Professor Leonardo Campos
Ele é um mito. Interpretado com maestria por Mads Mikkelsen para a televisão, cristalizou-se na cultura popular por meio do formidável desempenho dramático de Anthony Hopkins em O Silêncio dos Inocentes, seguido dos interessantes Hannibal e Dragão Vermelho. No brando Hannibal – A Origem do Mal, prelúdio equivocado, Gaspard Ulliel deu forma ao personagem. Em 1986, em sua primeira e breve aparição nas telas, Brian Cox encarnou esta figura que se tornou um dos vilões mais audaciosos, sofisticados e intensos da cultura moderna. Ele é a representação cabal de uma das falas mais conhecidas de Alfred Hitchcock sobre a concepção de narrativas envolventes: “quanto melhor o vilão, melhor o filme”. Concordo com o mestre do suspense, em especial, quando a leitura comparada se associa ao enigmático Hannibal Lecter, o psicopata canibal que admira obras clássicas das artes plásticas, consome literatura erudita e tem como trilha sonora para qualquer momento, músicas marcantes da história, em especial, as Variações Goldberg, de Bach.
Oriundo da literatura, apresentado por meio de quatro romances publicados por Thomas Harris, o personagem firmou-se na cultura graças aos filmes, ampliou a sua longevidade com a audaciosa série televisiva criada por Bryan Fuller, além das menções constantes em estudos acadêmicos, artigos jornalísticos e outras fontes de produção de conhecimento. Recentemente, dois textos investigativos e analíticos de cenários sociopolíticos do Brasil mencionaram o personagem em consonância com a mitologia em torno do psicopata, figura que repele, assusta e, concomitantemente, fascina. Um deles tratava de um homem de uma distante região interiorana de nosso território, apto ao canibalismo, algo que não dialoga com os nossos códigos civilizatórios que abominam posturas do tipo no bojo da uma humanidade que precisa sublimar os seus instintos em prol do comportamento ideal em sociedade. O outro texto tratava de Lázaro Barbosa, o inquietante assassino que driblou a polícia e deflagrou um esquema de corrupção tenebroso no centro-oeste brasileiro, personagem que rendeu notícias sensacionalistas, teorias sobrenaturais e ganhou projeção internacional. O tal texto dizia: “Lázaro não é Hannibal Lecter”. E é verdade.
Na reflexão, o autor dizia que longe da mitologia em torno do personagem imortalizado por Anthony Hopkins, o brasileiro tratado como serial-killer vivia uma realidade e traçou uma trajetória muito diferente da figura ficcional do cinema estadunidense. Mas a mídia, em parte, adotou uma trajetória biográfica repleta de elementos imaginativos para permitir que as pessoas compreendessem o enigma em torno do criminoso que encontrou sem fim alvejado impiedosamente pela polícia estafada diante de semanas de investigação e busca num território inóspito para quem vive na cidade grande, mas conhecido pelo monstro perigoso procurado. Nos livros publicados por Ilana Casoy, uma das maiores especialistas em Criminologia no Brasil, a autora aponta que perfis como o de Hannibal Lecter são muito raros, quase impossíveis de se encontrar, pois o mitológico personagem é uma construção ficcional que mescla elementos reais de vários psicopatas do século XX, associados com a assinatura do romancista, dos roteiristas e dos realizadores que o tornaram uma representação deste universo diferente na realidade, mas que tem na violência física e psicológica as palavras-chave para permitir que possamos compreende-los.
Hannibal Lecter: Da Literatura Para o Cinema
Hannibal nasceu na Lituânia em 1938, região onde viveu confortavelmente. O personagem descende de família cheia de importância, residente do Castelo Lecter. A sua irmã, Mischa, canibalizada durante os confrontos da Segunda Grande Guerra Mundial, teve o destino trágico diante da devastação ocasionada pelo conflito bélico que mudou a perspectiva do pequeno Hannibal, indivíduo que nunca mais foi o mesmo, haja vista o traumático cenário contemplado com horror e medo. Essas explicações chegam aos espectadores em Hannibal – A Origem do Mal, tradução do romance de Thomas Harris para o cinema. Sabemos, nesta história que promove a extensão do universo do canibal, o destino do garoto que cresceu com problemas de socialização, foi morar com o tio Robert, personagem que ao falecer, deixa o jovem aos cuidados de sua tia, Lady Murasaki, testemunha dos primeiros passos criminosos do psicopata.
