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Motoboys: Filhos do asfalto nas artérias da exclusão

Leonardo Campos

A profissão de motoboy é um tema que propõe debates desde os anos 1990 e ainda hoje funciona como um tema bastante conectado com o que chamamos de atualidades. A sua função nas artérias que interligam os grandes e pequenos centros urbanos ao redor do Brasil permitem reflexões sobre educação para o trânsito, saúde pública, desigualdade social, bem como a uberização dos serviços, um tópico contemporâneo sobre as relações de trabalho no mundo atual, tangencial com os pontos debatidos pela ONU para a sua Agenda 2030, documento que tem como propósito, trazer melhorias como meta para o estabelecimento de ambientes de atuação mais justo para todos aqueles que exercem as suas profissões no cotidiano. Há mais questões para levantamento, sendo estas algumas das que consegui elencar agora, enquanto escrevo sobre Motoboys: Filhos do Asfalto nas Artérias da Exclusão, livro da pesquisadora Silvana de Andrade Barbaric, mestre em História e Gestora da Companhia de Tráfego de São Paulo, escritora que possui algumas publicações sobre o tema, sendo este material um de seus destaques, por sinal, leitura que empolga e faz o leitor torna-se um acompanhante voraz de sua jornada analítica que abrange um panorâmico cenário histórico, antes de chegar ao contemporâneo e delinear a atuação do motoboy, figura estereotipada pela sociedade, parte integrante dos meandros da desigualdade proporcionada pelo capitalismo.

Publicado em 2016, Motoboys: Filhos do Asfalto nas Artérias da Exclusão traz em sua estrutura física uma capa atraente e conectada com a temática das reflexões da autora, trabalho de Carolyn Dourado, parte integrante do projeto gráfico de Bruno Balota, responsáveis por distribuir os conteúdos complexos numa diagramação simples, mas organizada para o leitor que atravessa as 180 páginas de escrita fluente da autora, com pequenos erros de revisão na digitação, nada que atrapalhe a empreitada de aprendizagem ao virar de cada página, em especial, do primeiro e mais extenso capítulo, uma aula de História incrivelmente densa, mas empolgante. Silvana de Andrade cita Baudelaire, associa os seus temas com música e para nós, professores, mapeia uma série de referências para que possamos organizar aulas, palestras, debates e conteúdos para redes sociais que contemplem a temática da educação para o trânsito, o foco desta crítica ao livro, a motivação para adquiri-lo em pesquisas realizadas sobre a palavra-chave “trânsito”.

No desenvolvimento de Os Trabalhadores do Canto da Rua, capítulo de abertura, o texto filosofa sobre o conceito de rua, um espaço público de circulação múltipla. Relaciona com o poema Os Olhos dos Pobres, de Baudelaire, além de traçar uma análise minuciosa e dinâmica da maneira como o território brasileiro começou a elaborar os desenhos das grandes cidades, em especial, São Paulo, objeto do trabalho da pesquisadora. Ineficácia do transporte público, o mapeamento do que seria centro e do que se tornaria periferia, o surgimento do metrô e suas primeiras linhas, a transformação das relações econômicas e a presença dos motoboys como figuras essenciais para os avanços em diversas frentes destes relacionamentos que escancaram a desigualdade de nossa nação desde sempre. Mesmo funcionais e importantes para o atendimento das necessidades de grandes empresas, os profissionais em questão sempre estiveram longe da associação de sua função com o ideal de trabalho digno.

Charges que ironizam a uberização do profissional motoboy contemporâneo

Em A Construção da Centralidade na Centralidade do Trabalho, o livro foca nos problemas da falta de regulamentação desta profissão e analisa a questão da formação de identidade destes jovens que se entregam aos riscos e pressões no epicentro e nas beiras da agitada mobilidade urbana paulista contemporânea. Comparações entre o uso de motocicleta e automóveis, a fabricação de motos e a publicidade em torno deste modal como representação da liberdade, bem como a informalidade como elemento basilar da profissão: eis os principais pontos deste ótimo capítulo, mais curto que o anterior, mas não menos interessante e embasado. A autora fornece dados estatísticos, trechos de depoimentos, mesclando com teorias econômicas para elucidar os motivos que nos permitem interpretar a profissão de motoboy como uma das mais arriscadas e injustiçadas do mundo contemporâneo, haja vista a sua importância para a dinâmica das relações que vivenciamos cotidianamente. É o motoboy que nos entrega o botijão de gás, a encomenda tão esperada, a pizza naquele dia que desejamos não cozinhar, as flores do aniversário de casamento, namoro ou noivado, até mesmo nos tira de um engarrafamento para chegarmos dentro do prazo quando temos um compromisso inadiável.

No terceiro capítulo, São Paulo: Cenário da Velocidade, temos a presença de gráficos elucidativos e trechos de depoimentos dos motoboys entrevistados pela autora, numa passagem que explicita mais detalhes sobre as reformas urbanas e desenhos de uma cidade que parece ser um cenário desvantajoso para as travessias destes personagens da mobilidade. Interessante observar que mesmo retratando a capital paulista, o texto permite associações com qualquer cidade brasileira movimentada na atualidade. Silvana Andrade explica que não foi apenas o governo o responsável pela criação de um espaço social caótico, mas também as pessoas embriagadas pela modernização e progresso, desde os primeiros anos do século XX. Ela reflete sobre a formação das periferias e o surgimento dos cortiços. A construção da identidade dos motoboys também é delineada, ora como imagem da praticidade de nosso cotidiano, ora como figura perigosa que representa, de maneira estereotipada, o crime, o roubo, o perigo.

A autora conclui resumindo os principais pontos do livro e reflete sobre o desenvolvimento das relações comerciais em nossa sociedade, cada vez mais frenética e necessitada da circulação intensa de mercadorias. O motoboy, parte integrante do esquema de informalidade que rejeita a sua integridade e o coloca num cenário de vulnerabilidade, é a peça chave desta movimentação. Pelas tais artérias que conectam as cidades, isto é, as ruas, travessas, vielas, dentre outros espaços de circulação urbana, tais profissionais colocam as suas vidas em risco para o alcance de metas que o deixem diante do mínimo digno a qualquer ser humano. Alimentação, pequenos momentos de lazer, dar conta dos débitos, etc. Os responsáveis pela fluidez de mercadorias no âmbito da mobilidade contemporânea estão sempre expostos aos riscos de invalidez e morte diante dos sinistros de trânsito, bem como mergulhados num projeto perverso de regulamentação que muitas vezes inviabiliza as suas chances de ascensão social. Ser motoboy é um caminho para muitos jovens que se deparam com as parcas oportunidades, oriundos de um meio onde a sobrevivência é dura e impiedosa. Conscientes da desigualdade, eles optam por ser este talvez um dos únicos caminhos para uma atividade que possa gerar renda. Quando dizem que “todo mundo cai algum dia”, trecho comum nos relatos dos entrevistados pela autora, estes jovens demonstram também a consciência diante dos riscos diante da atividade perpetuada cotidianamente, enraizada em nosso sistema por meio de um processo de terceirização cada vez mais precário, num desdobramento de desigualdades que parece não encontrar fim.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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