Entrevista Exclusiva | Carla Melo
Em tempos de escuridão, haja luz, câmera e ação. Após duas semanas relembrando o São João com figuras como a cantora de forró Jeanne Lima e o mestre Adelmário Coelho, chegou a vez de entrar no mundo da sétima arte, o cinema. E desta vez, o Bahia Pra Você bateu um papo com Lula Oliveira. O soteropolitano de corpo e alma, cineasta de paixão e escritor de coração.
Formado em comunicação pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), o cineasta Lula Oliveira, de 49 anos, já chegou ao mundo com a sensação de pertencimento a Salvador. Passou pelos bairros da Saúde, 2 de julho, Rio Vermelho, Stiep e Imbuí, onde passou a maior parte da sua infância e adolescência.
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Imagem das filmagens do filme “A Matriarca”. Foto: Gabriela Ito
“Minha história está muito imbricada com a vida em Salvador. Eu tenho uma relação de muito pertencimento, e é aqui o lugar realmente onde eu consigo viver de uma forma mais feliz. Já morei em Brasília, já morei em Luanda, já saí bastante da cidade para percorrer outros caminhos, mas é aqui que eu me sinto em casa, literalmente em casa, e é por onde eu vivo com uma felicidade muito grande em respirar o ar da cidade de Salvador.”
Ao longo de mais de 20 anos de carreira no mundo cinematográfico, Lula carrega grandes produções nas costas. O cineasta produziu e participou de curtas e longa-metragens em parcerias artísticas com diversos diretores de referência como os cineastas Pola Ribeiro, Edgar Navarro, José Araripe e Lázaro Faria.
Ele foi roteirista e diretor de três filmes de ficção, sendo o primeiro filme trabalhado no campo da direção, “Horizonte Vertical”, um curta-metragem filmado no início dos anos 2000, tendo no elenco os atores Jackson Costa e Nadja Turenko. “Sou muito grato pela experiência que vivi com estes dois atores”
Imagem das filmagens do filme “A Matriarca”. Foto: Gabriela Ito
“Um outro filme que eu também tenho destaque por dentro deste processo, o curta metragem “Na Terra do Sol”, filmado em 2005, em Canudos, retratando a Guerra de Canudos a partir de uma inspiração do livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que eu também trabalhei com atores incríveis, como Carlos Petrovich, Psit Mota, Rose Lima, Agnaldo Lopes e pessoas da região de Bendegó e Canudos, que foram importantes para compor o elenco.
“A Matriarca é o meu primeiro longa de ficção, e nesse ínterim dos três filmes dos quais tenho relação direta com o processo de direção na ficção, eu realizei muitos documentários ao longo desta minha carreira, destacando um que eu tenho maior orgulho de ter feito sobre os Zambiapunga, que é uma manifestação folclórica e cultural da região do Baixo Sul e entre outros documentários, vídeos experimentais do final da década de 90. Além disso, trabalhei com outras obras de cineastas na Bahia, como assistente de direção, que participei de filmes como “Eu Me Lembro”, “Jardim das Folhas Sagradas”, “Cidade das Mulheres”. Também fui professor de cinema neste período e fiz muitas oficinas de cinema pelo interior da Bahia”
Filmagem do documentário Zambiapunga. Foto: Divulgação
A fonte de inspiração do Lula é muito peculiar. Para ele, basta observar. Mas não é qualquer observação. É simplesmente ter o poder de observar além.
“A minha inspiração vem do poder de observação que nós temos da realidade que nos cerca, que estamos inseridos. A literatura também é uma fonte de inspiração muito grande, mas principalmente a relação com o povo, com a rua, com as pessoas, com as conversas que construímos no dia a dia. Essa observação tem uma característica muito específica quando se trata do pensar o cinema porque são fatos do cotidiano, são histórias que ouvimos das pessoas. Isso me inspira muito: poder enxergar as pessoas além do que vê em suas expressões, no seu estado físico”
Imagem das filmagens do filme “A Matriarca”. Foto: Gabriela Ito
Com a chegada da pandemia, e consequentemente o recolhimento das atividades presenciais, Lula disse que enfrentou o período pandêmico com bastante resignação, diante de uma situação que não havia como mudar, por isso precisou se ressignificar.
