
Professor Leonardo Campos
Habitamos uma esfera pública de diálogos cada vez mais interessada em desconstrução de rótulos, apesar de uma grande massa ainda aderir aos processos de classificação facilitadores para a compreensão de determinados fenômenos sociais. Analisar o legado de um cineasta com quase quatro décadas de atuação é um desafio, pois acidentalmente podemos cair em determinados rótulos, estereotipando a análise da experiência alheia. Com Wes Craven, por sua vez, essa preocupação não é ponto nevrálgico do que se propõe enquanto breve discussão sobre a sua permanência no imaginário dos filmes de terror. Wes Craven foi sim, um dos mestres do horror, tal como Mario Bava, Dario Argento, Steven Miner, Sean S. Cunningham, John Carpenter, dentre outros, salvaguardadas as suas devidas proporções comparativas.
Nascido em Cleveland, nos Estados Unidos, filho de pais devotos da Igreja Batista, o cineasta teve bastante influencia religiosa em seus primeiros anos de vida, apesar de na vida adulta ter se declarado ateu, alguém que “não acredita formalmente em Deus”, pois “as religiões mais fizeram mal as pessoas do que o bem propriamente”. Falecido em agosto de 2015, mesmo mês de seu nascimento, Wes Craven iniciou a sua paixão por filmes ainda na adolescência, como espectador, indo para o processo criativo alguns anos depois. Antes da carreira cinematográfica, Craven foi professor de Língua Inglesa na Faculdade de Westminster e atuou no setor de Humanidades da Universidade de Clarkson, em Nova Iorque, experiências anteriores aos filmes pornográficos que trabalhou como membro da equipe técnica.
Com formação em Psicologia, Filosofia e Letras, aplicou os aprendizados e as leituras em seus filmes, com produções focadas nas inquietudes que marcaram o seu amadurecimento intelectual, afinal, Wes Craven viveu as profundas transformações sociais de sua época, isto é, os badalados anos 1960 e 1970, atuou já com prestígio nos anos 1980, outra era de mudanças bruscas nos comportamentos, além de ter conseguido atravessar os anos 1990 e 2000 com o devido passe, atento aos processos de renovação e cumprimento da agenda das novas gerações, tal como fez com Kevin Williamson em Pânico 4. Inicialmente não tinha interesse em trabalhar com o gênero que marcou a sua vida, o terror, mas as coisas não caminharam bem como o planejado, o que nós, espectadores, agradecemos.
Sean S. Cunningham, um dos idealizadores da franquia Sexta-Feira 13, foi um dos seus parceiros de trabalho ao longo dos primeiros anos de trabalho. Depois do primeiro filme da saga de Ghostface, o cineasta trabalhou ao lado de Kevin Williamson em Pânico 2, começou a esboçar Pânico 3, mas por diferenças criativas com a companhia Weinstein, Ehren Kruger entrou na jogada, num retorno ao lado de Williamson no quarto filme da franquia, a sua última realização cinematográfica. Trabalhou como editor de som, sua primeira função, para mais adiante, assumir outras posições dentro do esquema de produção.
Em Wes Craven – O Homem e Seus Pesadelos, biografia assinada por John Wooley Wiley, construída com base em entrevistas, recortes de imprensa, dentre outras fontes, somos informados que o cineasta trabalhou como editor de uma revista literária na faculdade, esteve nos bastidores do clássico Garganta Profunda, assinou o roteiro de Pulse, em 2006, versão estadunidense de um filme de horror oriental. Diretor de A Hora do Pesadelo e do sétimo filme de Freddy Krueger, Craven produziu o terceiro filme, apesar de seu afastamento criativo diante dos rumos tomados pela franquia. Conhecido por seus filmes que mesclam pesadelo e realidade, o cineasta também teve a sua parcela de doçura ao assumir a função de diretor entre os 22 idealizadores de Paris, Eu Te Amo, além de Música do Coração, o típico drama de Meryl Streep.
Tendo a metalinguagem como parte importante de seu processo criativo, Wes Craven também atuou em suas produções, com pequenas participações ao estio Alfred Hitchcock. Noutras produções, além dos documentários sobre o subgênero slasher ou historiografias do gênero horror, Craven esteve como ele mesmo em duas séries televisivas. Em Castle, no episódio 17 da 5ª Temporada, os personagens precisam investigar o misterioso caso de uma jovem que morre três dias após assistir um DVD mal assombrado. Na série Boston Legal, a sua participação é semelhante, exatamente no episódio 26 da 2ª Temporada. Assim, Craven brincou de ator e escreveu histórias instigantes, mas o posto que o manteve fixo e respeitável foi a cadeira de diretor, numa orquestra sem fim de horror e medo.
