
Professor Leonardo Campos
A sociedade evoluiu muito mal e a alternativa para retomada de um estado mais ameno nos desdobramentos dos relacionamentos humanos é o expurgo. Nós, criaturas formadas por instintos que supostamente nos diferenciam dos animais irracionais, aprendemos a conter toda cólera que nos domina, retida pelos códigos civilizatórios do que “é certo e errado”. É assim que agimos para não nos tornarmos um encarcerado, pagar uma multa, dentre outras situações que podem tornar um cidadão uma figura fora da lei. E assim, chegamos ao cerne do filme Uma Noite de Crime: Anarquia, produção que nos questiona da seguinte maneira: e se neste processo de recalque dos desejos, tivéssemos a possibilidade de esbravejar, esquartejar e atirar deliberadamente, por um período de 12 horas, tempo definido para a prática do expurgo, isto é, a purificação que permite aos indivíduos, descarregar as suas emoções violentas e assim, colaborar com o bom comportamento do longo de todo o período dividido entre esses eventos à noite, isto é, o hiato de um ano, período geralmente com baixíssima taxa de criminalidade.
Criado pelo NFFA, partido que engendra os mecanismos do poder nesta distopia com situações desenvolvidas no contexto dos Estados Unidos, o expurgo é legitimado pelo estado e possui retorno para as muitas instituições envolvidas no processo. A venda de produtos de segurança, armas, enfim, tudo aquilo que subsidia a cultura do medo ganha mais projeção neste rentável evento anual. Com isso, o questionamento: a purificação é para que e para quem? Quais são as vantagens e quem sai ganhando nesse processo todo? Os mais pobres continuam desprotegidos a noite e sem a possibilidade de pagar para tentar garantir as suas respectivas sobrevivências, ou então, se vendem para ser material de expurgo para os membros da elite que precisam exterminar as suas ânsias por meios de atos violentos, considerados legalmente como purificadores.
Na produção anterior, estabelecedora do material que se tornaria uma franquia, temos um suspense de invasão domiciliar, com toques de filme de terror. Instigante, a proposta se desenvolveu e ganhou projeção mais ampla, com o expurgo sendo analisado neste segundo capítulo, dentro de um viés do caos urbano, das guerrilhas, da população pobre revoltada, numa trama concebida e dirigida por James DeMonaco e assertivamente fotografada por Jacques Jauffret, diretor de fotografia que ao longo dos 103 minutos de duração da narrativa, consegue criar um clima claustrofóbico e manter a tensão constantemente, com seus enquadramentos e movimentações fechadas, uso de ponto de vista para a inserção de pequenos jumspcares, dentre outros artifícios narrativos que ganham força também por causa do bom design de produção de Brad Ricker, profissional que cria espaços convenientes para ampliação dos conflitos da trama. Quando somamos tudo isso ao trabalho musical de Nathan Whitehead, temos a concepção de uma tessitura audiovisual eficiente em seu diálogo com elementos do terror e dos filmes de ação.
Desta vez, temos cinco desconhecidos que se juntam para tentar sobreviver ao caos estabelecido pela noite da purificação: Shane (Zach Gilford) e Liz (Kiele Sanchez), casal que tem o carro sabotado por expurgadores um pouco antes de violência começar; Leo (Frank Grillo), homem misterioso que sai pelas ruas em busca de retaliação, pois saberemos adiante, perdeu alguém importante de sua vida num acidente que poderia ter sido evitado, caso o responsável não estivesse alcoolizado no volante; Eva Sanchez (Carmen Ejogo) e Cali (Zoe Alma), mãe e filha, desesperadas, quase aniquiladas após um ataque mordaz no inseguro e periférico prédio em que moram. Ao passo que a narrativa vai avançando, eles se encontram, e, nesta unificação, conseguem atravessar algumas etapas da árdua batalha que é sobreviver ao expurgo. A luta para se sair ileso desse verdadeiro processo de eugenia contemporâneo é árdua e se desenvolve na metáfora do abismo social de nossa sociedade, reflexo também para o lado de cá da tela, aquele que chamamos de mundo real, lugar de exclusão e desigualdades gritantes.