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Notas da sarjeta

Não era pelo inesperado, minha aparição sempre coincidia com o horário das refeições. A sarjeta te deixa com aspecto de monstro.

Marcus Borgón – Escritor

Eu era uma espécie de assombração. Quando saía do quarto causava horror e aversão às pessoas que estavam na sala, ou nos demais ambientes da casa. Não era pelo inesperado, minha aparição sempre coincidia com o horário das refeições. A sarjeta te deixa com aspecto de monstro.

Nas manhãs de domingo, minha mãe entrava no quarto, e jogava o caderno de empregos em cima de mim, com alguns anúncios circulados. Toda segunda, eu ia bater em alguma porta. Certa feita, fui parar num escritório de um prédio decadente do Centro. Me deixaram aguardando por uma hora na recepção. O telefone tocava a cada minuto. A secretária não passava nenhuma informação sobre a vaga de emprego, apenas agendava a entrevista. Ela errava a pronúncia de algumas palavras, e parecia se arrumar no limite de suas possibilidades. Dava a impressão de se segurar àquele emprego com todas as suas forças. Principalmente, com a força do ódio. Um rapaz de rosto quadrado e pele oleosa, usando um terno meio desgastado, perguntou sobre minhas ambições, e se eu me considerava uma pessoa tímida. No final, revelou que era para vender seguro de vida. A empresa acabara de inaugurar um plano para pessoas de baixa renda. “Seu bairro é um ótimo lugar pra você começar”. Não pediram minha carteira de trabalho, eu ganharia comissão por venda. E havia uma meta. Se fosse alcançada, a comissão seria integral. Se não, pagariam uma pequena fração equivalente ao número de seguros vendidos.

Descobri que meus vizinhos se dividiam basicamente em três grupos:

1) os que se julgavam imortais;

2) os que não tinham tempo para pensar na morte;

3) os que carregavam a certeza de já terem morrido.

ANÚNCIO

Não voltei ao escritório nem para devolver o material.

*

Certo domingo, fui acordado com a frase “agora você sai dessa inércia”. A vaga era para recepcionista num hotel da rua Ruy Barbosa. Minha mãe disse que o gerente era amigo dela. Bastava falar em seu nome, e eu estaria contratado. Ao chegar, procurei o Sr. Lourenço, mas ele não se encontrava no local. “Você veio atrás da vaga de emprego?” Mal confirmei, e o rapaz da recepção jogou um trambolho na minha frente. Uma máquina de escrever arcaica, talvez a mesma usada por Jorge Amado para redigir O país do carnaval. Eu não fiz curso de datilografia, mas catava milho com destreza. As letras não apareciam. Era preciso enfiar o dedo com violência. Eu tinha acabado de preencher – com muito custo – meu nome completo, quando Sr. Lourenço se aproximou para saber o que eu queria falar com ele. Minha saudosa genitora tinha a mania de achar que gozava de enorme prestígio junto às pessoas. Eu havia me esquecido disso, e só lembrei quando vi que Sr. Lourenço não se recordava dela de jeito nenhum. Joguei a toalha, e reconheci a vitória daquele dragão metálico cheio de presas alfabéticas. Saí de fininho, levando a ficha e uma copiosa vergonha comigo.

*

Desta vez, eram vinte vagas. Meu amigo Jailton também se animou. Chegamos antes das oito, e já havia uma fila imensa. Escola de idiomas. Os mauricinhos da Pituba estranharam aquela aglomeração em sua rua. Um deles disse: “pelas caras, devem estar distribuindo cestas básicas”. Eu não passava fome, não sei as outras pessoas ali. Mas também era raro o dia em que eu enchia a barriga. Ficamos sabendo que entravam de quatro em quatro na sala, e os próprios concorrentes se entrevistavam mutuamente. Combinei com Jailton de sentarmos um de frente para o outro. Ensaiamos perguntas e respostas. Passamos o texto várias vezes. Fizemos muito bem nosso papel. Parecíamos acadêmicos num congresso importante. Saímos de lá com a certeza de que havíamos impressionado o pessoal da seleção. Nunca fomos chamados.

Marcus Borgón é escritor, colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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