Bahia Pra Você

Manda nudes! A intimidade na era dos aplicativos

Professor Leonardo Campos

Um dia desses, lá em 2017, durante uma travessia irritante por um engarrafamento em Salvador, me detive a um diálogo entre duas senhoras, provavelmente evangélicas. Elas estavam incomodadas por conta do uso pouco limitado do celular por parte dos jovens que fazem parte de seus respectivos círculos familiares. Uma reclamava do neto, a outra da sobrinha. A conversa foi se tornando menos divertida e mais complexa quando elas deixaram de falar sobre a louça deixada na pia, a casa sem varrer e até mesmo as atividades escolares colocadas para escanteio. Uma revelação no mínimo curiosa se estabeleceu. Uma delas dizia, em meio ao diálogo, que “o pior foi que a menina ficou enviando foto de calcinha para o colega da escola e na semana seguinte ele tinha espalhado para todo mundo”.

Fonte: infográfico do site Medium

Num tom de julgamento, a tia afirmou: “ficou bonito foi pra ela, bem pouco, quem manda confiar assim, agora vai ficar com fama de vagabunda na escola”. A outra, assustada, reforçou: “é, minha amiga, esses negócios de Facebook e Whatsapp vieram para roubar, matar e destruir”. Ao chegar em casa, a minha primeira reação foi transformar o relato num ponto de partida para reflexão escrita, dividida com vocês, caros leitores, e atualizada para o nosso contexto. Ser professor é lidar constantemente não apenas com planejamento de aula, avaliação de seminário e projeto pedagógico. Somos uma espécie de analistas do comportamento humano, e, ao passo que um diálogo desses se estabelece bem diante dos nossos ouvidos, quase impossível não se identificar com os fatos, colocando-se como testemunha de outras situações semelhantes, que acontecem diariamente com nossos jovens: alunos, sobrinhos, netos, filhos, irmãos etc.

Com a popularização dos smartphones e o surgimento da tentos aplicativos e redes sociais, as nossas vidas estão cada vez mais interligadas. É o compartilhamento de localização, associado à facilitadora distribuição quase sem limites de arquivos, bem como troca de áudios que nos poupa ligações e digitação em chat, os vídeos educativos ou informativos, além da digitalização de documentos que tornam práticas as dinâmicas comunicacionais na vida cotidiana. Há, no entanto, diante deste mar de possibilidades, alguns infortúnios, afinal, com o crescimento do ciberbullying, dos crimes virtuais e da banalização da informação, a realidade nos mostra que as desvantagens também fazem parte do processo, principalmente pelo fato de lidarmos com o fator humano diante de tatas vantagens, algo debatido em nosso texto sobre o documentário O Dilema das Redes, tema da reflexão sobre a busca da fama, publicada anteriormente. O que deveria ser mágico acaba se tornando uma maldição. Não pelos aplicativos, mas por causa de seus usuários.

O compartilhamento de nudes e a prática do sexting, algo que na teoria deveria ser prazeroso ou produto da intimidade entre duas pessoas, acabou se tornando um dos maiores problemas ligados ao desvio de conduta na internet. Casos de suicídio, reputação rasurada e relacionamentos incinerados são cada vez mais comuns na era da “reprodutibilidade de imagens íntimas”. Em 2021, creio que seja redundante definir o que é um nude, mas vamos nessa: sabe aquela foto que o namorado pede para a namorada ou namorado enviar pelo WhatsApp? Sensual, bonitinha, para ele ver antes de dormir, tendo em mira acalmar os seus ânimos? Pois é. Isso é nude. Enviar foto nu ou seminu através de meios eletrônicos: e-mails, aplicativos, redes sociais e afins. Apesar do tema ser polêmico, se tornou cada vez mais comum.

