Marcus Borgón – Escritor
Os Excêntricos Tenembaums é um filme de Wes Anderson que retrata uma família cujos filhos foram pequenos prodígios, mas na fase adulta, tornaram-se pessoas problemáticas. Guardadas todas as proporções, quando assisti, lembrei da minha infância. Não que eu tivesse sido uma criança promissora. Longe disso. Mas alguns comentários de meus pais e de pessoas próximas mostravam que eu aparentava ser um menino diferente dos demais. Nem sempre para melhor.
Gabriel Garcia Márquez costumava falar de uma passagem tida como a primeira centelha de sua genialidade. O avô gostava de levá-lo para acompanhar as longas e silenciosas partidas de xadrez que disputava com um amigo belga. Pouco tempo depois, o belga se suicidou, e o pequeno Gabo, durante o velório disse “o belga não voltará a jogar xadrez”. A frase repercutiu entre os presentes, e nunca mais deixou de ser assunto nas rodas familiares.
Rolava uma reuniãozinha informal lá em casa. Um rapaz tocava violão, e todos acompanhavam, não muito afinados, aqueles clássicos do cancioneiro popular. Gonzaguinha, Chico, Caetano, Milton. Do quarto eu escutava tudo. Crianças não participavam daqueles convescotes da maturidade. Lá pelas tantas, minha mãe nos chamou para apresentar-nos às visitas. O violeiro parecia com o Kledir, da dupla de irmãos gaúchos. Usava uns anéis estranhos e um brinco na orelha esquerda. Ele me olhou e perguntou se eu queria ouvir um Topo Gigio, Balão Mágico, ou… “quero Bésame Mucho”. Todos se espantaram. Meus pais se entreolharam curiosos. Um moleque de oito anos pedindo um bolerão mexicano. Aquela sentença não tinha o mesmo efeito dramático (e literário) da proferida pelo fundador de Macondo. Mas, também ecoou pela vizinhaça por um bom tempo.
Uma coleguinha ficou adoentada uns dias, e me pediu o caderno com as tarefas que havia perdido. No dia seguinte, ela me falou que a mãe dela queria conversar comigo. Eu havia deixado uma das tarefas em branco, e a professora, nesses casos, para chamar a atenção dos pais, escrevia em vermelho, com letras graúdas: POR QUE NÃO FEZ O DEVER??? Assim mesmo, com várias interrogações. Minha mãe não olhava meu caderno, só o boletim. O que havia indignado a mãe de Janaína, foi a minha resposta: “porque eu não quis”. Ela achou muito insolente, e disse que ela mesma se encarregaria de devolver o caderno para minha mãe. Eu fui direto para o quarto, para começar a cumprir o meu castigo. De lá, ouvi a risada de minha mãe. Ela achou espirituoso e divertido. E disse que minhas notas não demonstravam o suposto desleixo com os estudos. Este caderno andou pelo Polo Petroquímico, salões de beleza, curso de cerâmica, associação de moradores, encontro dos Alcoólicos Anônimos, até chegar na direção da escola e me acarretar uma suspensão de dois dias. E no restante do ano, ter de suportar o terror que o olhar de ódio da professora ensejava.
A professora de Estudos Sociais, abaixo das questões da prova, deixava uma mensagem de boa sorte. Um dia, na entrega das notas, ela pediu licença para ler o que eu tinha deixado como resposta ao seu venturoso cumprimento. Esta prova fez quase o mesmo itinerário do caderno de tarefas. As pessoas comentavam quando eu passava “esse menino que escreveu ‘obrigado, mas não precisei’”. A resposta era irreverente, mas também bastante ingênua. Para os mais velhos, pareceu carregada de soberba. Outros colegas resolveram imitá-la, e com isso as provas subiram alguns graus de dificuldade.
No citado filme, o patriarca vivido por Gene Hackman resolve voltar para casa a pretexto de reconquistar a família. Na verdade, ele havia sido despejado do hotel onde morou por mais de duas décadas. Meu pai também foi despejado de um hotelzinho na rua do Paraíso, e voltou a morar conosco. Não precisou de desculpas afetivas. Sua presença instalava um clima de tensão constante na casa. Naquela época, a única coisa extraordinária, era o medo que a gente sentia.
Há quem compare os personagens do filme com personagens dos contos de Salinger. Em seu romance mais famoso, o jovem narrador-personagem tem um desempenho pífio num sofisticado internato para rapazes. A história se desenrola no intervalo de poucos dias, entre o fim do ano letivo e o retorno para casa. Suas ruminações refletem um espírito de inadequação profunda e de contestação ao status quo. Ao se deparar com os diversos conflitos inerentes à vida, ele assume uma postura pessimista e questionadora. Os adultos são vistos como impostores e hipócritas. E é fácil reconhecer esse comportamento como um dos efeitos do amadurecimento.
Visto de longe, o menino que fora reconhecido por feitos incomuns (embora não fossem em nada geniais) não teve nenhuma crise proveniente de uma decepção geral com os caminhos que seguiu ─ nem sempre por escolha própria. Não faltou vontade de colocar a culpa em traumas e íncubos oriundos de uma primeira formação muito tumultuada.
Uma colega de trabalho me falou orgulhosa do filho de cinco anos que havia feito um trocadilho com o nome da escola, Costa Melo. Tudo na criança tem cheiro de novidade. A descoberta do mundo, o desenvolvimento da linguagem, as perguntas desconcertantes (como se chama o pai de Deus?). Millôr Fernandes dizia que “todo homem nasce original e morre plágio”.
Eu mesmo não fazia a menor ideia de como era aquele bolero açucarado composto em espanhol. Pesquei o nome numa conversa entre um casal de brasileiros e um casal argentino, na praia.
Um coleguinha me induziu a responder de modo sarcástico ao questionamento da professora, com a alegação de que ela não olhava os deveres mais antigos. Ela deixava o recado para que os pais resolvessem o problema.
Numa feira de livros que acontecia na pracinha do bairro, abri um título a esmo. Naquela página estava escrito: “Cumpro esse dever, ou essa sorte, sem grande esforço nem notável desinteligência”. Aquilo me deixou desassossegado. A ponto de desdenhar da sorte, e deixar isso registrado numa prova da escola. A minha precocidade antecipava apenas o lado obscuro da vida adulta.