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Pedra de Toque

Sobre epifanias e pecados

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Queria eu não estar a caminho do Damasco. Em outras épocas e circunstâncias, foi rumo a Damasco que Saulo rendeu-se à epifania, trocou

Marcus Borgón – Escritor

Queria eu não estar a caminho do Damasco. Em outras época e circunstâncias, foi rumo a Damasco que Saulo rendeu-se à epifania, trocou inicial do nome e a vilania de toda uma vida pelo sacerdócio cristão. O Damasco do meu caminho jamais me levaria àquele destino. Por certo, ao lado oposto do indicado nas pregações epistolares de Paulo (ex-Saulo). Era um brega portuário, próximo ao elevador Lacerda – única possibilidade de elevação naquele cenário. De resto, era tudo baixo, rasteiro ou sub-reptício.

Tirante uns desavisados marujos gringos que corriam o risco de abreviar ou comprometer sua carreira, era um lugar que recendia a fracasso. Entrar ali era assumir a derrota e esperar pacientemente sua senha na fila do cemitério. Paulo viu um clarão e deu para escrever cartas definitivas. Abraçou a missão de salvar almas. Eu, que vivia na escuridão da noite, pensava em salvar apenas minha barriga da miséria.

Em vez de cartas, rabiscava poesias. Famélicas, viróticas, hemofílicas, febris. As pessoas gostavam na mesma proporção que não entendiam. Os guardanapos passavam de mesa em mesa. Aos poucos iam brotando as moedas. Às vezes só pagava o misto. Não sobrava nem pra pegar o pernoitão na volta. As generosas doses de Saborosa me protegiam sob as marquises.

Certa feita, troquei umas palavras com um escocês. Ele pouco compreendia meu inglês piolhento. Mas eu entendi que havia um convite. Navegar uns tantos meses e oceanos a fio. Carregar e descarregar. A natureza do meu trabalho é que não ficou muito bem esclarecida. Quem lá sabe como se diz “barrica” in english? Tive de declinar. Era a última dignidade que me restava. E ainda resta. No meio da conversa, o branquelo falou em Damasco. Lá pelas bandas da Síria, era mais fácil ser surpreendido por uma iluminação, eu disse. Uma das meninas o puxou pelo braço. No Damasco, o orgasmo era uma fraqueza. Logo sucumbia ao remorso. À lembrança de uma vida apagada. Ninguém caía ali impunemente.

Eu nunca consegui descobrir onde ficava Corinto e Tessalônica. Pra lá de Bagdá? Sim, eu andava. O Damasco fechou as portas antes que eu tivesse tempo ($$) para conhecer os aposentos do primeiro andar. Meu corpo saiu ileso daquele lugar, algo raro. Quanto a alma, não sei dizer.

Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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Pedra de Toque

Como Beck já dizia

A vida sem proezas e grandes feitos não é nenhuma tragédia

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A verdade é que tenho uma inclinação para acumular derrotas. Assumir isso não significa que eu queira arregimentar uma santidade ou exibir um
Foto: Pixabay

Marcus Borgón – Escritor

A verdade é que tenho uma inclinação para acumular derrotas. Assumir isso não significa que eu queira arregimentar uma santidade ou exibir um coitadismo eletivo. A vida sem proezas e grandes feitos não é nenhuma tragédia. Afinal, todos estamos destinados a uma sucessão de tédios protocolares e eventos ordinariamente insípidos e incolores. E o pódio nem sempre é o lugar onde se pretende chegar. Desistir, antes de ser um fracasso, pode ser uma escolha coerente. Um troféu esquecido na estante da sala não vale o esforço empregado. Ou “macaco, praia, carro, jornal, tobogã/ eu acho tudo isso um saco”.

Desde Fernando Pessoa, que revelou estar farto de semideuses, ao Recruta Zero, esmagado pelo Sargento Tainha, que descambo para o lado dos losers. Quer dizer, o caminho foi inverso. Cebolinha desde muito cedo exerceu esse magnetismo. Mais tarde, identificação e beberagens. Sinais de fumaça que se decodifica. Aspirações. Pirações.

