônimo. Foi uma série de imagens prontas, outras criadas na mente do leitor, o material responsável por começar a fermentar o burburinho em torno da produção de Spielberg. De acordo com Benchley, o documentário foi a sua maior fonte de inspiração para escrever o seu best-seller.
Morte Branca em Mar Azul, entretanto, tem os seus méritos e não precisa necessariamente de Tubarão para ser apontado como uma produção relevante. Com direção de fotografia de James Lipscomb, também responsável pela concepção geral do filme, provavelmente inspirado pelas imagens famosas de Cousteau, o documentário também conta com a eficiente edição de John Haddox e seu trabalho exaustivo de seleção dos nove meses de imagens captados pela produção.
O livro de Peter Benchley
Observe o trecho: “Emaranhados no monte de algas estavam a cabeça de uma mulher, ainda presa aos ombros, parte de um braço e cerca de um terço do tronco”. Cinematográfico, não? Continua: “A massa de carne dilacerada estava cheia de manchas roxas, e enquanto Hendricks vomitava na areia, pensou – e o pensamento o fez vomitar de novo”. Pra selar o trecho com bastante apelo visual, o autor expõe “que o que sobrou do seio da mulher parecia achatado como uma flor espremida num livro de memórias”.
Mesmo assim, pense bem: literatura e cinema são espaços semióticos totalmente distintos, por isso, não espere comparações de cunho crítico entre o livro e o filme. Nem busque fazê-las. É pouco útil, a não ser que a sua análise seja puramente acadêmica, com fins de trazer novos elementos para os estudos de tradução intersemiótica. Mesmo que seja quase irresistível, leia o texto sem pensar diretamente no filme.
Tubarão foi um sucesso de vendas quando lançado, pois alcançou a marca de oito milhões de cópias com apenas algumas semanas de publicado. Apesar de ser óbvio a sua circulação com maior densidade após o sucesso da adaptação conduzida por Steven Spielberg em 1975, o livro tem o seu lugar na história da literatura moderna. É ágil, interessante, bem escrito e matéria prima de primeira linha para releituras audiovisuais. Não é a toa que o filme deu tão certo. Conforme apontou Peter Benchley, a ideia surgiu após a leitura de uma matéria sobre um pescador que teria fisgado um enorme tubarão branco na costa de Long Island. “Algumas crianças escolhem os dinossauros, mas eu escolhi os tubarões”, narra o autor no prefácio da edição mais recente lançada no Brasil. A trama se desenvolve em Amity, um balneário calmo e tranquilo, com índice zero de violência.
Os habitantes locais sobrevivem da temporada de verão, época em que o comércio torna-se aquecido. Tudo parece muito bem para os próximos eventos de veraneio, mas as suspeitas acerca de um enorme tubarão atacando nas redondezas põem todos em estado de alerta. O desaparecimento da primeira vítima, uma garota alcoolizada que badalava numa festa na madrugada, é comunicado ao chefe de polícia Martin Brody. Ao investigar, coisas boas não são encontradas pelo caminho. O corpo, ou o que se supõe ser parte de um ser humano estraçalhado, aparece na praia, tal como descrito na abertura deste tópico, o que deixa algumas pessoas preocupadas.
Diante da situação, o chefe de polícia ordena que todas as praias sejam fechadas até maiores investigações. Quem não gosta nada da situação é o prefeito Larry Vahghan, um homem que divide o cargo com o seu talento como empresário, enxergando o espaço apenas pelo viés comercial, pouco se importando com os perigos de um tubarão à espreita na praia. Não satisfeito, ele desfaz a ordem de Brody e reabre as praias, pois em sua opinião, Amity não pode se prejudicar economicamente por causa de um ataque isolado de violência na praia.
