Professor Leonardo Campos
Cinema e pintura são modalidades artísticas constantemente em diálogo. Se o leitor observar a formação da linguagem cinematográfica no desfecho do século XIX, evolutiva ao longo do século XX aos tempos atuais, perceberá que há muitos empréstimos das artes plásticas para o desenvolvimento da chamada sétima arte. Movimentação, profundidade de campo, angulação, enquadramentos e outras estratégias de captação de imagens para a construção de uma narrativa ficcional ou documental é uma tarefa da direção de fotografia, setor do cinema que aprendeu bastante com a pintura para a formulação de seu estilo. Além dessa aproximação, temos também a releitura assumida ou análise comparada entre obras de arte consagradas e cenas construídas dentro do sistema cinematográfico, envolvendo outros setores, tais como o design de produção, maquiagem, figurinos, etc. É esse, por sinal, o ponto de partida para o nosso artigo.
Aqui, versaremos sobre os diálogos entre o estilo de Francis Bacon, pintor que segundo a história da arte moderna, “retratou a carne e o sangue”, com uma cena específica do clássico moderno O Silêncio dos Inocentes, dirigido por Jonathan Demme, cineasta guiado pelo roteiro de Ted Tally, dramaturgo que adaptou para as telas o romance homônimo de Thomas Harris. Na trama, temos Clarice Starling (Jodie Foster), estagiária do FBI enviada por seu mentor para conversar com Hannibal Lecter (Anthony Hopkins), canibal encarcerado que pode fornecer pistas para a captura de Buffalo Bill (Ted Levine), um psicopata que tem matado jovens robustas e esfolado as vítimas para a confecção de seu “traje” com dimensões de análise psicanalíticas que envolvem cobiça e outros desejos humanos solapados em sua trajetória de negações e traumas. Com uma equipe eficiente, o diretor contou com Howard Shore para a trilha sonora, Tak Fujimoto para a direção de fotografia e Kristi Zea, pesquisadora constante, para o design de produção.
Neste setor, temos a concepção de todos os elementos visuais que compõem uma narrativa. É o design de produção que gerencia a cenografia, a direção de arte, os adereços, a maquiagem, os efeitos visuais e especiais, num trabalho em simbiose com a direção geral e o diretor de fotografia, tendo em vista alcançar os melhores resultados daquilo que está disposto no roteiro, texto que guia a transformação da proposta em filme. Ao longo dos 118 minutos de O Silêncio dos Inocentes, temos algumas menções diretas e outras leituras comparadas com obras de arte de universos distintos. Uma dela é o mencionado estilo de Francis Bacon, pintor estadunidense adotado como perspectiva para a cena de fuga de Hannibal Lecter da prisão, momentos antes da narrativa encontrar o seu desfecho apoteótico. Nesta passagem específica, Hannibal espera o seu jantar, entregue por dois policiais experientes que ficaram de guarda, a vigiar o “monstro”.
É o ponto alto da história, pois a agente do FBI já tinha conversado com o canibal, digladiado psicologicamente em seus jogos manipuladores e, fora da prisão de segurança máxima de onde saiu para ser transferido, haja vista a sua colaboração para a busca da vítima mais recente de Buffalo Bill, o Dr. Lecter planejava cada passo da sua fuga milimetricamente calculada. A atmosfera deste recorte do filme é assustadora e assertivamente construída: as Variações Goldberg, de Bach, tocam no aparelho de som, os policiais chegam com a comida solicitada pelo prisioneiro num momento repentino de luxo em sua vida enclausurada, a câmera observa tudo, dando destaque aos pormenores e criando uma antecipação angustiante do que pode vir a seguir.
