
Professor Leonardo Campos
Conflito e tensão em nosso cotidiano são assuntos inflamáveis e que nunca se esgotam. Um dos caminhos utilizados para teorizá-los é um jargão de Jean-Paul Sartre, conhecido como “o inferno são os outros”. Muita gente apaixonada pela gramática normativa se incomoda com a expressão e até modifica para o singular, “o inferno é o outro”, mas a expressão do filósofo existencialista se apresenta assim mesmo: “o inferno são os outros”. Mas, afinal, quem são esses “outros”? “A minha vizinha mexeu comigo, enviou uma indireta na rede social e fica me provocando”, aponta X. “Os atrasos da minha recepcionista mexem com a dinâmica de atendimento do meu consultório”, desabafa Y. “O meu chefe constantemente me assedia”, denuncia Z. Pelo senso comum, estas pessoas tornam o ambiente de X (moradia), Y e Z (trabalho) um verdadeiro “inferno”, local puramente tenso e angustiante, relacionados com a expressão de Sartre.
Mesmo que seja sedutor pensar neste termo para ilustrar os acontecimentos hipotéticos citados, não podemos usar um jargão com um significado específico e ainda referenciá-lo erroneamente. A expressão pode ser utilizada sem problemas, pois se encaixa perfeitamente na situação de X, Y e Z, no entanto, é preciso saber como e quando usar um conceito, tendo em vista evitar constrangimentos e uso indevido de temas tão complexos de forma leviana. Para situar, Sartre era um expoente do existencialismo, juntamente com o argelino Albert Camus, escritor dos clássicos modernos O Estrangeiro e A Peste. A corrente filosófica em questão reflete o sentido que o homem dá a própria vida. Segundo Sartre, nós não nascemos com uma função pré-definida. O lápis e a caneta sim, mas o ser humano não. Antes de qualquer decisão que tomamos, ainda não somos nada. Vamos nos moldando por meio das nossas escolhas.
Para Sartre, os nossos projetos sociais entram em constante conflito com o projeto de vida dos outros. Eles, os “outros”, são os responsáveis por extrair parte da nossa autonomia. Porém, ao mesmo tempo é através do olhar do outro que reconhecemos a nós mesmos, seja pelos erros ou acertos. Complexo, não? Continuemos. Já que a convivência expõe as nossas fraquezas, os outros “são” o inferno, daí a sustentação do famoso jargão. “O inferno são os outros” é um tema intersubjetivo, pois toca nas cordas sensíveis das relações entre os indivíduos. Inicialmente citada na peça teatral Entre Quatro Paredes, do próprio Jean-Paul Sartre, o jargão encontra-se no mesmo texto que diz “um homem não é nada mais do que a soma das escolhas que fez ao longo da sua vida”. Como refletiu o filósofo, não somos aquilo que fizeram de nós, mas o que fazemos com o que fizeram de nós. Traduzindo, seres de reação.
Sendo assim, o homem inicialmente nasce, passar a fazer parte do mundo e só ao decorrer da sua vida ele constrói algo que possa ser chamado de sua “essência”, ou seja, aquilo pelo qual identificamos cada pessoa em particular. Essa essência é formada pelas escolhas que fazemos ao longo de nossas vidas: os valores de cada um, os projetos profissionais, as nossas opiniões, a forma de se relacionar com os outros, nossas crenças e preferências etc. Seguindo esses princípios, as relações humanas são conflituosas por conta do nosso encontro com o “outro”. Por qual motivo? Simples: há um confronto entre a minha liberdade e a dele. Eu preciso do outro para me conhecer plenamente. Isso é uma maneira de escaparmos no que o filósofo intitulou de “má fé”. Mais complexo, concorda? Continuemos: supomos que você tenha sido demitido de uma empresa por conta dos seus atrasos. Você chega atrasado por causa das noites mal dormidas, geralmente assistindo séries até muito tarde. Para Sartre é preciso que você aja de forma autêntica diante da situação e assuma as rédeas do acontecimento, afinal, você foi demitido porque não se preocupou em cumprir os acertos com a sua empresa.