As coisas, entretanto, ficam ainda piores. Uma criança é atacada durante o dia e causa ainda mais pânico a todos os presentes. É a partir deste momento que a caçada rumo ao aniquilamento do tubarão se inicia, reforçada com a chegada do oceanógrafo Martin Hooper. Juntos, os habitantes e os profissionais envolvidos precisarão arrumar uma maneira de resolver os conflitos estabelecidos pela trama.
No que tange aos aspectos estruturais, o romance é muito bem escrito. O suspense é trabalhado com equilíbrio, sem perder o ritmo do começo ao fim. Há vários personagens rasos que gravitam em torno do trio principal: Martin Brody, a sua esposa e o oceanógrafo Martin Hooper. O que falta nos coadjuvantes sobra nos protagonistas, criaturas com os seus conflitos internos bem delineados. A crise no casamento do policial Brody é narrada com detalhes e integra uma das partes dos seus problemas ao longo da narrativa.
Martin Hooper, ao cumprir duas funções dramatúrgicas dentro do romance, configura-se como um dos bons destaques: o personagem chega para ajudar no desenvolvimento das estratégias de captura e extermínio da fera marinha que está dizimando com o “american way of life” local, entretanto, torna-se um conflito na vida do protagonista ao flertar com a esposa alheia e trazer novos ares para o casamento falido de Brody. A expressão “para o bem e para o mal” nunca esteve tão bem empregada.
Ademais, antes de se tornar o clichê máximo das narrativas de terror ecológico, há discussões convincentes sobre os problemas do capitalismo, a mídia sensacionalista, a corrupção do ser humano e as celeumas de ordem ambiental. A polícia local, acostumada a bater o ponto cotidianamente e agir de maneira cordial com os habitantes e os visitantes, encontra-se diante problemas nunca antes imaginados.
Apaixonado pela vida marinha, Peter Benchley escreveu outros romances, sendo alguns dos mais conhecidos, A Ilha e Do Fundo do Mar. Membro de uma ONG que trabalhava em proteção da vida marinha, o escritor atuou frente aos debates sobre o assunto até o fim da sua vida. Sobre Tubarão, ainda nos anos 1970, década de sua publicação, o romance ganhou tradução para dez idiomas. Um verdadeiro fenômeno literário. O autor contou que não acreditava no êxito da obra, entretanto, teve que lidar com o sucesso.
Uma aula de cinema: impacto e legado de Tubarão
Spielberg e os anos 1970: notas sobre um cineasta e seu contexto histórico
As guerras e armas químicas também são marcos do período, entretanto, não se constituíram como metáforas para a fera assassina que toma aterroriza o balneário. O tubarão branco não sofreu mutações genéticas, tampouco apresenta dimensões absurdas. Ao guardar paralelos com as narrativas literárias clássicas, em especial, Moby Dick, de Herman Melville, Tubarão teve roteiro cuidadosamente construído, numa tentativa de dar uma nova roupagem aos filmes de monstros, temática bastante explorada pelo cinema ao longo do século XX.
O roteiro de Carl Gottlieb
Gottlieb foi o profissional responsável por pegar o roteiro previamente escrito por Peter Benchley e readaptar as necessidades de Spielberg, dos produtores e da equipe técnica. O enredo é uma projeção do romance homônimo que serve como ponto de partida, estruturado num esquema que Noel Carrol intitulou de Discovery plot, conjunto de quatro caminhos narrativos básicos que serviram de esqueleto para os filmes que copiaram a fórmula de Tubarão.
A primeira parte é o “ataque”, momento em que o monstro é revelado. Logo mais, temos a “descoberta”, segunda parte, trecho que demonstra uma pessoa ou um grupo que descobre o monstro, mas não consegue convencer as autoridades a tomar uma iniciativa de resolução dos problemas. A “confirmação” demarca a terceira parte: as autoridades são convencidas da ameaça, prévia da “confrontação”, quarta parte, encontro com o monstro, tendo como plano eliminá-lo para o bem estar da humanidade. Os primeiros momentos também evocam outro teórico da dramaturgia moderna, Robert Mckee, autor que nos ensinou o incidente incitante, isto é, momento que muda a vida do personagem para sempre, e, consequentemente, de nós, espectadores.
