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Uma tarde eterna

Eu tinha um amigo que colecionava LPs. Isso no final dos 90, antes dos bolachões voltarem com força ao mercado. Ele os negociava também.

Marcus Borgón – Escritor

Eu tinha um amigo que colecionava LPs. Isso no final dos 90, antes dos bolachões voltarem com força ao mercado. Ele os negociava também. Um dia, me chamou para uma sessão musical. Há tempos eu esperava pelo convite. A caminho de sua casa, ele parou para observar uma árvore sendo podada. Eu estava ansioso pelos vinis. Algo me dizia que não daria tempo de escutar tudo o que eu quisesse. Mas ele se sentou para olhar mais detalhadamente. Fui obrigado a me conter. Os operários cuidavam de uma árvore imensa, que parecia muito antiga. Centenária, talvez. A poda exigia toda uma técnica de polia, de amarrar os galhos, de serrar no ponto certo.

Quando finalmente chegamos, ele me apontou as duas estantes: “essa é minha coleção; aquela, para venda”. Milhares de discos. Enquanto eu fuçava as estantes ele colocou pra tocar uma de suas últimas aquisições, resultado de suas andanças pelo interior. Dupla de emboladores. Seres imaginários deram o ar da graça após serem convocados através de um ritual meio xamânico, meio finório. Uma homilia digestiva, no início da tarde, bem antes das setas apontarem para o 4. Cada embolada durava uma eternidade. As batidas do pandeiro numa espiral randômica. As vozes diziam tanta coisa, mas eu só entendia “ciará”. Anestesia. Membros sem movimento.

Eu tinha separado um álbum duplo do Metallica. “Leve de graça, essa porcaria”.

Perguntei se o livro do Suassuna em cima da mesa também estava à venda.

“Você quer ler Ariano?”

“Sim!”

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“Então, dá licença.”

Pegou os dois bolachões do “And Justice For All” e os partiu ao meio. Eu não fiz nada para impedir. E nem poderia. Me encontrava sem braços e pernas.

Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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