Bahia Pra Você

Trapaças da sorte*

Marcus Borgón – Escritor

Tempos atrás, conheci uma mulher que morava no Chame-Chame, um bairro com limites geográficos e econômicos bastante imprecisos, embora sejam em sentidos opostos. Enquanto um tende a se achatar, o outro tende a se expandir. Assim também eram nossas conversas. Ela bem falante e extrovertida; eu, cada vez mais circunspecto.

Ela gostava de acender incensos e tinha diversos patuás espalhados pelo apartamento. Dizia que serviam para abrir caminhos, espantar mau-olhado, entre outros favorecimentos místico-astrais. Eu gostava mesmo quando ela falava sobre a elegância e a sofisticação dos filmes franceses que assistia na sala de arte. Ou sobre o espírito libertador da dança do ventre. Ou da salaz filosofia do mestre Osho. Ou de um livro da Clarice que começa com uma vírgula. Essas coisas me apeteciam, e me deixavam com a sensação de estar mais perto de algo que significasse erudição e relevância artística.

Quando ela queria saber mais sobre mim, eu, na minha peculiar falta de assunto, costumava arrastar o papo para a minha infância. Período onde parece ter ocorrido tudo de interessante na minha vida, e que sempre rendia uma prosa superior a trinta segundos. Lembro que contei da minha sorte de pequeno alcance. Uma venturosa capacidade para ganhar brindes de pouco valor, como um jogo de cumbucas para sobremesa que tirei num álbum de figurinhas. Também ganhei um pega-varetas num bingo beneficente. E tirei o primeiro lugar num concurso de calouros mirins, cantando uma música do Lulu Santos. O prêmio foi um jogo de bingo.

– Mas, isso não foi sorte!

Claro que foi sorte, a tirar pelo meu talento para cantar… Nunca consegui, aliás, aprender a tocar um instrumento. Sempre me faltou habilidade (ou talento), e nesse caso, sorte alguma consegue ajudar. Sobretudo a minha, uma sorte de tiro curto. Na época da Copa de 86, faturei o sorteio de uma bola Chuveirinho, verde e amarela. Quando voltei para casa, minha mãe disparou: “você tem muita sorte!” A verdade é que levei muito tempo botando fé nesse vaticínio dos infernos, e nunca me esforcei para porra nenhuma. Acreditava que essa suposta predestinação cuidaria de pavimentar a minha estrada de sucesso. Hoje sei que essa convicção me foi um verdadeiro carimbo aziago na testa. Algo que me imobilizou, me impediu de “correr atrás”, como todo mundo. De vez em quando, ainda ganho uma promoção que vale um CD, outra que me dá um livro. Sempre nesse limite rasteiro, da alegria efêmera, da ventura tacanha. Ou seja, nada que vá mudar substancialmente a minha vida severina.

A moça do Chame-Chame tinha um sobrenome alemão que significava “modesto”. O imponderável destino não subscreveu o roteiro que incluía trilha sonora de Mendelssohn, pajens e papel passado.

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O magnífico defunto Brás Cubas deu ao capítulo final de suas memórias o nome de “Das negativas”. Assim como ele, não tive êxito com nenhum emplastro, ou qualquer outro meio que me projetasse. Também não tive filhos. Por ironia, a sorte me negou aquele sobrenome que me cairia perfeitamente.

Alguém sabe quanto está pagando a mega-sena dessa semana?

*extraído do poema “Face a face”, de Cacaso.
Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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