Bahia Pra Você

Leonardo e seu livro sobre o cinema de Spike Lee

Leonardo Campos

Na esteira da série de reflexões sobre a linguagem do cinema e seus desdobramentos culturais, sociais e políticos, resgatamos a entrevista do professor e crítico de cinema Leonardo Campos, parte integrante do livro Palavra de Crítico: Introdução ao Cinema de Spike Lee. Realizada pela jornalista Mariana Dias, o material agora atualizado se mostra ainda muito pertinente e faz parte da sequência de divulgação dos próximos livros do escritor, enfileirados por conta da pandemia iniciada em 2020 e ainda com seus desdobramentos. Acompanhe o bate-papo e depois compartilhe, combinado?

Professor Leonardo, em primeiro lugar, uma breve apresentação da série Palavra de Crítico. Spike Lee é o primeiro de quantos cineastas que serão analisados futuramente?

Não faço ideia. A crítica de cinema é um dos exercícios que realizo em paralelo à docência e pesquisa. Já temos um segundo volume, voltado para Woody Allen, cadastrado desde 2018 e com lançamento concomitante ao Spike Lee para dezembro de 2019, modificado para 2020, mas adiado novamente por conta da pandemia iniciada em 2020, ainda em andamento. Penso em outros volumes com Martin Scorsese, Brian De Palma, Quentin Tarantino, John Carpenter e outros cineastas que fazem parte do meu universo de estudo e entretenimento. O volume sobre Wes Craven já está praticamente pronto, devo lançar ainda em 2022. Outros cineastas podem aparecer. Ainda não sei.

O subtítulo deixa claro ser uma leitura introdutória ao universo cinematográfico de Spike Lee. Como ocorreu o processo de seleção dos filmes com maior e menor destaque?

Exatamente. É apenas um feixe de olhares. O meu enquanto crítico e algumas observações de meus convidados, pares da vida acadêmica e crítica. Não contemplei uma análise detida de todos os filmes, mas fiz uma observação panorâmica entre Faça a Coisa Certa e Infiltrado na Klan, pois creio que sejam temas tangentes. Vejo a “Klan” como uma produção que retoma algumas reflexões de Spike Lee em 1989. O critério de seleção se relacionou com duas edições do Especial Consciência Negra do Portal Plano Crítico, realizadas em 2018 e 2019. Em cada ano dediquei uma semana inteira para publicação de textos sobre o cineasta. Logo mais, juntei tudo, organizei o material e o resultado é o livro em questão.

Quando começou a sua relação de cinéfilo e crítico com Spike Lee?

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Eu já me considerava cinéfilo quando tive acesso ao primeiro filme de Spike Lee. Foi em 2006, O Plano Perfeito. Confesso que fui assistir por causa da Jodie Foster, uma de minhas atrizes prediletas. Mas como trabalhava em videolocadora na ocasião, a GPW, a maior do nordeste na época, o pessoal todo comentava e reiterava o nome do diretor constantemente. Não me despertou, até porque não considero O Plano Perfeito como um de seus filmes memoráveis.

Então já que houve contato antes do exercício docente, como Spike Lee saiu da crítica cinematográfica e da sua postura cinéfila para ganhar espaço na sala de aula?

Não uso a postura cinéfila nem a crítica dissociada da sala de aula. Para quem é professor e exerce a crítica é uma espécie de combo. Quando conheci mais detidamente o que chamo de “cinema de Spike Lee”, a Universidade Federal da Bahia utilizava filmes na segunda fase do vestibular. Eram questões discursivas que relacionavam narrativas cinematográficas selecionadas com as produções literárias. Era um processo bem interessante. Faça a Coisa Certa esteve na lista durante algum tempo. Utilizei o filme para dar aulas, pois na época eu estava perto de formar e já estagiava em escolas da rede particular em Salvador. Fiz seleção de emprego com uma aula sobre o filme, relacionado aos poemas da coletânea Cadernos Negros.