O roteiro de Gottlieb é eficiente ao fazer transitar personagens convincentes e esféricos, complexos em suas respectivas existências, numa comprovação do bom resultado de uma tradução intersemiótica que se alimenta dos bons elementos do material que lhe serve como ponto de partida e os conduz para um patamar de maior delineamento dramático. O herói da história, um homem comum, interpretado por Roy Scheider, reforça o caráter de identificação com o público. Quint e Hooper são outros pontos positivos, antagônicos e complementares na condução da trajetória de Scheider como chefe de polícia acometido pela hidrofobia que o impede de agir rapidamente e adentrar no mar para resolver os conflitos.
Enquanto Quint representa a classe trabalhadora, Hooper reforça a presença da nova geração tecnológica, altamente conectado com as possibilidades que a classe alta pode prover. O prefeito Vaugh é a representação do “vilanesco”, da corrupção, dos problemas políticos e sociais que permeiam o subtexto do filme e penetram pelos poros da narrativa, tomando-a constantemente, mesmo que os realizadores afirmem em entrevistas que não perceberam qualquer conexão proposital entre os temas e os acontecimentos históricos dos anos 1970. Para os donos deste discurso, fica a dica de Giorgio Agamben em O que é o contemporâneo e outros ensaios, pois como descreve o pensador em suas reflexões, às vezes é preciso se descolar do tempo histórico para conseguir observar com distanciamento alguns discursos.
Filiado ao selo “família” em seus filmes, Spielberg pediu que o caso amoroso entre a esposa de Brody e o oceanógrafo, conteúdo de forte carga erótica do romance, ficasse de fora da história. No geral, os trechos tidos como “adultos” são alternados por suavizações. Basta observar a personagem da abertura, nua ao nadar, numa sensação de liberdade que remete ao que foi exposto no tópico anterior, sobre contexto histórico. Levada pelo sentimento de libertação, algo comum aos movimentos de revolução feminina, a jovem se entrega ao mar sem roupa, mas é discretamente ofuscada pelas sombras do amanhecer, bem como pela edição que disfarça a nudez em prol da suavização da carga sexual exposta pela cena.
Pelos caminhos da narrativa: a direção de fotografia e o design de produção
Paralelamente ao trabalho do cineasta que assina uma produção, bem como o elo com o profissional responsável pelo de design de produção, o diretor de fotografia precisa alinhar as necessidades do roteiro, tendo em vista captar as imagens de acordo com os interesses artísticos da produção em questão, neste caso, Tubarão, “fotografado” de maneira eficiente por Bill Butler. Ao esboçar o projeto depois da leitura do roteiro, o profissional do setor precisa ter noção em detalhes dos enquadramentos, da movimentação e dos apontamentos mais básicos sobre a iluminação, necessários para o desenvolvimento da narrativa.
Para a concepção das imagens de Tubarão, Butler aderiu ao ponto de vista (câmera subjetiva) nas cenas em que o tubarão serpenteia o fundo do mar ou está evidentemente próximo para a realização de um ataque. A técnica da sugestão ajudou o filme a manter-se relevante, como já apontado anteriormente, pois a apresentação constante da criatura poderia banalizar um dos pontos mais fortes da narrativa: o clima de suspense constante.
Em Encurralado, filme anterior de Spielberg, o motorista que persegue um homem comum numa estrada deserta é mantido na sugestão, sempre apresentado pelo ponto de vista, “como os leviatãs que perseguem o homem americano médio”. A técnica do ponto de vista subaquático não é, entretanto, uma inovação de Spielberg, pois os antecessores O Monstro da Lagoa Negra e O Monstro Que Desafiou o Mundo já tinham investido no recurso narrativo. O que Spielberg fez, em parceria com Butler, foi aprimorar as possibilidades desta estratégia para apresentação da sua criatura marinha, nos remetendo também ao que Jacques Tourneur fazia lá na década de 1950, com seus habituais métodos de esconder o “horror” para causar medo, afinal, o que não vemos, mas sentimos a presença, soa bem mais aterrorizante.
