Pedra de Toque
Como Beck já dizia
A vida sem proezas e grandes feitos não é nenhuma tragédia

Marcus Borgón – Escritor
A verdade é que tenho uma inclinação para acumular derrotas. Assumir isso não significa que eu queira arregimentar uma santidade ou exibir um coitadismo eletivo. A vida sem proezas e grandes feitos não é nenhuma tragédia. Afinal, todos estamos destinados a uma sucessão de tédios protocolares e eventos ordinariamente insípidos e incolores. E o pódio nem sempre é o lugar onde se pretende chegar. Desistir, antes de ser um fracasso, pode ser uma escolha coerente. Um troféu esquecido na estante da sala não vale o esforço empregado. Ou “macaco, praia, carro, jornal, tobogã/ eu acho tudo isso um saco”.
Desde Fernando Pessoa, que revelou estar farto de semideuses, ao Recruta Zero, esmagado pelo Sargento Tainha, que descambo para o lado dos losers. Quer dizer, o caminho foi inverso. Cebolinha desde muito cedo exerceu esse magnetismo. Mais tarde, identificação e beberagens. Sinais de fumaça que se decodifica. Aspirações. Pirações.
Seu João tinha uma barraca de bebidas numa praia do litoral norte. Meu pai passava horas conversando com ele. Muitas vezes em inglês. Lembro de retalhos de conversas entre os dois, hoje bastante esmaecidas. As frases se fragmentaram com o tempo, restando algumas palavras: Sócrates, mitologia, otomano, Darwin, latim, mouros, Napoleão, secessão, Tibet, Santo Agostinho, revolução dos cravos, aurora boreal, Carl Sagan, cantos gregorianos, casacas, bolchevique, ópio… Já pensei em costurar essas peças na esperança de reconstituir os papos, mas me parece tarefa inexequível.
O fato é que seu João vivia atrás do balcão. Meu pai o admirava espantado por seu saber enciclopédico. E por ele se dizer feliz apenas em poder viver diante do mar.
Meu pai descobriria mais tarde que seu João nasceu em uma família relativamente abastada. Abandonou os estudos e correu o mundo. Ignorado pela família, resolveu se fixar numa praia semideserta, onde quase ninguém se arriscava. Os irmãos o deram como caso perdido. O mau exemplo a ser apontado para os filhos: “…ou quer acabar como seu tio João?”. Ele contava dando risada. E era também rindo que via a atribulação aporrinhada de meu pai sob os últimos raios de sol do domingo. Arrumando as coisas no carro, e já reclamando da labuta do dia seguinte.
Seu João não tinha carro. Sua barraca abria de domingo a domingo. Ele dormia num colchão sobre uns engradados de Brahma. Dizia se sentir o verdadeiro Brahma. E abria o sorriso, como se criador do universo fosse.
“I’m a loser, baby/ so why don’t kill me?”*
*trecho da música “Loser”, do cantor Beck. Faixa do álbum Mellow Gold.
Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
Pedra de Toque
Moscou

Marcus Borgón – Escritor
Mesmo em períodos francamente democráticos, algumas miniditaduras ainda vigoram dentro de espaços delimitados. As regras são repetidas quase que diariamente. Infrações menores são resolvidas no ato. Em alguns casos, os instrumentos de repressão ficam com os próprios infratores. A consciência de cada um estica o flagelo corretivo. Algumas faltas são consideradas graves até mesmo para a pluralidade condescendente do estado democrático.
Na ditadura do lar patriarcal, certas práticas nos levam à clandestinidade, subversão. Levantamento de aparelhos e, sobretudo, criação de linguagem codificada. Contra-informação. Coisa bem elaborada. Às vezes, faltava combinar com os russos.
Ruth era uma menina boa. Nos remetia à Mulheres de Areia. O maluquinho Tonho da Lua repetindo à exaustão: a Ruth é boa; a Raquel é má. A boa Ruth, foneticamente bandeirosa para os antenados em inglês, mas que em geral passava sem levantar suspeitas. Era encontrar um camarada com olhar perdido, para ter certeza que havia travado altos papos com ela. Inebriante, a menina.
– Esteve com Ruth?
– Sim, passou lá em casa mais cedo.
Mas como eu disse, tinha que combinar com os russos. No meio de uma turma retrógrada, que não entendia a vanguarda ideológica promovida por aquela menina, a comunicação cifrada se tornava indispensável. Tovão era uma espécie de tutor da garota. Havia quem falasse em rufianismo. Talvez fosse verdade, pouco importava. O fato era que ele sempre sabia do paradeiro de Ruth. Escolado nas ruas, tinha dificuldade de entender a sofisticação dos códigos. E acabava, amiúde, derrubando o serviço.
– Tovão, você viu Ruth por aí?
– Tá em falta!
Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
Pedra de Toque
Lembranças eternas de uma mente sem brilho
Nessa época Ney Matogrosso se requebrava todo maquiado, arremedado por Didi, n’Os Trapalhões