As imagens destes corpos nus se espalham como um rizoma pelas redes “tradicionais” (Facebook, Instagram, Snapchat, Tumbrl, Whatsapp) e “específicas” para sexo, namoro e encontros (Tinder, Scruff, Grindr). Consideradas como imagens comunicacionais de desejos, os nudes são tidos como erotizações performáticas do cotidiano. É uma apresentação repleta de sedução, em alguns casos, veladas, noutras, com corpos seminus. Quem nos ajuda a entender esse fenômeno é o pesquisador Eduardo Bianchi, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, ao apontar que “o prazer do nude depende do reconhecimento do outro, daquele que sente desejo e atração”. Em seu artigo “Manda nudes: comunicação imagética dos corpos nus”, Bianchi alega que os nudes são visualidades fetichistas do imaginário. “A imagem do nude comunica pela erotização e sexualização do corpo para a exposição dos desejos sexuais, taras e fantasias, sem necessariamente ter ligação com a prática sexual”.

Diante do exposto, o que a reflexão de Bianchi traz é a ligação do nude ao lúdico, ao onírico, pois como define o especialista, “o corpo que se expõe em uma rede social busca reconhecimento”, assim, colocando-se à prova do outro, há uma espécie de performance narcisista que morreria em si se não fosse pelo olhar de aprovação ou reprovação do outro. No caso dos nudes, na maioria das vezes, são registrados para enviar a alguém, tendo em mira conquistar o alvo: uma relação sexual avistada, um namorado ou namorada e seus fetiches, bem como seduzir o receptor através de um jogo erótico que só pode ser compreendido dentro da dinâmica de cada caso, haja vista a complexidade e a especificidade de cada situação. O que pretendo dizer é que dificilmente um nude é realizado para ficar guardado na memória do celular. É quase certo realiza-lo para envio. E neste ponto habita o grande problema: quem manda nude deve estar ciente que sua imagem, mesmo que enviada para apenas um destinatário, pode viralizar na internet e ser visualizada por muitos outros. É preciso pensar: eu me importo com isso?

Compilação da internet sobre Nudes e Imagens de Rodolfo, do BBB 21

Numa sociedade em que a nudez e o sexo, apesar de banalizados na sociedade do espetáculo, ainda são tabus, aqueles que curtem atuar como modelos precisam estar atentos para as consequências. Junto com o problema dos nudes vem a questão do sexting: sex (sexo) + ting (sufixo de texting), termo que designa o envio de mensagens de texto, fotos e vídeos sexualmente explícitos pelo celular e outros meios eletrônicos. Com a convergência dos aparatos tecnológicos, hoje consultamos e-mails, redes sociais e demais aplicativos pelos smartphones, por isso, tornou-se mais comum associar este tipo de assunto com os aparelhos celulares. Apesar do sexting ter relação com mensagens de texto, o nome manteve-se para a prática do envio de conteúdo erótico em outras linguagens.

Ao jogar o tema na internet, a realidade é assustadora, principalmente quando relacionamos os assuntos com os jovens. Uma matéria indexada ao Google em 2017, época de esboço da primeira versão desse texto, apontava que o “Sexting virou mania entre adolescentes de 13 a 15 anos”. Em um site direcionado aos jovens Testemunhas de Jeová, um texto inicialmente elucidativo sobre o assunto aponta que as pessoas que compartilham este tipo de material acreditam que estão “ganhando um troféu”. O texto, entretanto, se perde mais adiante quando lista as penas que precisam ser submetidas para os realizadores de tal atitude, num círculo de culpabilidade que mais atrapalha que ajuda um jovem desnorteado em busca de informação.

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Fonte: infográfico do site Medium

Entre os relatos dos jovens que praticam o sexting, e por sua vez, enviam nudes, está a seguinte afirmação de um rapaz: “você começa trocando mensagens e quando vai ver, já está trocando fotos picantes”. Uma garota alega que “é uma forma de fazer sexo seguro, afinal, não tem como ficar grávida nem pegar uma DST”. Como assim? Será que estes jovens estão sendo bem informados? Muito preocupante. De acordo com os meios de comunicação hegemônicos, o número de vítimas de nudes vazadas no Brasil caiu em 2016. Ancorada em uma pesquisa da ONG Safernet Brasil, órgão responsável pela monitoração de crimes e violações dos Direitos Humanos na internet, em parceria com o Ministério Público e a Polícia Federal, a reportagem de Helton Guimarães Gomes aponta que “em 2016 foram 301 casos, 6,5% a menos que os 322 registrados em 2015”.