Outro campo de importância singular na narrativa é o design de produção, setor responsável por preencher os espaços enquadrados pela câmera orquestrada pelo diretor de fotografia. Responsável por “gerenciar” os elementos visuais de uma produção, o designer de produção dialoga com outros setores, dentre eles, a maquiagem, a direção de arte, o figurino e a cenografia. A função do designer é colaborar, por meio da cor, da textura e de outros elementos da imagem, a atmosfera ideal, almejada pelo cineasta que assina a produção, bem como por seu diretor de fotografia.
Em Tubarão, as casas da fictícia Amity, com as suas cercas brancas, denotam tranquilidade e ordem. Os figurinos radiografam a moda dos anos 1970 e a representação de classes sociais diversas através de suas vestimentas. Turistas, pescadores, policiais, donas de casa, biólogos e outros personagens gravitam em torno da narrativa e nos fazem mergulhar no clima da época por meio dos recursos visuais matematicamente calculados pelo design de produção assinado por Joe Alves, profissional que contou com a cenografia de John M. Dwyer, os figurinos do trio formado por Louise Clark, Robert Elisworth e Irwin Rose e a direção de arte de Mike May.
O animal que é apresentado no filme foi desenvolvido por Robert Mattey, supervisor de efeitos especiais da Disney, responsável pela criação da lula gigante da tradução intersemiótica do romance francês Vinte Mil Léguas Submarinas, de Jules Verne. Ao total eram três estruturas de representação do tubarão, todas complementadas por motores pneumáticos, um de corpo inteiro e os outros dois de cada lado do perfil. Os problemas técnicos envolvendo os tubarões é material para as crônicas envolvendo os bastidores, histórias estressantes que posteriormente foram narradas com bastante humor pelos envolvidos.
De volta aos meandros da direção de fotografia, também merecem destaque a maneira como Brody é constantemente representado acuado em várias passagens, espremido pelo quadro, tal como a sua condição na narrativa. O efeito vertigo, isto é, a aproximação da câmera com dolly enquanto a lente se afasta num zoom out, recurso que ganhou força no cinema de Hitchcock, faz a diferença na cena que registra o apavorante ataque na praia, quando o menino Alex é ceifado pelo temível tubarão-branco. A partida do Orca, embarcação que leva o trio construído dramaticamente por meio de contrastes, tendo o enquadramento saído de um esqueleto de tubarão, além de visualmente formidável, demonstra como o jogo simbólico na produção foi milimetricamente calculado. Ademais, os planos de conjunto que reforçam os grupos de pessoas acometidas pela situação e o close em fotografias, recortes de jornais e afins, tendo a palavra “shark” como destaque, também delineiam os cuidados dos envolvidos na construção de uma atmosfera repleta de suspense.
A força da montagem de Verna Fields
A montagem, uma das etapas finais da realização cinematográfica, é uma das fases mais importantes de uma produção. Clássicos aclamados pela crítica e pelo público e que passaram por muitos contratempos nos bastidores, encontraram na mesa de montagem o espaço ideal para reajustes de problemas narrativos aparentemente incontornáveis, oriundos dos erros e equívocos gerados durante o processo de produção. Apocalipse Now, de Francis Ford Copolla, Psicose, de Alfred Hitchcock, e Tubarão, atualmente clássicos absolutos da história do cinema, possuem uma relação estreita com os meandros da montagem.
A montadora Verna Fields ganhou fama ao transformar a produção cheia de problemas técnicos em um dos maiores sucessos na carreira de Steven Spielberg, além de ter levado o Oscar na categoria de Melhor Montagem por Tubarão, durante a cerimônia de entrega do prêmio em 1976. Spielberg queria incluir uma cena em que o personagem Matt Hooper mergulhava no mar e encontrava um cadáver dentro de um barco naufragado. Mas as filmagens, já haviam encerradas, juntamente com as locações desmontadas, e o estúdio, opressivo no que tange aos prazos já estourados, não permitiam mais alterações.