Marcus Borgón – Escritor
Lembra quando dançávamos música lenta? Elton John chorava por Lennon na vitrola. Usávamos calças de elástico em cores cítricas. D. Maria vivia nos cobrando os cascos de Coca-Cola. Meu pai comprou um Betamax e logo depois o encostou num canto. As fitas K7 sofriam várias gravações, uma sobre a outra. Tão logo descobríamos a melhor banda de todos os tempos da última semana. Na FM tocava rock. Na AM ouvíamos os jogos da rodada. Na frequência SW captávamos rádios russas com sua propaganda comunista. Não tínhamos o que fazer, e uma ficha telefônica significava três minutos de diversão garantida. Achávamos graça na arrogância renitente do piloto de corrida. E também nas presepadas do humorístico nas noites de domingo.
Por que deixamos de dançar música lenta?
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Nossas memórias mais remotas tendem a se embaralhar. Outro dia vi o long play da novela Sol de Verão. Antes de qualquer programa começar aparecia um documento da censura informando sua classificação etária. Mais ou menos na mesma época Ney Matogrosso se requebrava todo maquiado, arremedado por Didi, n’Os Trapalhões. Marta Suplicy falava de sexo de manhã, enquanto eu fazia os deveres da escola. Se bem me lembro. A novela Sol de Verão teve de ser interrompida. Por causa de uma cena em que um travesti fazia sexo com o protagonista. Posso estar enganado. Não me recordo se Xênia Bier tocou no assunto. Chico Buarque deu entrevista no TV Mulher fumando um cigarro atrás do outro. Meses antes, Vinícius havia morrido. Lembro sempre dele com um copo de uísque na mão. Sílvio Santos distribuía tênis Montreal pra molecada. Passava o domingo inteiro apresentando programas. Foi lá que vi Gretchen pela primeira vez. E também pela primeira vez, uma mulher dançando de costas para a câmera. O cara que fazia umas dublagens toscas com purpurina no rosto disse que era namorado dela. Fiquei com um misto de inveja e decepção. A outra novela foi gravada às pressas. A música de abertura era da Gang 90 & Absurdetes. No rádio tocava outra música deles que dizia “prefiro morrer de vodka do que de tédio”. No sábado tinha as chacretes. “Quem vai querer o bacalhau da Maria Zilda?” Como eu queria. A minha saudade não tem carimbo nem faixa verde e amarela.
Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
Pedra de Toque
Girando em torno do sol*
Entregue aos auspícios de quem o via como intruso, tratou de caminhar ao largo das recomendações precárias que lhe faziam

Marcus Borgón – Escritor
Num 5 de maio distante, estava lá, junto a outros bebês dispostos lado a lado, em valete. Guloso, tentava devorar o pé de uma menina, companheira de infortúnio. Outra condenada que chegava ao mundo pelas vias de um hospital público. Deve ter sido recebida com festa, também.
A contradição de adentrar ao baile da vida pela porta dos fundos. Aquela bênção que todos se esquivariam de receber, caso pudessem escolher. Chegava invocando toda sorte de cuidados e atenção. Indesejado que era, fruto de um fracasso na busca pelo prazer inconsequente. Não tinha como dar certo.
Entregue aos auspícios de quem o via como intruso, tratou de caminhar ao largo das recomendações precárias que lhe faziam. Aquela coitada que experimentou a podolatria em suas primeiras horas, talvez tenha conseguido um melhor destino. Um mau começo superado com o tempo. Uma dignidade suburbana da qual ninguém duvida, embora não deseje para si.
Nunca conheci quem tivesse nascido no mesmo dia que eu. Eu soube que era uma boa quantidade de bebês. Pequenos pacotes enfileirados à espera do freguês. Uma fornada de gente despejada nas ruas poeirentas e escaldantes da zona oeste carioca. Que em pouco tempo engrossaria a massa que esperava bovinamente nos estações de trem ou na fila do INAMPS.
Talvez ela tenha até me procurado. Para saber quem teve a ousadia de lamber seus pezinhos virginais. Agora, aquelas unhas manicuradas e com pequenas frieiras despontando nos cantos. Dedos deformados e a sola rachada. Desculpa, senhora (eu sei que temos a mesma idade, mas devo respeito a uma mãe de família), aquilo foi coisa da juventude. Eu não me atreveria novamente.
* “Girando em torno do sol” é o título de uma música da banda mundo livre s/a, presente no disco Guentando a Ôia.
Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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Rita Santana
10 de abril de 2021 at 12:03
Adorei o texto! Rico, melancólico, lírico, amoroso! Tocou regiões da Alma.
bahiapravoce
10 de maio de 2021 at 19:37
Os textos de Marcus são fantásticos. Agradecemos sua participação. Toda terça tem a coluna Pedra de Toque. Continue nos acompanhando. Agradecemos sua participação. Abraços!