Então Spike Lee está em toda a sua base…

Sim. Foi um dos cineastas do começo de meu trabalho enquanto professor e crítico de cinema. Escrevi uma análise de Faça a Coisa Certa para um site que até hoje as pessoas digitalizam a tela e me enviam, pois aparece como uma das primeiras opções de busca do Google. Mas é um texto preambular, ainda não tinha a articulação que tenho hoje. Foi um bom começo.

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Por falar em oportunidades, Spike Lee abriu as portas para o cinema independente realizado por outros realizadores negros?

Sim. É um dos tópicos que uso no começo da minha palestra, essa que você acabou de assistir. Nos anos 1980, cineastas negros não tinham a visibilidade no sistema estadunidense de produção. Spike Lee, de certa forma, abriu as portas para diversos novos realizadores. Era a época dos chamados “buddy movies”, aquelas comédias estereotipadas com Eddie Murphy. Houve também o Blaxploitation, retomado em Infiltrado na Klan em algumas passagens em tom de homenagem. Adianto, uma homenagem crítica, pois Spike Lee observa que apesar das chances que os negros tiveram nestes filmes, o olhar ainda era estigmatizado.

Parece que não há muita diferença social entre o universo de Spike Lee entre Faça a Coisa Certa e Infiltrado na Klan.

Confesso que não vejo diferença entre Ronald Reagan e Donald Trump. Há bastante similaridade na política interna e externa de ambos os presidentes. Claro que as coisas mudaram no que diz respeito ao tecido social. Houve grande avanço na representatividade, mas o racismo e a postura fascista continuam com as suas missões de assombrar as pessoas negras ao redor não apenas dos Estados Unidos, mas de todo o mundo. Não estou dizendo que Reagan e Trump são similares em todos os aspectos. Há as suas diferenças, mas negros, pores, imigrantes e demais pessoas consideradas oprimidas pelo rolo compressor de seus sistemas continuam esmagadas pelas propostas que visam apenas expansão econômica e reformulação da postura imperialista.

Mas há um “perrengue” com as mulheres e homossexuais, ao menos foi o que entendi ao longo de sua exposição.

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Sim. Você está falando exatamente das considerações de intelectuais, tais como Bell Hooks e Douglas Kellner. O livro utilizado na exposição, A Cultura da Mídia, voltado aos Estudos Culturais, sempre está presente quando faço alguma análise do cinema de Spike Lee, pois o acho bastante lúcido quando aponta os pontos positivos e as possibilidades pantanosas que o cineasta retrata em suas discussões sobre um tema perigoso. O que Kellner traz é que Spike Lee tece críticas relevantes ao discurso de ódio estadunidense, mas prega isso de maneira que às vezes escorrega nas contradições, algo normal diante da quantidade de temas para contemplação. É complicado.

Um cinema de paradoxos?

Devo dizer que não saio numa cruzada em defesa exclusivista de Spike Lee. Alguns filmes são muito bons, outros medianos, alguns realmente “menores”. Os paradoxos estão presentes na vida de qualquer intelectual. Devemos acusar o cinema de Spike Lee de machista? Talvez, ao menos em seus primeiros anos. A mulher é constantemente presente como uma megera, chata, problemática, histérica. Quando não é assim, surge como objeto sexual dos homens. É um problema a ser corrigido? Sim, creio que isso tenha sido feito ao longo dos anos posteriores ao polêmico lançamento de Faça a Coisa Certa. Não tratar de todos os aspectos não significa que não haja preocupação. Não lembro de nenhum personagem homossexual em seus filmes.

Isso lhe incomoda?

Não, outras pessoas fizeram isso. Então acredito que diante de um tecido social tão complexo, cada um vai fazendo a sua parte e no final das contas o que precisamos é de engajamento de todas as partes. Não ter retratado as mulheres ou homossexuais não significa que o cineasta seja machista ou homofóbico. Douglas Kellner tece críticas, faz uma boa análise das primeiras produções do cineasta, mas acho que hoje o seu texto merecia uma leitura atualizada. É como a carreira de Madonna em seus primeiros momentos. Ele faz uma análise prévia, mas tal como Spike Lee, a artista ainda está viva e cheia de transformações em sua postura.