Sendo assim, o diretor convocou o ator para filmar a cena na piscina de Verna Fields, profissional dedicada que havia construído um estúdio de montagem da produção nos fundos da sua residência. Os problemas foram resolvidos e o filme é o sucesso que conhecemos e refletimos ao longo do texto. A produção também ganhou fama pelo uso da subjetividade, descrito no tópico sobre direção de fotografia, pois no processo de montagem, os envolvidos perceberam o quanto os problemas técnicos com os tubarões mecânicos prejudicavam a narrativa que seguia à risca o roteiro. Dessa forma, investiram na abordagem subjetiva do tubarão, representado, na maioria das cenas, pela ótica de uma câmera serpenteando as águas. O setor sonoro fazia o restante do trabalho, isto é, adentrava com a angustiante composição de John Willians.
A trilha sonora de John Williams
Quando alguém se propõe a falar das trilhas sonoras de Psicose e Tubarão, os ouvintes que possuem o mínimo de repertório cinéfilo já se preparam para escutar obviedades. Ao seguir o velho bordão “a prática constante leva à perfeição”, inicio esta análise da composição de John Williams afirmando: já sabemos que a música tema do filme é uma das maiores referências da história do cinema. O que pretendo aqui é explicar os motivos que permitiram tamanha credibilidade.
Arrisco-me a dizer que qualquer pessoa que acredita ser entendedora de cinema e de audiovisual deva conhecer pormenores da trilha sonora de Tubarão, nem que seja para apontar possíveis incongruências em sua composição. Marco sonoro que nos acompanha desde os anos 1970, a produção musical criada exclusivamente para a aventura marinha de Spielberg é tensa, clássica e inesquecível, amplamente divulgada pela cultura pop, através de cenas metalinguísticas, toque de celular, etc.
Ganhadora do Oscar, do Grammy e do Globo de Ouro na categoria em questão, a faixa principal da composição de John Williams flerta apenas com duas notas musicais que se alternam, numa simbologia que se eternizou como representação em áudio do suspense e dos perigos eminentes de uma cena. Além da qualidade musical, esta obra-prima do cinema tem o mesmo efeito proposto por Alfred Hitchcock em sua famosa cena do chuveiro: elevar a tensão e sugerir a violência simbolicamente apresentadas pelo eixo visual.
Ambas as produções foram bem sucedidas nestes aspectos. Sugeriram ao invés de explicitar, tornando-se marcos cinematográficos importantes ainda na contemporaneidade, uma época de frivolidades cinéfilas e abandono do clássico em prol do que é novidade. Regida pelo minimalismo que engendram o tom ameaçador proposto pela obra fílmica, o tema principal traz a alternância entre as notas “E” e “F”, isto é, “mi” (a terceira nota da escala diatônica) e “fá” (a quarta).
Engraçado é que a história que envolve a composição desta trilha é curiosa. Segundo relato dos bastidores, Williams acomodou-se no piano e tocou as notas alternadas. A sua intenção era representar uma fera movida incontrolavelmente pelo seu instinto. Era uma oportunidade ideal para Spielberg, um cineasta iniciante que enfrentava problemas cotidianamente nos bastidores. A trilha seria o ideal para a ausência do tubarão, estratégia que seria mal aplicada em filmes do subgênero jawsploitation.
A reação de Spielberg, no entanto, foi inesperada. Gargalhou e achou que o tema nada tinha a ver com a sua ideia para o filme. O cineasta desejava uma trilha com estilo esotérico, mas Williams insistiu que não combinava com as imagens que havia pesquisado na sala de montagem de Verna Fields. Interessado em criar algo visceral, alto, inquietante para quando o tubarão estivesse próximo, contraponto para a presença sonora calma que indicava quando a fera marinha estivesse distante, Williams conseguiu convencer posteriormente, o que permitiu uma parceria repetida em outros clássicos de Spielberg, tais como ET – O extraterrestre e Jurassic Park.