Hannibal, já munido de um objeto que tinha surrupiado de um descuidado durante a sua travessia até o local, agarra um dos homens, devorando uma parte de seu rosto bruscamente, dando ao outro os golpes suficientes para ceifá-lo. A cena continua com Bach como trilha de fundo, com o canibal gozando do momento de poder, sem deixar de firmar a sua assinatura antes da fuga: ele deixa um dos policiais pendurado, com as entranhas expostas, preso as grades, em destaque diante da iluminação desta sala, como se fosse algo para ser contemplado. Ao passo que a tensão aumenta e a fuga de Lecter é prevista pelos demais policiais do prédio, há uma movimentação constante até a chegada dos agentes ao espaço que agora é uma tenebrosa cena de crime, construída com toques de horror e violência, absolutamente aterrorizante até mesmo aos olhos daqueles profissionais acostumados a lidar com imagens do tipo.
Nos depoimentos para o documentário Dentro do Labirinto: O Making-of de O Silêncio dos Inocentes, a designer Kristi Zea comenta que a inspiração para essa cena complexa veio de suas pesquisas e anotações, tendo o universo de Francis Bacon como ponto de partida para a elaboração da passagem. Curioso diante dessa afirmação, agendei uma viagem intelectual de leitura e análise da biografia e do estilo desse pintor moderno, incursão com descobertas interessantes que serão compartilhadas brevemente no tópico seguinte. Na história recente do cinema, outros filmes já retrataram pinturas de Bacon, tais como Alien, O Oitavo Passageiro, O Último Tango em Paris, dentre outros. O nosso foco, aqui, no entanto, é a aproximação entre o pintor e o filme que arrebatou troféus nas principais cerimônias de premiação de sua época e ainda hoje, três décadas depois do impacto deixado na cultura dos anos 1990, mantém a sua potência enquanto obra-prima do cinema, longeva em seu legado e referência para filmes vindouros.
Francis Bacon, o pintor da carne humana?
Desespero humano. Violência física e psicológica. Deformações. Nas palavras do filósofo Deleuze, a tarefa da pintura é definida como a tentativa de tornar visíveis, forças que não são visíveis. É assim que a produção artística de Francis Bacon se estabelece aos nossos olhos estarrecidos, mas ao mesmo tempo, envolvidos pela atmosfera enigmática proposta nas telas desenvolvidas pelo artista conhecido por “pintar a carne humana”, isto é, fugir dos padrões sobre o belo e confrontar estilos consagrados com a sua audaciosa forma chocante, sangrenta e quebradora de paradigmas. De origem anglo-irlandesa, Bacon é um descendente colateral do filosofo elisabetano de mesmo nome. Grotesco, autor de imagens com tom austero e atmosfera que nos remete aos pesadelos, o pintor nascido em Dublin demonstrou ressonâncias do surrealismo em sua arte composta por dramas existencialistas, além de desdobramentos do cinema e da fotografia.
Francis Bacon, em linhas gerais, pintou a sua época, a sua existência, os seus dilemas internos. Sadomasoquismo, corpos desmembrados, tensão homoerótica, representação do corpo e fluídos, tais como urina, esperma, sangue, dentre outras imagens consideradas desagradáveis pela sociedade em busca da arte “bela”, também despreparada para tabus que envolviam sexo e religião, tópicos temáticos deste artista que teve uma infância traumática com o pai abusivo, sofreu de asma, opressão psicológica por causa de seu jeito introspectivo, autor de uma exposição em 1945, primeira demonstração de seu trabalho, execrada pela crítica e público inaptos para acompanhar tanta agressividade por meio de imagens intensas e desafiadoras. O ser humano, nos trabalhos de Bacon, é um pedaço de carne. Sem a pompa que a nossa espécie acopla em sua existência para se definir, aqui, não nos diferenciamos dos animais irracionais.