Exímio estudante de Medicina, Hannibal matou um peixeiro desrespeitoso e um dos assassinos de sua irmã, antes de partir da morada com a sua tia e seguir a carreira periculosa nos Estados Unidos. Formou-se em sua área de atuação com louvor e tornou-se também psiquiatra. Em Maryland, cometeu os crimes descritos em Dragão Vermelho, O Silêncio dos Inocentes e Hannibal, narrativas que seguem uma cronologia linear até a chegada das origens, última publicação e filme do universo em questão. Sua primeira vítima foi Mason Verger, um pedófilo de família milionária que teve o rosto dilacerado após Hannibal manipula-lo com jogos sádicos e transforma-lo numa figura visualmente grotesca. Com sua experiência em colaborar com a elaboração de perfis criminais, torna-se ajudante de Will Graham, parceria que se desdobra em sua tentativa de aniquilar o policial, frustrada, face ao encarceramento de Hannibal e o estabelecimento do espaço cênico para as ações em Dragão Vermelho e O Silêncio dos Inocentes.
Hannibal foca em sua vida após a fuga enquanto ajudava Clarice Starling na captura de Buffalo Bill. Dez anos depois, eles se reencontram. Inicialmente, travam o primeiro contato de retorno antes do canibal ceifar a vida de um agente italiano que desejava captura-lo para Mason Verger. Com menções ao processo histórico de Florença e suas sangrentas disputas medievais, o personagem parte para os Estados Unidos e reencontram Starling em outro contexto pessoal e profissional. Amante de culinária, música e literatura, Hannibal mescla refinamento e paradoxalmente, selvageria. Isso é delineado numa das melhores cenas de O Silêncio dos Inocentes, na passagem que tenta assustar Clarice e contar que devorou o fígado de um agente com favas e um bom vinho. Deficiente em emoções, Hannibal é alguém que não temos nome para defini-lo, como bem descreve a personagem de Jodie Foster para um policial curioso. Com traços de Albert Fish e do Dr. Alfredo Balli Trevinõ, dois tenebrosos assassinos em série, o Dr. Lecter é um dos personagens mais assustadores do cinema moderno, mas também é um dos mais atraentes.
Esse poder de atração vem de várias vertentes. As cenas com Clarice Starling, encontros que parecem sessões de consulta psiquiátrica, expõem diálogos inteligentes e filosóficos, sem recorrer ao hermetismo e circular dentro de um eixo que fala para poucos. Se olhado pelo viés da psicanalise freudiana, Hannibal é o que podemos chamar de monstro totêmico, criatura que já nasceu assassino, concebido para ser um mito. As empreitadas de Clarice Starling e Will Graham, nos romances e filmes, nos remetem ao herói Teseu e sua luta para aniquilar o Minotauro no Labirinto de Creta. Em seu comportamento que reflete características animalescas, tais como o olfato apurado, a rapidez e o silêncio de um predador voraz, Hannibal também é parte de uma trajetória narrativa labiríntica, onde personagens trilham por caminhos perigosos, desde o encontro com assassinos em série que utilizam as vítimas tal como colecionamos objetos de consumo. Em linhas gerais, como descrito pelas professoras e pesquisadoras Marina João Bernardes de Oliveira e Rosane Cardoso num elucidativo artigo acadêmico de 2017, Hannibal é o ogro no espelho.
Na publicação, as autoras descrevem que a maldade vende e que no reino dos vilões contemporâneos, Hannibal é um dos destaques, pois o personagem é um fenômeno midiático que versa sobre o mal e sobre retrata algo que devemos coibir, mas ao mesmo tempo, desejamos: a transgressão. Por meio da Teoria da Sedução, tópico que nos levaria para uma leitura psicanalítica deste mito, o canibal constrói o seu processo de identificação com os leitores, espectadores e internautas que criam leem os livros, assistem aos filmes, criam sites, blogs e mais recente, os organizam perfis nas redes sociais, dando ao personagem o status de mito para ser cultuado. Com elementos do monstro glutão, do ogro das narrativas populares seculares, Hannibal se expõe como uma figura que é aquilo tudo que o homem civilizado criou sobre si mesmo, tendo em vista enfrentar o seu lado mais obscuro. Um cheio pode ser atrativo, um acorde musical tocado indevidamente pode levar o responsável pela infâmia a morte. Nós o aceitamos por ele ser um mito. Evocação daquilo que é canibalesco, sanguinário e violento, sublimado em nossos processos civilizatórios.