O cineasta é tema do livro Palavra de Crítico: Introdução ao Cinema de Wes Craven, conteúdo que ao longo de 2020, será disponibilizado por aqui, em doses, digamos, homeopáticas. Hoje, no entanto, é dia de se deter apenas ao ótimo Pânico 4, produção que completa dez anos e traz debates que o permitem ser classificado como um clássico moderno, obra-prima do slasher contemporâneo.
Pânico 4: Metalinguagem na Era das Redes Sociais e Aplicativos
Se um filme dependesse exclusivamente das bilheterias para comprovar a sua qualidade, Pânico 4 iria ser mais um caso de naufrágio de franquias. Apesar de não ter lucrado o esperado, principalmente se comparado com o estouro financeiro dos antecessores, a produção é mais uma cuidadosa descida ao longo do espiral de insanidade promovido por mais um (ou dois) assassinos que atacam no retorno da final girl Sidney Prescott para Woodsboro. Em sua turnê do livro de autoajuda escrito para expurgar os seus demônios internos, a personagem reencontra Dewey e Gale para mais uma incursão de medo, mortes e outros desafios. Com uma abertura metalinguística excepcional, Pânico 4 reflete a violência na era das redes sociais e do amplo alcance da imagem no mundo virtual. É uma sociedade confusa em seus valores, a clamar por heróis que muitas vezes, não passam de figuras mais frágeis que seus adoradores. Desta vez, novas histórias serão resgatadas, os diálogos referenciais tornam-se ainda mais humorados e inteligentes, numa narrativa empolgante e bastante reflexiva. Qual o preço da fama? Há pessoas com carmas levados para a totalidade de suas vidas? O quão amplo pode ser um ferimento promovido por um trauma que insiste em retornar para se fazer presente e memorável? Essas são algumas questões que podem ser levantadas ao longo da sessão de entretenimento deste quarto momento da franquia dirigida por Wes Craven.
Agora, chegou o nosso momento de análise pormenorizada do filme. Acompanhe cada quadro e veja alguns dos principais momentos de Pânico 4. Vamos nessa?
Em sua abertura, Pânico 4 traz discussões sobre os limites da indústria em seu processo de reciclagem de narrativas já desgastadas no circuito de produção e consumo. Enquanto assistem ao filme dentro do filme, as personagens debatem acerca do desenvolvimento do terror na contemporaneidade. Uma delas (abaixo) diz que as refilmagens de meninas asiáticas e zumbis já chegaram ao excesso e a outra, irritada, a esfaqueia durante a discussão. Esta é uma cena de Facada 7, ironia dos realizadores para sagas como Jogos Mortais e afins, exauridas e bizarras depois que passaram dos seus três episódios iniciais. Sobre as personagens anteriores, morenas, temos uma discussão sobre o novo contexto das redes sociais e dos psicopatas. Discute-se sobre o Assassino do Facebook e logo mais, saberemos que elas são personagens de Facada 6, assistidas pela dupla de Facada 7, também personagens assistidas por outras duas jovens do contexto de Pânico 4, mais desenvolvido no próximo tópico. Destaque: num breve trecho, um dos diálogos critica a metalinguagem pós-moderna e num tom sarcástico e autorreferencial, diz isso funcionou em 1996, mas que agora não mais.
As primeiras vítimas de Pânico 4 discutem os absurdos da franquia Facada. Uma delas critica o nível de inteligência dos filmes e aponta que falta lógica e bom-senso dos desenvolvedores. A outra, num tom humorado, diz que a amiga está pensando demais, tendo como resposta uma rápida devolutiva: “eu estou pensando demais ou estes realizadores estão pensando de menos?”. Ao explicar que esse é o motivo para não assistir estes filmes de terror, ela continua o dialogo com sua amiga que delineia os caminhos da saga Facada, inicialmente inspirada na vida de Sidney Prescott, desgastada mais adiante com os rumos da história que até teve uma viagem no tempo em seu quinto filme. Ao trazer referências importantes da metalinguagem na cultura pop recente, o diálogo reflete como os filmes da saga de Ghostface são alimentados pelo arcabouço de referências ao gênero terror, em especial, o slasher, para se manter na ativa, acionando antigos cinéfilos interessados no tema e também as novas gerações.
Depois da clássica cena de abertura com as mortes que estabelecerão o tom de Pânico 4, Sidney Prescott chega em Woodsboro e encontra a cidade toda ornamentada por jovens que adoram relembrar o “massacre” do passado. É um daqueles típicos eventos estadunidenses que fazem ode ao que é justamente para ser esquecido, haja vista o grau de violência física e psicológica em torno dos acontecimentos. Logo adiante, temos o trio de garotas que centralizam a linha narrativa da produção entre os primeiros momentos e o arco final. Elas dialogam sobre a chegada de Sidney, prima de Jill (Emma Roberts), candidata a final girl que pregará uma peça em todos bem próximo ao final. Na conversa, uma delas diz que a franquia de Sidney é tão trágica que deveria ser Premonição, a famosa saga sobre a morte a perseguir sobreviventes indevidos.