Seu João tinha uma barraca de bebidas numa praia do litoral norte. Meu pai passava horas conversando com ele. Muitas vezes em inglês. Lembro de retalhos de conversas entre os dois, hoje bastante esmaecidas. As frases se fragmentaram com o tempo, restando algumas palavras: Sócrates, mitologia, otomano, Darwin, latim, mouros, Napoleão, secessão, Tibet, Santo Agostinho, revolução dos cravos, aurora boreal, Carl Sagan, cantos gregorianos, casacas, bolchevique, ópio… Já pensei em costurar essas peças na esperança de reconstituir os papos, mas me parece tarefa inexequível.

O fato é que seu João vivia atrás do balcão. Meu pai o admirava espantado por seu saber enciclopédico. E por ele se dizer feliz apenas em poder viver diante do mar.

Meu pai descobriria mais tarde que seu João nasceu em uma família relativamente abastada. Abandonou os estudos e correu o mundo. Ignorado pela família, resolveu se fixar numa praia semideserta, onde quase ninguém se arriscava. Os irmãos o deram como caso perdido. O mau exemplo a ser apontado para os filhos: “…ou quer acabar como seu tio João?”. Ele contava dando risada. E era também rindo que via a atribulação aporrinhada de meu pai sob os últimos raios de sol do domingo. Arrumando as coisas no carro, e já reclamando da labuta do dia seguinte.

Seu João não tinha carro. Sua barraca abria de domingo a domingo. Ele dormia num colchão sobre uns engradados de Brahma. Dizia se sentir o verdadeiro Brahma. E abria o sorriso, como se criador do universo fosse.

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“I’m a loser, baby/ so why don’t kill me?”*

*trecho da música “Loser”, do cantor Beck. Faixa do álbum Mellow Gold.
Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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Os reality shows e os meus problemas

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Outro dia um amigo me dizia que o antigo seriado “Caso Verdade” foi o pai dos reality shows. A vida de gente comum (não-celebridade)
Reprodução de imagem da abertura do programa Caso Verdade, exibido na Rede Globo, na década de 1980

Marcus Borgón – Escritor

Outro dia um amigo me dizia que o antigo seriado “Caso Verdade” foi o pai dos reality shows. A vida de gente comum (não-celebridade) transportada para a telinha.

Na verdade, sempre era ressaltada alguma questão incomum: o drama de um jovem que ficou paralítico após uma anestesia mal aplicada; a felicidade de um rapaz que voltou a enxergar; a tragicômica história de um vendedor que pensou ter ganhado na loteria.

Alguns dos episódios beiravam os limites da realidade, ganhando ares de fabulação. Meu pai era um dos que desconfiavam da presença de novelistas emprenhando o roteiro com passagens imaginárias.

Lembro do caso de um menino vidente, que, dentre várias predições, revelou o dia da própria morte. Para confirmar seu vaticínio, fez um passarinho que voava longe pousar em seu dedo.

Teve também o episódio de uma mulher que sofria de alcoolismo, e ao se desequilibrar na sacada, ficou presa apenas pela bainha da calça. Durante o tempo em que ficou dependurada, passou a limpo toda a sua vida, fazendo reflexões profundas e determinando um novo futuro para si, caso não se esborrachasse no chão.

Há quem diga que, atualmente, ornamentar um cotidiano frívolo com invencionices e arremedos de ficção não dá mais ibope na televisão. Isso é encontrado fartamente nas redes sociais. A despeito disso, o BBB continua com audiência nas alturas. Assim ouvi dizer.

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Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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Tevê educadora

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A tevê ligada e eu lá sentado, imóvel. Era uma espécie de vigília perante o altar de Santa Clara.
Foto: Reprodução

Marcus Borgón – Escritor

Tem gente que diz que a literatura salva. Se não fosse a literatura teria caído na mendicância, sucumbido à loucura ou à criminalidade.

Comigo, não. O que me livrou da ignomínia foram os conselhos que o He-Man dava ao final de cada episódio; as aulas de ginástica da Ala Szerman; os pareceres sexuais da Marta Suplicy…

A tevê ligada e eu lá sentado, imóvel. Era uma espécie de vigília perante o altar de Santa Clara.

 

A minha voz interior tem a voz do Léo Batista.

Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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