Bahia Pra Você

Leonardo Campos reflete sobre Cinema e Educação

Leonardo Campos

O cinema é uma arte essencialmente educativa. Pode ser usada em diversas modalidades de ensino e ainda permitir mescla de entretenimento com aprendizagem. Focados nisso, o professor e crítico de cinema Leonardo Campos versa sobre a ficção audiovisual na sala de aula, dando aos leitores alguns direcionamentos em seu mapeamento neste segmento, em prática desde as primeiras incursões docentes, em 2008. O papo cheio de reflexões pertinentes com o jornalista Emerson Miranda foi realizado num dos encontros do projeto Descomplicando Conteúdo da UNIFTC, realizado em 2021. Confira e logo após a leitura, compartilhe, combinado?

Bahia pra você: O cinema na sala de aula é uma proposta defendida com muita garra em sua fala e nas ações designadas para este evento. Na era das redes sociais e séries no streaming, há vez para o cinema enquanto suporte educacional?

Leonardo Campos: O cinema vai mudar e com a pandemia da covid-19, passou por transformações de produção, distribuição e exibição, mas sua possibilidade enquanto conteúdo educacional vai se manter intacta para quem estiver interessado em utilizar as suas narrativas como material para aprender sobre culturas diversas, refletir comportamentos, debater temas específicos, analisar momentos históricos ao longo da evolução da humanidade, etc. Em nossa sociedade multimídia, o cinema é uma das fontes de simulação da realidade. Sempre digo em minhas aulas e formações de professores que podemos usar o cinema para trabalhar qualquer temática/área. Depende muito do interesse do docente em estabelecer as devidas conexões.

BPV: Videoclipes e séries também?

Leonardo Campos: Há, porque quando menciono o cinema, deixo também abranger séries, videoclipes e afins. Se você pegar, por exemplo, o videoclipe American Life, da Madonna, a sua aula de Língua, Literatura, Geografia, História, Língua Estrangeira, Atualidades, dentre tantas outras, ganhará ampla possibilidade de debates. Na produção, enquanto a letra fala sobre imperialismo, imagens de um desfile demonstra as chagas dos conflitos bélicos entre Oriente e Ocidente. A letra, o comportamento, as imagens de arquivo… são muitas as oportunidades de debate, mas tudo dependerá da organização do professor. Numa determinada ocasião, utilizei um episódio da série The Resident, drama médico lançado em 2017, para refletir relacionamentos humanos, numa conexão com o conto O Enfermeiro, de Machado de Assis. Teve exibição, leitura do conto em sala de aula, questões de interpretação, mapa mental e debate. Há muita coisa boa disponível para se trabalhar de maneira engajada, mas para isso, precisamos de professores mais dispostos, de gestores que compreendam e abracem mais ideias como estas, aparentemente “diferenciadas”, mas simples e que deveriam ser o básico na dinâmica da escola.

BPV: Então o professor é o grande responsável por fazer deste recurso um efetivo mecanismo de movimentação de ideias?

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Leonardo Campos: Muito. Sabemos que existe a desmotivação, a carga horária baixa diante das exigências altas, mas se não tentarmos a mínima mudança, prejudicamos a nossa prática cotidiana. É aquela aula monótona e que nos causa dor de estômago e irritabilidade ao ter que levar até o fim, sabe? Sempre digo que precisamos nos motivar não apenas pelos estudantes, mas por todo o conjunto. No caso do cinema, não temos investimento para ficar em casa analisando filmes, produzindo questões, elaborando tópicos temáticos. É uma realidade cruel, pois cada vez mais se pensa na presença de sala de aula, sem levar em consideração o nosso planejamento. Há, no entanto, a formação pessoal, o conhecimento ampliado diante deste investimento, bem como a grande chance de estabelecimento de uma sequência de aulas empolgantes, mais significativas. Todo mundo sai ganhando.

BPV: Em suas formações, você sempre elenca uma série de estratégias que podem fazer o cinema na sala de sua ser uma proposta errônea.