Numa breve conversa com uma de suas policiais, Dewey reforça que a tragédia de uma geração é a piada de outra, numa referência aos adornos espalhados pela cidade. Logo depois disso, é chamado para uma emergência, indo em direção ao local do assassinato da abertura, catalisador dos horrores de Pânico 4. Abaixo, Gale encontra Sidney no lançamento do livro. Fica aparente o seu desconforto com o desenvolvimento da amiga que superou alguns traumas e conseguiu seguir adiante, diferente da repórter que se tornou apenas a esposa do xerife. Esse é o movimento que faz Gale despertar para a nova empreitada de investigação em torno de Ghostface, num momento de alimentação de sua antiga paixão: a mídia.
Durante o lançamento do livro de Sidney, Dewey chega para informar que algo ali está conectado com a cena de crime da abertura. É quando eles descobrem que alguém deixou um recado de sangue para a protagonista na mala de seu carro alugado para o período na cidade. Gale, ciente da situação na qual todos estão inseridos, desperta para retornar ao seu posto de apaixonada pela cobertura midiática dos fatos. Na clássica cena no interior de uma sala de aula, os estudantes discutem literatura, filosofia e são surpreendidos com a notícia da morte das colegas de instituição, início de um alvoroço semelhante ao que ocorre no espaço externo, tomado por veículos de imprensa e jornalistas interessados no esperado furo de reportagem.
Gale Weathers domina várias passagens onde luta pelo estabelecimento dos seus ideais enquanto personagem que sempre esteve no protagonismo para a resolução do mistério envolvendo as mortes nos três filmes antecessores. Na primeira cena, ela discute com o seu marido, o xerife que a quer de fora da investigação, algo complexo para alguém com faro jornalístico. No segundo quadro, temos o encontro de Gale com a assistente de Sidney, editora puxa-saco que leva a maior bronca da repórter fora de ação que se diz ainda reconhecer durona depois de dar “um fora” na jovem com pouco bom-senso.
Depois dos primeiros sustos, Sidney rememora o seu passado ao chegar no quarto de Jill e a encontrar num momento semelhante ao seu com o namorado assassino em Pânico. O desenvolvimento da cena, por sinal, é muito parecido, sendo este outro dos tantos momentos autorreferenciais em Pânico 4. No quadro seguinte, Sidney entra e Ghostface dialogam pela primeira vez no filme. É um momento de tensão, ocorrido após a morte de uma das amigas de Jill, brutalmente assassinada em seu quarto enquanto conversava ao telefone. O antagonista é claro e objetivo: o seu interesse não é exatamente a final girl, mas as novas possibilidades de matança. Sidney ainda entra num embate com o “monstro”, mas a figura consegue fugir e guardar a sua ira para a eletrizante batalha do desfecho.
Depois do assassinato testemunhado pela janela da casa de Jil, Sidney segue para casa arrasada, sentida por não ter conseguido poupar a vida da jovem, relembrando-se dos fatídicos acontecimentos e perdas entre Pânico e Pânico 3. A sua assistente, com postura semelhante ao que era Gale nos dois primeiros filmes da franquia, diz que já agendou a sua visita aos programas televisivos que desejam entrevista-las. E para completar, alega que já fechou com a editora para o lançamento de mais livros e que Sidney pode dar o preço que quiser. Decepcionada, a protagonista questiona se ela leu e entendeu a sua trajetória no livro e numa resposta bastante irônica, a assistente interpretada por Alisson Brie informa que ainda não, pois está à espera do filme sobre o conteúdo. Demitida, ela é eliminada mais adiante, num estacionamento.
Interessada em retomar a sua saga de repórter investigativa, Gale Weathers descobre que precisa se associar aos mais jovens da região para conseguir acessar determinadas informações. Com isso, precisa atender ao pedido de um deles: levar Sidney Prescott, considerada uma celebridade, para o clube de cinema da escola. Lá, a cena nos oferta algo além dos debates nos ótimos diálogos metalinguísticos. Temos também a direção de arte caprichosa nos quadros com posters de clássicos, tais como Quadrilha de Sádicos e imagens de Jamie Lee Curtis, a adorada final girl Laurie Strodie, de Halloween – A Noite do Terror. Mais adiante, a maratona dos sete filmes da franquia Facada ocorre numa região afastada da cidade. Gale descobre e vai ao local, sendo surpreendida e quase aniquilada por Ghostface, assassino que agora não apenas mata, mas também registra os seus crimes, como uma espécie de troféu.