Liberto, o ser humano das obras deste pintor põe para fora todas as suas inibições, quebra os códigos civilizatórios e deixa a besta interior fazer o trabalho destrutivo, controlado pelas regras sociais impostas por uma humanidade contida, usurpada de seus instintos mais básicos. Para a história de crítica de arte, Francis Bacon se insere nos capítulos sobre a Pintura Figurativa Europeia. Influenciado por Guernica, o pintor também idolatrava Pablo Picasso, figura que conforme os seus relatos, foi a razão para a sua entrada e permanência no mundo das artes plásticas. Design de interiores, campo de produção profícua em sua carreira, Bacon foi um dos artistas que viveu as agruras de um mundo arrebatado pela dor, morte e desolação causadas pela Primeira Grande Guerra Mundial, situação que também pode ser considerada catalisadora da formação de seu estilo nas telas. O mundo mudou e a concepção do pintor também.
Francis Bacon assinou obras diversas, mas a nossa atenção aqui vai para Três Estudos de Figuras ao Pé de Uma Crucificação, de 1944, obra que expõe a capacidade da humanidade para a autodestruição. Esse trabalho foi o responsável por estabelecer a sua reputação, exibido em Londres num período paralelo ao desfecho da era conhecida pelos livros de história como Segunda Grande Guerra Mundial. Provavelmente inspirada em Slaughtered Ox, de Rembrandt, de 1638, bem como na arte cubista, em especial, nos traços de Picasso, podemos também interpretar que a composição nos passa medo, ansiedade, pouco espaço para pensamentos esperançosos e nula expectativa de ressurreição. Como destacado por historiadores da arte de sua época, o Tríplice nos apresenta a maldade impressa com afinco. Uma caixa toráxica exposta, violentamente mutilada, como se a carne humana estivesse exposta para comercialização num açougue, juntamente com uma silhueta construída por uma atmosfera enigmática, escolha que nos permite interpretar que a alma ou a morte parece caminhar para deixar o corpo.
A vulnerabilidade humana, a figura em posição fetal sobre o divã e o contorcer que parece expressar dor, sofrimento físico e existencial, dentre outras coisas, é material para fornecer subsídios para o departamento criativo do clássico moderno aqui apresentado para leitura comparada. Para o filme, Kristi Zea e sua equipe buscaram os tons, as cores e as formas das figuras de Francis Bacon para aplicar na tessitura narrativa de O Silêncio dos Inocentes, pois a designer acreditava ser ele a fonte de inspiração, o ponto de partida ideal para o tom da história traduzida do suporte semiótico literário de Thomas Harris e levada para o cinema sob o comando de Jonathan Demme. Como descrito anteriormente, temos um personagem press a um cubo feito de grades, seu corpo e braços abertos, como uma crucificação, imagem que propicia um variado feixe de interpretações. O corpo, semiaberto, deixa um pedaço volumoso de carne pendurado do lado esquerdo, com o corpo envolto em faixas brancas e vermelhas. O mistério é um dos termos mais adequados para compor o conjunto de palavras-chave que definem este trecho.
A cena é concebida por uma fotografia que investe numa atmosfera turva, inicialmente obtusa que se modifica, revelando-se aos poucos. A imagem que também nos remete ao que no imaginário, temos por uma figura alada, é uma paródia da crucificação, cena que possui numerosa possibilidade interpretativa quando a observamos dentro de outras passagens similares na história da arte. Na pintura de Bacon, registrada em 1946, não há um corpo fixo, mas uma movimentação. Já no filme, temos um corpo, vazio de órgãos. Em ambos, a carnificina é o ponto visual em destaque. Cores em profusão, uma figura humana aberta e neste processo de dilaceração, um personagem acometido pela violência brutal. A dor e o fantasmagórico, a brutalidade de um mundo mergulhado em desumanizações constantes, a figura humana deformada, expressando solidão e degradação na pintura, encontra ecos no personagem de O Silêncio dos Inocentes, indivíduo que encontrou a morte nas mãos de Hannibal Lecter, um psicopata cruel, astuto, sofisticado e marco eterno da história do cinema, um dos cristalizadores da imagem do psicopata como herói da pós-modernidade, uma criatura para ser temida, mas paradoxalmente, torna-se objeto de culto.