Descrita por Williams como um tema esmagador, implacável e imbatível, a composição conta com o desempenho do tubista Tommy Johnston, particularidade musical incorporada em orquestras sinfônicas desde o século XIX, tendo a função de dar ritmo e ocupar lugares vagos em escalas. Seu efeito de caráter ameaçador é obtido pelo tom alto e geralmente não apropriado da trompa. Há, na percussão, incidentais de La Mer, de Claude Debussy e A Sagração da Primavera, de Igor Stravinsky.
Criada em 1905, La Mer foi classificada como uma obra musical impressionista, interpretada como uma composição não apenas sobre o mar, mas também uma representação de lembranças e sentimentos que evocam aventuras ao mar, numa total relevância para a trilha do filme em questão. Harmonicamente aventureira e repleta de sons proeminentemente dissonantes, a composição de Stravinsky possui ritmo aventureiro e marcações de tempo que mudam constantemente, tendo ainda as batidas em ascensão como marca. Conhecida pela presença de ritmos polifônicos, assimetria e ostinatos, isto é, ideias sonoras persistentemente constantes, esta obra-prima da música mundial é outra referência que encontrou ressonâncias na trilha sonora de Williams.
Este motivo ou frase musical repetitivo numa mesma altura, conhecido por ostinato, já era uma prática da música clássica, presente em composições de Bach, Ravel, Henry Purcell, Mandel, Beethoven, etc. Para a trilha do filme foram utilizadas repetidas vezes para expressar as atividades de Tommy Johnston. No painel de interpretações, a alternância de duas notas da faixa temática faz referências aos batimentos cardíacos do tubarão do filme, além de ter uma possível relação com a respiração de uma pessoa.
Tendo a divisão e a ruptura como célula principal da composição, a trilha também aposta em alguns pequenos arroubos de silêncio, trechos muito importantes que devem ser levados em conta no jogo narrativo entre as imagens e os sons. Para os momentos da caçada final, Williams criou uma espécie de fanfarra heroica, intitulada pela equipe de Korngoldiana, numa referência ao compositor austríaco Erich Wolfgang Korngold, um famoso especialista em filmes de ação com lutas de espadas e piratas. É um dos trechos musicais que acompanha o trio formado pelo oceanógrafo Hooper (Richard Dreyfuss), o marinheiro Quint (Robert Shaw) e Martin Brody (Roy Schneider).
Conforme apontam alguns especialistas, Spielberg e Williams estão para o mar assim como Hitchcock e Herrmann estão para o chuveiro. Duplas de cineastas e compositores musicais que entendiam as necessidades dramáticas das histórias que comandavam. Por conta da sua qualidade, a trilha sonora de Tubarão foi considerada pelo American Film Institute como a sexta melhor/maior composição sonora da história do cinema. Recentemente fomos informados sobre o relançamento da trilha sonora em LP, remasterizada por Mike Matessino. O material será vendido em dois LPS, contendo 27 faixas musicais em versão turbinada para o século XXI.
Palavras de encerramento ou a construção de um legado
O que podemos perceber na criação do legado e na permanência na indústria do entretenimento é a publicidade indireta causada, inclusive, pela ação parasitária dos outros filmes que buscam seguir o mesmo modelo. Desta maneira, o “original”, estará sempre em evidência como o ponto de partida. É uma espécie de relação de mutualismo também, afinal, os “menores” precisam dos “maiores” para garantir o seu sucesso. Foi assim com Tentáculos, Orca – A Baleia Assassina, Grizzly – A Fera Assassina, Praia Sangrenta, Aligattor – O Jacaré Assassino, Crocodilo Assassino, Piranha, Bacalhau, Barracuda, só para mencionar os filmes que foram produzidos nos primeiros cinco anos após o lançamento do clássico de 1975.