No momento da chegada de Gale Weathers, os jovens estão assistindo Facada, o primeiro filme da franquia. É o mesmo trecho de abertura exibido em Pânico 2, quando o casal interpretado por Omar Epps e Jada Pinket-Smith estão no cinema e morrem nas mãos cruéis de Ghostface. O momento é uma referência ao clássico Psicose, de Alfred Hitchcock, famoso por sua peculiar cena de assassinato no chuveiro. No quadro seguinte, Kirbie dialoga com os organizadores da maratona, jovens cinéfilos que talvez sejam os assinantes dos crimes até então.
Após o ataque, Gale Weathers, até então firme nas três produções antecessoras da franquia, sai de cena para se recuperar do ataque de Ghostface. Ela retorna apenas no humorado e intenso desfecho, repleto de metalinguagem, tal como todo o filme. Antes de sua saída, no entanto, a personagem expõe para o marido xerife, as novas condições de produção do antagonista, isto é, matar e registrar isso com suas câmeras, tendo em vista postar na internet. No quadro seguinte, o grupo de personagens mais jovens se encontram na casa de Kirbie para assistir filmes de terror, algo que aconteceria na festa cancelada pela polícia após o ataque sofrido por Gale. A entrada na casa define o terceiro e supostamente último ato de Pânico 4.
Após ser instigada por Ghostface ao telefone, Sidney segue para a casa onde o ato de revelação dos assassinos se estabelecerá. A sequência tem os seus momentos de reflexão, mas o foco é a eletrizante perseguição entre os ainda sobreviventes e o assassino impiedoso que registra os seus crimes para criar conteúdo de violência explícita na internet. No quadro seguinte, as dúvidas em torno do conceito de confiança são estabelecidas entre os personagens. Sidney questiona se Kirbie confia no jovem que se diz inocente, mas está ensanguentado do lado de fora e pede socorro. Neste momento, referências ao primeiro filme são apresentadas: primeiro, a paranoia acerca dos prováveis culpados e inocentes, seguida de uma suposta vítima posicionada como o namorado de Casey Becker, a personagem de Drew Barrymore, aterrorizada na icônica abertura do clássico moderno, em 1996. O feixe de referências fica cada vez mais intenso nesta sequência de acontecimentos que nos levam ao sufocante desfecho, por sinal, surpreendente.
No primeiro quadro, a cena que faz referência ao primeiro assassinato de Pânico, isto é, o namorado da personagem de Drew Barrymore. Questionada sobre filmes de terror para garantir a sua sobrevivência, Kirbie precisa responder ao antagonista na linha telefônica e salvar não apenas a sua pele, mas a do amigo do lado de fora, acossado por Ghostface. Na cena, temos a citação aos tantos casos de clássicos refilmados, numa rápida referência ao movimento de releituras que tomou o sistema na época. Pânico 4, de certa maneira, pode também ser considerada como uma sequência que emula muitos traços dos antecessores, em especial, do primeiro filme, reconfigurados com novo elenco, mas com estrutura dramática e estética bastante parecida. Logo adiante, Kirbie descobrirá que abrir a porta foi um erro que lhe custa a vida.
O epílogo ocorre no hospital, pois como já podíamos prever, matar Sidney seria uma postura ingrata dos realizadores. Assim, no desfecho do ato na casa de Kirbie, descobrimos que Jill, a prima da final girl, é uma das idealizadoras do projeto de matança que não poupou sequer a própria mãe. Doentio, o discurso da jovem versa sobre leitura, mídia, busca desenfreada pela fama e violência numa sociedade mediada por imagens e padrões exaustivos o tempo inteira. Inicialmente, o interesse era manter a dupla com um dos jovens do clube cinéfilo, mas a sua ambição é maior que o próprio projeto então a alternativa é aniquilar o acompanhante e fazer-se de vítima ao lado da prima que ela acreditava estar morta, mas que na verdade sobreviveu ao seu ímpeto de fúria. Renovador em sua proposta, Pânico 4 é um dos pontos altos de uma franquia que só desandou rapidamente no desenvolvimento de seu terceiro filme. Ademais, é uma ótima reflexão sobre violência na sociedade estadunidense, embutida numa narrativa que também funciona como ótimo produto de entretenimento.
Se ficou interessado em relembrar (ou conhecer) os filmes anteriores, confira os textos publicados em 2015 no Portal Plano Crítico.
Pânico: https://www.planocritico.com/critica-panico/
Pânico 2: https://www.planocritico.com/critica-panico-2/
Pânico 3: https://www.planocritico.com/critica-panico-3/