Leonardo Campos: Tive um professor de Literatura na época do Pré-Vestibular que me fez germinar esta ideia antes de adentrar na faculdade. Em algumas de suas aulas terríveis e esquemáticas, o profissional entrava na aula, colocava um filme baseado num romance da literatura brasileira e no final da exibição, desligava tudo e ia embora. Não tinha um texto motivador, um debate, questões para resolução, nada. Simplesmente o filme puro e aleatório. Muitas pessoas gostavam, pois era uma oportunidade de conhecer o conteúdo solicitado na prova do vestibular, sem necessariamente realizar a leitura do livro. Mas era enganoso, pois na tradução do suporte literário para o cinematográfico, chamado de Tradução Intersemiótica no meio acadêmico, sabemos que aquilo lá é fruto de um olhar, uma adaptação realizada dentro doo ponto de vista de determinados realizadores. Dom, de Moacyr Góes, não pode ser uma substituição da leitura de Dom Casmurro, de Machado de Assis. O ideal é uma articulação. Então, o professor que entra, exibe uma narrativa ficcional ou educacional sem a mínima conexão está cometendo um erro terrível e isso pode minar a confiança do estudante, dos coordenadores e até dos pais no cinema como proposta educacional efetiva, além do entretenimento.

BPV: Percebo um grifo constante nesta questão do entretenimento em sua fala.

Leonardo Campos: Sim, porque muitos ainda acham que filme ou série são conteúdos somente para diversão, quando de fato funcionam muito bem quando devidamente articulados. As condições do espaço de exibição, ainda sobre a pergunta anterior, também devem ser as melhores. Projetor funciona bem? Se não, a experiência será tediosa. Há muita claridade? Você, enquanto professor, pode chegar mais cedo na sala de aula para organizar o espaço de maneira mais planejada? Já no ato da exibição, disponibilize um texto motivador para que o estudante já saiba que o conteúdo será parte de uma célula do planejamento da unidade. Assista ao filme antes, para elaborar os pontos de articulação no debate. Tenha convicção do material e saiba responder exatamente como ela irá funcionar em sua sala de aula. No Ensino Médio, por exemplo, uso sempre um filme com tubarões aparentemente banal, intitulado Do Fundo do Mar, de 1999. Visto pelo viés do entretenimento, é apenas uma aventura tensa e divertida. Mas olhado com afinco, discute manipulação de animais para pesquisas científicas, a ética na pesquisa, comportamento humano, além da relação entre seres humanos e natureza, em especial, a busca pela sobrevivência em histórias clássicas da literatura, tais como a Odisseia, de Homero, Moby Dick, de Herman Melville, dentre outros.

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BPV: Com o advento da BNCC, o cinema ganha uma movimentação orgânica nas práticas desejáveis para o que está postulado como direcionamento de ensino?

Leonardo Campos: Tudo depende da articulação do docente. A SOCINE (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual) se manifestou lá em 2016, numa carta aberta ao Ministério da Educação e Ministério da Cultura. No documento, refletiu-se sobre a inserção de um eixo macro envolvendo artes, tais como teatro, música, pintura, sem o cinema como destaque. Os autores comentam a lei 13.006/14, voltada à obrigatoriedade do uso de cinema brasileiro por ao menos duas horas na escola. Assim, temos o que é o nosso direcionamento por lei, mas dentro das temáticas, o docente pode se articular e utilizar o cinema dentro das propostas que convenhamos, são bem interessantes na BNCC, mas pedem o mínimo de conhecimento do professor acerca do documento, algo que muitas vezes não acontece, pois recorremos, por falta de tempo ou interesse, aos resumos, lives, dentre outros substitutos. Assim, como subverter, mantendo-se dentro da legalidade, quando não conhecemos os direcionamentos que nos baseiam? Complicado. Falamos muito sobre leitura dos jovens, mas nós professores também precisamos investir mais tempo em atualizações.

BPV: Em determinado momento de sua fala, ficou evidente que é possível trabalhar ficção cinematográfica e literária até mesmo nas aulas de Matemática. Confesso que achei a proposta desafiadora.

Leonardo Campos: Foi uma descoberta incrível, pois sempre tive dificuldades com a área. Levei a formação para Brumado e Boquira, pela UNEB, proposta que funcionou muito bem com os professores participantes. Sabemos que na área temos os cálculos, fórmulas inevitáveis, mas também podemos pensar no lado filosófico da matemática e sua aplicabilidade no cotidiano. É demonstrar aos estudantes a funcionalidade daquilo tudo aprendido na “vida real”. Gênio Indomável, Uma Mente Brilhante, A Sala Fermat, 3×3, Cubo, O Preço do Desafio. É uma oportunidade para se refletir os estereótipos sobre a o professor de matemática sisudo, complexo, difícil, impossível de ser compreendido. Monteiro Lobato tem um livro chamado Aritmética da Emília, numa conexão com a literatura que também se faz importante. No cinema, os planos da direção de fotografia, os objetos e suas formas em cena, a arquitetura dos espaços, tudo isso pode ser conectado com a aula de matemática.