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Falando em Madonna, ela trabalhou com Spike Lee.

Sim, uma participação bastante breve em Garota 6. Não é uma produção muito relevante na carreira de ambos. Madonna tentou se desafiar na época, mas a sua carreira cinematográfica não decolou como ela havia programado.

Curiosa também a relação entre Spike Lee e Bertold Brecht. 

Ainda é uma relação com o livro de Douglas Kellner. Ele diz que tal como Brecht em alguns momentos, o cinema de Spike Lee abre espaço para reflexões amplas, sem único ponto central. A multiplicidade de sentidos e propostas permite que as pessoas possam interpretar várias coisas, o que amplia o discurso reflexivo de seus filmes, mas também os coloca num terreno perigoso.

O que seria esse terreno perigoso? 

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O final de Faça a Coisa Certa, por exemplo, é uma exposição desse discurso modernista aberto. Assim que os créditos prometem subir, aparece uma citação de Martin Luther King Jr. Quando você pensa que vai acabar ali e que a ideia do cineasta é propor a paz entre os homens e a aceitação das suas respectivas situações diante de um discurso de paz, os créditos nos ofertam uma citação de Malcolm X que fala da necessidade de enfrentar o “inimigo” com violência quando necessário. Qual a posição de Spike Lee? Ele é mais voltado aos ideais de Luther King ou Malcolm X? O filme deixa rastros para as duas possibilidades.

O autor “acusa” Spike Lee de ser simpático ao discurso de Malcolm X?

Sim. Ele diz que apesar de haver alguns traços das ideias de Martin Luther King Jr., o que Spike Lee propõe ao longo de todo o filme é algo mais voltado ao que Malcolm X acreditava como ideal de revolução social.

Crocklyn – Uma família de Pernas pro Ar ficou de fora da seleção.

Somente por questão editorial. Não foi incluso como uma das produções dos especiais realizados na Semana da Consciência Negra de 2018 e 2019. O filme é uma produção bem pessoal de Spike Lee, pois entende-se que em seu enredo há diversas relações com momentos da vida do cineasta. A trilha é comovente, a história é doce. Não é o meu “Spike Lee predileto”, mas está entre algumas de suas produções mais notáveis.

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Pelo que compreendi ao longo de sua fala, Spike Lee insere debates sobre xenofobia até mesmo em filmes que não tratam exclusivamente das questões raciais, como por exemplo, em O Plano Perfeito

Sim, a cena com a questão árabe. Ali é o retrato dos Estados Unidos pós 11 de setembro. Uma era de insegurança, medo e pânico social, desconfiança. Qualquer imigrante oriental era visto como um inimigo em potencial e a mídia tratava isso constantemente. Nós, brasileiros, não ficamos distantes dessas discussões nos jornais que se dizem nacionais.

Desde o período, Spike Lee não tinha feito as pazes de maneira definitiva com a crítica.

De 2006? Sim. Pelo menos conforme o meu olhar de crítico desde a época. As referências ao cineasta vinham sempre do passado. Faça a Coisa Certa, Malcolm X ou Febre na Selva. Crianças Invisíveis não fez o sucesso que prometeu, O Plano Perfeito foi mais um filme de roubo com estratégias inteligentes e os seus documentários foram vistos por quantidade menor de pessoas quando comparado aos exercícios ficcionais.

Infiltrado na Klan trata de um tema ácido e escorregadio com muito humor. Há precedentes na história do cinema?

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Sindicato de Ladrões, de Elia Kazan. Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick… A Montanha dos Sete Abutres, de Billy Wilder… são tantos.

Em determinado momento de sua fala você brincou que Spike Lee poderia ter dirigido o premiado Crash – No Limite. Pode falar mais sobre?