O que geralmente muitos fazem? Culpam o estabelecimento de trabalho porque os seus superiores hierárquicos são incompreensivos, arrogantes, capitalistas demais, dentre outras coisas. Isso elimina o peso da responsabilidade de nossas escolhas. O mesmo pode acontecer com uma avaliação. Você foi ruim na prova porque ficou até tarde alimentando os animais da sua “fazendinha” virtual ou postando stories nas redes sociais. Para eliminar a responsabilidade diante do resultado fracassado, você põe a culpa no professor, considerado ruim, ou então, nas condições da turma ou no dificultoso nível da avaliação. Um exemplo bem próximo da realidade aconteceu recentemente com uma pessoa conhecida. Ciente dos perigos de se relacionar sexualmente sem preservativo, a pessoa partiu para um encontro às escuras com um cara que havia conhecido num aplicativo. Na “curva dramática” da relação, o preservativo estourou e uma das partes entrou em pânico, pois não sabia nada sobre cuidados com a saúde do seu “parceiro”.
Resultado: ficou aflito, para mais adiante, aguardar um espaço de tempo para a realização dos devidos exames laboratoriais para saber se havia contraído algo indesejado. Durante todo o processo, numa busca incessante por paz interior, o individuo criou teorias que gravitavam em torno da situação: “essas empresas com seus preservativos frágeis”, “o cara era um carimbador”, “talvez seja meu destino”, etc. Em nenhum momento tomou a rédea da situação, ao contrário, culpou o “outro” pela infelicidade do acontecimento. Com o olhar alheio, escapamos das tentações, somos retirados nas malhas profundas da “má fé”. O que nos ajuda a evoluir, crescer e melhorar é esse “outro”, isso sem dizer no processo de socialização necessário para a nossa sobrevivência. Assim, diante da questão complexa, compreendemos: o homem é o único responsável por tudo que faz. O “inferno” está no fato de sermos responsáveis pelas consequências dos nossos atos.
No interior do jargão “o inferno são os outros” habita a ideia de que não há relação humana que não carregue em si um germe de tensão. Trocando em miúdos, “eu sou livre, mas o outro também é, por isso, não podemos controlar o que ele pensa, o que ele nos diz”. Ele, esse “outro”, impõe limites a nossa liberdade, por isso o surgimento da tensão. E com tudo isso, surgem os questionamentos. Como podemos resolver os problemas oriundos dessa questão, já que estamos em um mundo onde os interesses individuais sufocam as necessidades coletivas? Um dos desafios atuais seria tentar desatar esse nó. Uma saída eficaz talvez seja superar nossa conjuntura, indo em direção a uma sociedade que nos dê a base para travarmos relações mais autênticas, libertas do peso do mundo individualista e da nossa luta diária por sobrevivência.
O existencialismo, como aponta um intrigante artigo na revista Superinteressante, “é para poucos, pois exige uma honestidade que uma minoria possui”. “Deus quis assim”, “A vida está nos testando”. Quem nunca leu ou escutou essas expressões? Estamos sempre responsabilizando o “outro” pelas coisas, pois raramente tomamos partido das nossas atitudes. Devido aos seus usos devidos e indevidos em grande proporção, a expressão hoje é bem comum, uma espécie de termo filosófico pop, mas surgiu na França no período pós-guerra, situado dentro de um contexto. Uma produção que nos ajuda a compreender o jargão de Sartre e que sempre utilizo em minhas aulas é o filme Casa de Areia de Névoa, dirigido por Vadim Perelman, baseado no romance homônimo do escritor Andre Dubus III, russo radicado no Canadá há tempos. No drama, duas pessoas travam uma disputa acirrada por uma casa. De um lado há a frágil Kathy (Jennifer Connely), jovem que passa por um processo de depressão após ter sido abandonada pelo marido. Por causa de uma falha documental do governo ela é expulsa de casa.
Desesperada, contrata um advogado para recuperar a casa, um local que ela acredita ser o único símbolo da sua dignidade. Do outro lado, por sua vez, está Massoud Amir Behrani (Ben Kingsley), um imigrante iraniano que depois de muito trabalho, comprou a casa de Kathy por um quarto do valor, tendo em vista vende-la futuramente para ter dinheiro suficiente para a educação superior do seu filho adolescente. Para Amir esta é uma oportunidade de dar conforto a mulher e ao filho, além de recuperar o padrão de vida que tinham no passado, enquanto moradores do Irã. Ele tem os seus interesses. Ela também tem. O que pode resultar quando o limite de um ultrapassa o do outro? Muita tensão, obviamente. A chegada de um policial serão ponto catalisador dos problemas, o que levará os personagens rumo aos trágicos acontecimentos finais. O filme é uma obra-prima poderosa, integrante da tríade do sufixo “ante”: inquietante, angustiante e sufocante, a materialização audiovisual do jargão de Sartre que trafega constantemente pelas bifurcações da contemporaneidade, isto é, “o inferno são os outros”. Você, leitor, o que acha?