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Manual de pequenos estragos

curva modal. Mesmo que os temas abordados fossem alheios ao seu cotidiano. Como os relatos daquela menina tragada pelas drogas e

Marcus Borgón – Escritor

Havia na juventude do meu tempo uma tendência gregária. Viver em busca de entrosamento, de ser acolhido pela turma. Alguns códigos podiam te afastar ou te aproximar do grupo. Às vezes, uma peça de vestuário, alguma gíria. Percebia-se um certo pânico geral de se sentir cafona ou excluído.

Na minha adolescência, por exemplo, a familiaridade com alguns livros te colocava no pico da curva modal. Mesmo que os temas abordados fossem alheios ao seu cotidiano. Como os relatos daquela menina tragada pelas drogas e pelo submundo caótico de uma Berlim cinzenta e hostil. Com treze anos, a droga mais nociva que eu e meus amigos consumíamos era o Baré Cola, no balcão do depósito de bebidas, após o futebol no campinho. Eu já havia banido da cabeça o engodo de que estranhos ofereciam bala na porta das escolas. Mas ainda mantinha um discreto medo dos ciganos. O mundo imaginário era mais intrigante do que o real.

Pouco depois, as conversas passaram a girar em torno das memórias de um rapaz que mergulhou de cabeça contra as pedras. Embora ele contasse histórias sobre jovens comuns, tudo aquilo me parecia remoto e inatingível. Como qualquer enredo de realismo fantástico do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Pirlimpimpim, e nada acontecia. Uma amiga me falou que o livro deixava uma mensagem de “perseverança”. Eu desconhecia esta palavra. Não sabia o que era perseverar. Mas descobri que era exatamente o que eu fazia na escola, ano após ano. O jovem Mário passava muito tempo olhando para o teto branco do hospital, completamente imóvel. Eu sofria de um outro imobilismo – exceto na hora de jogar bola – e costumava também passar muito tempo olhando para o teto do quarto. Quase sempre ao som de alguma banda de rock nacional. Ultraje, Paralamas. Camisa de Vênus. Aliás, a liberdade sexual daqueles personagens me fazia pensar como era ainda mais interessante o universo em que gravitavam.

O anseio por uma vida nababesca levou um pastor de ovelhas – de outro célebre livro da época – a vislumbrar um tesouro sob as pirâmides do Egito. Um lugar mágico e bonito, bem distante da minha vida comezinha, como de costume. Eu achei sensacional a descoberta de que a riqueza tão procurada por ele, mundo afora, sempre esteve ali onde morava. Uma parábola banal, mas que atingiu em cheio o peito daquele garoto de rasa ilustração. Por pouco tempo, é verdade. A minha realidade logo me mostraria que era impossível existir alguma fortuna escondida naquele conjunto com mais de trezentos prédios amontoados. Pela tevê, ouvíamos falar de um baú que continha a felicidade. Um carnê de prestações quase infinitas, com o qual se comprava mercadorias a juros infames.

Com o passar do tempo – e de outros títulos pelas minhas mãos – estas narrativas perderam espaço em minha memória afetiva, ao contrário de músicas e filmes daquele período de formação. O receio de sucumbir ao exílio social, me impulsionou para a leitura. Hoje, o papel se inverteu: vou em busca do isolamento para poder me dedicar aos livros. E a leitura retroalimenta o desejo de permanecer no eremitério.

Estes livros, apesar de parecerem mera evocação do passado e não figurarem no meu panteão literário, traziam em seu bojo achados proféticos. Eles me apontaram caminhos e acontecimentos futuros, sem que eu percebesse de imediato. Como se tivessem lido a minha mão: a prescrição continuada, e cada vez maior, de drogas; a prostituição de alguns valores em troca da sobrevivência; o sentimento de que os anos pretéritos continuarão mais felizes que os vindouros; e a permanente escavação interior à procura de alguma preciosidade.

ANÚNCIO
Marcus Borgón é escritor, colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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