“A pandemia foi um período de muito medo, quando a gente está diante de uma doença, de um vírus, que assombrou o mundo, nós vivemos o primeiro sentimento de insegurança e medo muito grande porque não sabíamos como lidar com este inimigo invisível. O setor cultural, como todos os setores, foi impactado gravemente. A cultura teve um agravante diante disso tudo, porque já é um setor que, mesmo sem pandemia, já vive uma situação de muita fragilidade, de muitos desafios de sua atividade poder se realizar e na pandemia isso ficou muito mais complexo e complicado pois o artista trabalha na rua, os filmes são feitos na rua e nós não podíamos trabalhar durante esse período.”
Apesar das dificuldades existentes para a produção durante a pandemia, o cineasta conseguiu produzir obras tanto no mundo do cinema, quanto na literatura, como o livro “A Estrelinha Fujona”, uma história que nasceu há 20 anos de “uma relação de gostar de contar história, sem formalidades que a escrita geralmente tem”. A história, que era contada para a sua filha Clara Lua quando ainda era bebê, hoje pode alcançar a imaginação de outras crianças.
“Eu consegui escrever um livro infantil chamado “A Estrelinha Fujona”, que foi um livro lançado pelo selo Ouricinho, da editora Pinaúna, que entendeu o movimento do livro e a gente conseguiu através da Lei Aldir Blanc recursos para financiar a edição. Eu também realizei ao longo da pandemia um filme chamado “Clausura”, mais um filme que eu realizei de casa, com o celular com a presença de um parceiro, com todos os cuidados que eram necessários. Para não “pirar a cabeça”, a gente resolveu construir esse filme, que tem uma visibilidade razoável dentro da dimensão de festivais que percorreu, como o Festival de Cinema Brasileiro, em Los Angeles.”
Quando perguntado sobre os sonhos que já realizou, Lula é incisivo: “Viver de cinema, já é de uma forma, a realização de um sonho”. Apesar dos percalços existentes no setor cultural, o cineasta acredita que isso só alimenta o desejo de continuar.
“Com todas as dificuldades que fazem parte da nossa realidade, mas são dificuldades desafiadoras que me fazem acreditar muito no que eu faço e a desejar fazer muito mais dentro da área cinematográfica e do audiovisual brasileiro. Meu maior sonho agora é finalizar o filme “A Matriarca” com a qualidade técnica de alto nível de finalização no som e na imagem, e que a história possa chegar nas pessoas de uma forma que traga reflexões e que contribua para uma construção de uma ideia do que se trata o filme sobre a família. Acho que o sonho é terminar aquilo que você começa.”
Imagem das filmagens do filme “A Matriarca”. Foto: Gabriela Ito
Além dos sonhos que circundam o Lula no cinema, há alguns guardados para a literatura. O lançamento do livro “A Estrelinha Fujona” deu um “gás” para o que Lula acredita ser “uma potência literária que de alguma forma adormecia em mim”.
“Eu hoje também sonho com projetos dentro da literatura. Eu tenho vontade de escrever um outro livro infantil que já está aqui manuscrito. Tenho vontade também de escrever um livro sobre política cinematográfica, que está aqui, no campo das ideias. O que se abrir para mim, no campo da literatura é algo que, dentro do possível, eu vou procurar investir.”
Se por um lado Lula vislumbra a cultura cinematográfica como vigorosa, pulsante e extremamente criativa, através de uma “capacidade criativa e de construção de histórias cinematográficas muito potente”, que representa a diversidade cultural do país, por outro, demonstra o lado nocivo que o cinema brasileiro enfrenta.
“Nós temos um cenário devastador diante de políticas que não conseguiram se firmar dentro da gestão desse governo que aí está, consolidando uma construção que vinha sendo desenvolvida ao longo das gestões do governo Lula e depois do governo Dilma, que construíam uma política vigorante de incentivo, de fomento, descentralizado, ou seja, onde todas as regiões tinham uma capacidade, uma oportunidade de realizar projetos através das políticas implementadas pela Agência Nacional de Cinemas (Ancine). Então esse cenário que outrora trazia uma produção pulsante, crescente e vigorante que ganhava cada vez mais espaço no mercado cinematográfico, está vivendo uma fase muito preocupante, diante de uma incredulidade do governo, da importância que a cultura, como um todo, tem para o desenvolvimento de uma nação, e particularmente o cinema teve um impacto muito negativo do fomento dessa produção.”
Imagem das filmagens do filme “A Matriarca”. Foto: Gabriela Ito