BPV: Matemática seria o limite? E nas aulas de Química e Física, por exemplo?

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Leonardo Campos: Prefiro não estabelecer limites, mas confesso que a articulação de narrativas ficcionais com as áreas em questão é uma dinâmica mais complexa. Isto, no entanto, não impede que a pessoa na posição docente possa articular arte com o seu segmento. Numa aula sobre educação para o trânsito, por exemplo, podemos debater uma situação hipotética que envolva cálculo e um sinistro envolvendo carros, ônibus ou bicicletas. Cálculos de distância, movimento, força gravitacional, etc. Sem falar nos documentários, fontes de grande potência educacional, efetivas quando bem direcionadas pelo professor enquanto mediador. Numa aula recente, trabalhei situações indevidas de trânsito num episódio da série Modern Family. A trama girava em torno de um sinistro que quase ceifa a vida dos personagens, dispersos com a barulheira dentro de um carro a se deslocar pela cidade. Como eles se salvam, cada um começa a refletir sobre a sua vida e as coisas que poderiam mudar após a nova “chance” concedida pelo universo. Enquanto se debate comportamento, interpretação de texto e tópicos correlatos, o docente da área pode criar as suas questões e promover uma aprendizagem mais contextualizada e envolvente. Tudo depende da vontade, sabe? Do querer criar algo mais interessante, indo além do que já está estabelecido nos materiais basilares do programa de ensino da unidade que resolver amplias suas propostas.

BPV: Conforme as suas últimas publicações, a metodologia da pesquisa analisada por um viés cinematográfica tem sido o seu foco de trabalho. Quais são os propósitos?

Leonardo Campos: Foi uma descoberta enquanto professor de Metodologia da Pesquisa Científica logo no primeiro ano de docência no Ensino Superior. Levei de imediato para o Ensino Médio e vejo possibilidade no Ensino Fundamental. Filmes como Guerra do Fogo, Fim dos Tempos, Do Fundo do Mar, Erin Brockovich, Histeria, O Nome da Rosa, dentre outros, trabalham com figuras ficcionais em situações de pesquisa ou em busca de expansão do conhecimento em prol de alguma resposta para resolução de um problema. É uma proposta que permite o estudante refletir sobre o que é e como se procede numa pesquisa, numa caminhada que ainda permite encontrar objetivos, hipóteses, justificativas, metodologia, etc. Sempre indico para estudantes em produção de TCC, bem como aqueles que desejam se articular melhor na escrita, pois são narrativas que expandem o raciocínio e permitem aguçar o senso crítico. Veja o caso de Erin Brockovich, com Julia Roberts. Ela é uma cidadã que ressignifica a sua vida durante uma pesquisa. Com o filme, debatemos os procedimentos de uma investigação, o que fazer, o que não fazer, como organizar o conteúdo que levantamos para análise, como lidar com os resultados. É um caminho que tal como as demais propostas envolvendo cinema e educação, pede ao docente um mínimo de empreendimento na sequência didática que pretende elaborar. Não apenas exibir o filme, mas ter um texto motivador como guia, elaborar questionamentos e promover debates.

BPV: Muito além de ser um recurso para os estudantes, o cinema também pode ser uma estratégia para motivação dos docentes, figuras em aprendizagem evolutiva constante, ao menos pelo que se espera de um profissional em busca do melhor. Conta para o nosso leitor sobre o seu projeto intitulado Cinema Espelho, direcionado aos professores?

Leonardo Campos: É um projeto em desenvolvimento desde a época da graduação. Filmes sobre professores em sala de aula permitem que nós, docentes, possamos nos articular com as abordagens e no processo, ficamos inspirados. O Substituto, O Sorriso de Monalisa, Sociedade dos Poetas Mortos, Mentes Perigosas, Preciosa, Entre os Muros da Escola, Tudo Que Aprendemos Juntos, dentre tantos outros, podem funcionar como “espelho” para práticas desejáveis, além de nos permitir a reflexão sobre as demandas cotidianas do sistema educacional em que nos inserimos. São narrativas que possibilitam espelhamento entre o espectador, neste caso, o professor. Assistimos e nos envolvemos enquanto entretenimento, mas em todas as produções selecionadas para este projeto, temos uma discussão sobre algum ponto da nossa prática. É uma proposta que já foi levada e recebida com sucesso em formações de professores nem várias cidades do interior da Bahia, tais como Conceição do Coité, Boquira, Brumado, Feira de Santana e aqui em Salvador.

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Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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