Bahia Pra Você

Seremos história?

Professor Leonardo Campos

O nosso ecossistema encontra-se colapsado. Tantas décadas de atividade industrial, queimadas, dentre outras ações humanos, tem acelerado o processo de destruição muito preocupante. Se no presente, estamos diante do caos, no futuro, as coisas serão ainda mais desastrosas. Essa é a previsão que o documentário ‘Seremos História?’ faz ao longo de seus 96 minutos de explicações e exposição de propostas para salvarmos o planeta Terra da calamidade. Em sua abertura, o ator Leonardo DiCaprio, aqui atuante como produtor e ativista de questões do meio ambiente, conta que quando criança, uma pintura renascentista se tornou referência em sua forma de ver e pensar o mundo. Segundo o relato, o seu pai, ao colocar O Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, como painel que integrava a decoração de seu quarto, permitiu que a temática ecológica, alegoricamente retratada na obra de arte em questão, estivesse conectada ao garoto que um dia iria crescer, prosperar diante de todos e usar o seu poder de persuasão na mídia e nas redes sociais para incentivar as pessoas a cuidarem melhor do planeta que lhes serve de abrigo.

temos três representações do mundo: o primeiro quadro do painel traz os humanos numa relação harmoniosa com o meio ambiente

 

Na pintura que serve como ponto de partida, temos três representações do mundo: o primeiro quadro do painel traz os humanos numa relação harmoniosa com o meio ambiente, diferente da perspectiva posterior, da imagem central, cheia de momentos de irreverência, luxúria e ações destrutivas, finalizado com o castigo e a decadência de um mundo que anteriormente apresentava um visual harmonioso e paradisíaco. Sabemos que algo nesta perspectiva traz um arsenal retórico bíblico, no entanto, o discurso alegórico proposto pelo documentário escolhe usar a imagem apenas como ilustração, sem adentrar necessariamente em questões religiosas para estabelecer o seu discurso. O que sabemos aqui é o seguinte: o resultado do terceiro painel, muito longe de ser um castigo divino, é ressonância da própria ação humana, diante do livre arbítrio ao desmatar, queimar, extinguir espécies, poluir oceanos, etc. Se antes éramos habitantes de um planeta edênico, passamos a explorar demasiadamente os nossos recursos e agora estamos fadados ao inferno na terra. Essa é a lição de ‘Seremos História?’

O principal tema do documentário é a preocupante mudança climática que danifica todo o nosso meio ambiente. As motivações se associam com as constantes atividades antrópicas. Com isso, temos secas severas, inundações, furacões. Queremos consumir tudo e de todas as formas possíveis e quase nunca pensamos numa palavra-chave básica para qualquer pessoa interessada em questões ambientais: a sazonalidade. No documentário, o discurso proposto pelos realizadores tem um tom apocalíptico, tal como a maioria das produções do segmento, mas isso não é algo que deponha contra os seus aparatos estéticos, tampouco prejudique a sobriedade do discurso que reforça a importância não apenas das grandes empresas, mas também a sociedade civil, nós, seres humanos que consumimos os excessos que as indústrias nos ofertam, bem como descuidamos do lixo em sua coleta seletiva, da carne produzida pela pecuária que devasta imensas áreas verdes e emite gases nocivos na atmosfera.

Há um tom sentimentalista no desenvolvimento do documentário, haja vista a relação pessoal dos envolvidos com a temática, mas há preocupações econômicas também, parte deste jogo perigoso. Um ponto importante e que deve ser ressaltado para os descrentes, em especial, é a constatação de que no futuro, por sinal, próximo, não teremos como produzir os bens que servem de veiculação das práticas industriais da nossa atual fase do capitalismo. Com as crises que se estabelecerão, não teremos um metro quadrado sequer de terreno fértil para desenvolver as atividades que retornam financeiramente aos que no momento, não se importam com as questões do meio ambiente, pois como já ouvi de determinados colegas e alunos, “quando o mundo estiver nessa fase caótica, eu já estarei morto”. Não sei bem como funciona a mentalidade destas pessoas, mas se já tivessem percebido que tal como aponta o documentário, estamos no segundo quadro do painel de Bosch, talvez a linha de pensamento e a perspectiva de ação fosse outra, tamanha a gravidade da questão, emergencial e que pede posicionamento imediato de todos nós, antes que adentremos num declínio mais profundo, sem chances de recuperação.

Dirigido por Fisher Stevens, Seremos História foi roteirizado por Mark Monroe e traz depoimentos de Barack Obama, Papa Francisco, John Kerry, Bill Clinton, dentre outros participantes, pesquisadores da área ou interessados na temática. Com direção de fotografia de Antonio Rossi, adornada pelos efeitos visuais da dupla formada por Tyler Keith e Matthew Freidell, a produção traz também muitas imagens de arquivos, justapostas aos relatos da equipe de produção que acompanha Leonardo DiCaprio em várias empreitadas ecológicas ao redor do planeta, não apenas no cenário do meio ambiente preocupante dos Estados Unidos. Nomeado pela ONU, em 2014, como representante das alterações climáticas mundiais, o ator criticado pela mídia simpática ao discurso extremista de direita segue o seu fluxo ainda hoje, retomando sempre que pode, debates sobre a situação do nosso planeta, face ao desenvolvimento acelerado da humanidade que muito consome, mas não permite que a natureza possa repor as suas “fontes de energia”. DiCaprio diz que como ator, representa constantemente muitos problemas fictícios. Aqui, no entanto, a sua atuação está direcionada aos conflitos da vida real, também intensos e perigosos.

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Dentre os pontos destacados, o documentário delineia que a pecuária produz muito metano, mais que a produção de arroz, cenoura e batata. Os incêndios causados pela ação humana liberam altas doses de carbono, algo que colabora com o efeito estufa. A destruição de florestas tropicais, devastadas para extração do óleo de palma. São muitos os problemas, refletidos numa abordagem que reforça constantemente o fato de “a ciência ser certa e o futuro não”. Em sua peregrinação mundo afora, DiCaprio fala sobre as mudanças climáticas durante as gravações de O Regresso, passa pela China, Ártico e Índia, trazendo sempre o ponto de vista de outras culturas no que diz respeito os assuntos abordados. Em linhas gerais, destaca que diante das temíveis alterações climáticas do meio ambiente, teremos de lidar com a acidificação dos oceanos, o degelo e a exploração do ártico, algo que analisado hoje, pode trazer outras pandemias, talvez piores que o nosso cenário pós-covid. Ademais, destaca o futuro submerso de Miami, a elevação dos mares, além das ondas de calor, tempestades, secas ainda mais longas, escassez de água potável, dentre outros problemas que podem nos transformar em ilustrações para a história do futuro, contadas por não sabemos quem, exatamente, haja vista as poucas chances de manutenção dos seres humanos na face da Terra daqui há alguns anos.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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