Sim, apenas suposição. Acho que seria um filme bem impactante. Podia correr o risco de pesar muito a mão também, afinal, por se tratar de uma produção com questões raciais, Spike Lee correria o risco de entrar em alguma contradição. Ali foi uma fala bem pontual, apenas uma elucubração. “Crash” retrata não apenas tópicos raciais, mas é um tratado sobre as relações humanas na contemporaneidade. Os vidros dos carros blindados para a violência que nos separa do contato humano diário. O problema diante dos preconceitos, a nossa falta de tato diante do “outro”. Há problemas no filme? Sim, mas isso não impede a produção de ser um discurso poderoso sobre os tópicos que acabei de citar. Eu gosto bastante e sempre que posso, utilizo em meus debates.

E o discurso de Spike Lee ao receber o Oscar por Melhor Roteiro. Adequado?

Muito. Ele foi bastante ético, pois retomou a história de seus ancestrais, falou dos indígenas que tiveram os seus territórios roubados e ceifados pela colonização europeia. Foi uma fala breve, mas brilhante e comovente. Nas redes sociais o assunto ganhou visibilidade e sobrou até para Trump, nome que Spike Lee evita falar. Ele o chama de “agente laranja”.

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Parece até contigo durante a palestra. Não falou o nome de…

Por favor, melhor não mencionar. Evito utilizar até mesmo como citação em meus textos. É uma palavra-chave a ser evitada em meu discurso. Não sei se é coerente, mas não consigo sequer utilizar as palavras “presidente” e “dito cujo” na mesma sentença. É pura vergonha alheia. A sensação é a mesma de Spike Lee com Trump.

Me parece que Trump não gostou nem um pouco e revidou, estou certa?

Sim, ele não utilizou o termo, mas em suma, o que pretendia dizer ali era que Spike Lee se comportava como uma espécie de “racista reverso”, equívoco que muita gente branca utiliza para justificar determinados posicionamentos militantes semelhantes ao do cineasta.

E a “treta” com Green Book, achou coerente?

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Sim, pois tudo depende do local de fala. Assisti ao filme com uma amiga militante e não nos demos conta das questões abordadas por Spike Lee. Ele, tal como a família dos personagens da cinebiografia não gostaram da forma como o negro é retratado. Ainda há algo de subserviente por ali. Confesso que achei o filme emocionante e com uma mensagem realmente muito bonita, mas por detrás desses elementos reluzentes há questões raciais pontuais que pessoas mais envolvidas na discussão percebem e na era das redes sociais, tratam logo de polemizar.

Pantera Negra foi aclamado por Spike Lee. Também considera um avanço?

Considero. Muitas crianças se sentiram aclamadas, pois ao longo da história dos últimos séculos sabemos dos perigosos discursos de representação. Mas ainda é um começo. Há muito trabalho a ser feito. Um dos pontos mais bacanas e que tenho como referência é a pesquisa realizada por Ruth Carter, parceira de Spike Lee em diversos de seus filmes. Ela foi pesquisar trajes em variados pontos do continente africano e onde esteve, buscou autorização dos povos para o seu processo de apropriação cultural. É uma lição para muitos artistas que bebem das fontes alheias sem sequer dar os devidos créditos.

Para finalizar, pode fazer uma súmula do que você define por “O Cinema de Spike Lee”?

É um conjunto de produção sobre resistência, luta contra o sistema opressor, debates acerca da condição das pessoas negras diante de uma sociedade que se expressa por meio do consumo. É um “cinema” voltado para as questões sociais, mas que não deixa de lado os elementos estéticos. Em parceria com Ruth Carter e Terence Blanchard, por exemplo, os figurinos e composições musicais deste cinema são comprovações cabais de uma estética que atende às demandas artísticas do audiovisual. Engajado, Spike Lee é um cineasta que fez história e demonstrou relevância em sua produção que em boa parte, pode ser considerada autoral. O resto vocês podem conferir na leitura das críticas.

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Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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