Podemos comemorar? Ainda não, mas quem sabe os resultados não mudam mais adiante? Entre 2013 e 2014 os casos dobraram, se há uma reversão é possível pensar em uma mudança. A ONG levantou os dados e publicou no dia 07 de fevereiro, Dia Internacional da Internet Segura, data celebrada em mais de 100 países. Segundo Juliana Cunha, da Safernet, “é difícil conseguir detectar causas para a mudança, mas é possível que a legislação, o Marco Civil da Internet, possa ter promovido a redução”. O repórter Hélio Gomes ainda reforça que “o fato de ter como responsabilizar empresas faz com que elas ofereçam ferramentas para remoção de imagens”. O Facebook e o Google já possuem esta opção. No entanto, ainda é muito pouco. No ranking das 05 maiores violações virtuais no Brasil, a exposição íntima (sexting) está em segundo lugar (301 casos), perdendo apenas para as ofensas e o ciberbullying (321 casos).

Nesta mesma época de realização do texto, a mídia trouxe à tona uma polêmica envolvendo o vazamento de nudes de mulheres das Forças Armadas dos EUA. A denúncia dizia que fuzileiros navais utilizavam o Facebook para compartilhamento de fotos íntimas e a questão ganhou proporções extensas, desencadeando uma investigação na Marinha. Segundo reportagem da BBC Brasil, “algumas vezes, eles postam primeiro fotos das mulheres vestidas, retiradas de suas páginas nas redes sociais”. Logo em seguida, estes homens perguntam se algum membro possui nudes destas mulheres, material que eles chamam de “vitória”. Em alguns instantes, surgem as fotos postadas, sem consentimento e às vezes retiradas sem que as vítimas saibam.  A denúncia inicial referia-se a um grupo fechado do Facebook, intitulado Marines United. Antes do encerramento do grupo, por conta da polêmica e dos problemas que surgiriam do processo, havia cerca de 30 mil membros.

Fonte: infográfico do site Medium

Tais acontecimentos nos mostram que a cultura do nudes alcançou uma banalização tão grande que muita gente, mesmo diante dos problemas que podem surgir diante da exposição, se deixa levar pela paixão, pelo calor da hora, sem pensar nas consequências. Cabe ressaltar que a cultura dos nudes não é preocupação apenas dos jovens. Os adultos estão cada vez mais suscetíveis. Stênio Garcia, no auge dos seus 80 anos, teve imagens vazadas na internet, tal como a atriz Carolina Dieckman, hackeada por um técnico de informática. A polêmica foi tão grande que a sua briga na justiça deu nome a uma lei que prevê reclusão de seis meses a dois anos para quem for detido por conta de compartilhamento de fotos íntimas alheias. Aos desavisados, uma dica: fiquem atentos ao compartilhamento de suas mensagens e na dúvida, não envie fotos íntimas, nem áudios comprometedores.

No artigo 218 do nosso Código Penal, há previsão de penalidade para quem pratica o Sexting, tal como as ramificações porn revenge e sextortion, isto é, o compartilhamento de conteúdo explícito como forma de vingança contra um parceiro e as ameaças por obtenção de tal conteúdo, algo considerado um “estupro virtual”, respectivamente. Com a pandemia da covid-19 que nos acompanha desde os primeiros meses de 2020, a prática do envio de nudes, segundo especialistas em reportagens divulgadas na mídia, tem crescido vertiginosamente. É um preambulo de parte do que será o que se acredita ser o futuro dos relacionamentos logo mais. Aos leitores, um aviso: aquele amor que hoje é o “médico”, amanhã pode se revelar o “monstro”. Todo cuidado é pouco. Numa cultura onde a nudez se banalizou, mas ainda é tabu, preserve bem da sua imagem. Principalmente quando se é mulher, haja vista o machismo e a opressão que agridem as carreiras e reputações que não atingem vítimas masculinas da mesma maneira.

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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