Depois desse período de lançamentos que vampirizaram Tubarão, os estúdios da Universal investiram em três sequências, todas desinteressantes do ponto de vista narrativo. Os tubarões se tornam obsoletos entre o final dos anos 1980 e os primeiros anos da década de 1990, para ganhar força com os excessos da aventura Do Fundo do Mar, um filme que funciona bem quando o espectador aceita a suspensão da crença e se entrega ao filme que por sinal, traz discussões pertinentes sobre Direito Animal e ética na pesquisa científica. Lançado em 1999, o filme oxigenou o subgênero “filme de tubarões”, tipo narrativo que ganharia um exemplar mais digno apenas com Mar Aberto, em 2003, drama focado na junção da zona narrativa que fica entre o documental e o ficcional. A banalização e a entrega aos prazeres do trash e do nonsense ganharam melhor exposição nas reflexões de um texto da seção Plano Polêmico, intitulado “Os Tubarões Ainda Funcionam?”, publicado no site Plano Crítico, na ocasião de lançamento do divertido, mas falho, Megatubarão.
Dos anos 2000 pra cá, muitas aventuras tentaram resgatar o interesse por tubarões. Em A Isca, a tsunami que devasta uma cidade traz tubarões que colocam personagens entre gôndolas de supermercado e funciona acima da média. Na mesma época foram lançados dois desastres do subgênero: Terror na Água (jovens incautos vítimas de uma sabotagem) e Maré Negra (a ganhadora do Oscar Halle Barrey exorcizando seus demônios do passado após um incidente com tubarões enquanto atuava como mergulhadora). O interesse da crítica pelos filmes com tubarões na posição de antagonistas veio apenas em 2016, com Águas Rasas, dirigido por Jaume Collet-Serra, tendo como base o roteiro de Anthony Jaswinski. Medo Profundo, comandado por Johannes Roberts, no mesmo ano, também funcionou muito bem, apesar da história investir menos nos personagens e mais nas doses cavalares de sustos, mas ainda assim, muito superior aos tantos filmes insignificantes sobre tubarões.
Além dos filmes inspirados na estrutura de Tubarão, há o fenômeno do cineturismo, um dos diversos tentáculos que mesclam campos economicamente rentáveis, situados em zonas de atuação diferentes. Atualmente há passeios que promovem visitas aos locais das filmagens de Game of Thrones, Sex and The City, dentre outros produtos ficcionais de grande sucesso, o que não seria diferente com Tubarão, uma narrativa que tal como apontamos, possui grande potencial nas malhas da memória cultural. A empresa Alamo Draft House possui um projeto que funcionou bem aos turistas que visitaram a sessão intitulada Jaws on The Water, evento marcado por pessoas que pagaram os seus ingressos para assistir ao filme em boias no Lago Travis, parte integrante do Parque Aquático Beach Water Park, no perímetro urbano de Travis, no Texas.
Há também a Jawsfest, evento que ocorre em Martha’s Vineyard. A programação conta com a exibição do filme, debates com membros participantes da equipe técnica e do elenco, exposição de imagens e venda de souvenires, além da consciente e politicamente correta discussão sobre a preservação dos tubarões, pauta constante na seara do meio ambiente e da preservação de espécies. Antes de Tubarão, a região de Martha’s Vineyard, local onde foram realizadas as cenas da fictícia Amity, recebia em média cinco mil turistas anualmente. Os dados se modificaram após a realização do filme, responsável por aumentar gradualmente a lista de visitantes para 15 mil nos anos seguintes, e, mais recentemente, 75 mil pessoas, às vezes 130 mil, quando “há casa cheia”, o que torna a região situada na costa do estado de Massachusetts, nos Estados Unidos, um ponto de cineturismo, espaço de evocação da memória de um filme que persiste em se manter relevante.
Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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