
Professor Leonardo Campos
Ao retomar Intersection: Uma Escolha, Uma Renúncia, drama que fez grande sucesso nas videolocadoras nos anos 1990, em minha casa, especialmente, pela admiração de minha mãe cinéfila em torno da figura do protagonista interpretado por Richard Gere, lembrei-me da tese de doutorado de Erika Tatiane de Almeida Fernandes, defendida em 2017, na USP, pesquisa desenvolvida na Escola de Enfermagem da instituição. O texto, intitulado Trauma, Trânsito e Vítimas: Um Olhar Sobre a Pessoa e a Família, trouxe a análise de alguns casos reais, versa sobre a importância da prevenção, haja vista a possibilidade de não ocorrência de muitos sinistros quando os condutores aplicam em sua prática na direção, os aprendizados ensinadas pela teoria no curso para retirada da carteira de habilitação, dentre outros pontos, sendo a conceituação de vítimas secundárias um dos detalhes que mais me interessou e permitiu, desta maneira, o diálogo que se impõe como digressão antes que a análise do filme seja propriamente delineada na confecção desta reflexão.
Além das sequelas físicas e psicológicas sofridas pelos acidentados num sinistro de trânsito, você sabia que os debates em torno do assunto implicam refletir sobre a condição das vítimas secundárias? Este é o caso das personagens de Sharon Stone e Lolita Davidovich, mulheres que gravitam em torno do conflituoso protagonista de Richard Gere, figuras ficcionais que integram este drama moroso, relativamente cafona, mas com algumas reflexões pontuais que nos permitem alguns momentos de simpatia com a sua estrutura narrativa de 98 minutos, minutagem extensa para a letargia no desenvolvimento de conflitos desperdiçados pela extensão antipática do filme enquanto entretenimento. Sob a direção de Mark Rydell, cineasta que se baseia no texto de David Rayfiel e Marshall Brickman, roteiro inspirado na novela homônima de Paul Guimord, Intersection – Uma Escolha, Uma Renúncia é também considerado uma refilmagem de As Coisas da Vida, de Claude Saunet, drama francês da década de 1960 que trabalha melhor a condução dos acontecimentos, mesmo que a cena do acidente não seja tão interessante esteticamente quanto essa versão realizada nos anos 1990.
Antes da análise propriamente dita, vamos ao que prometi com as ilações diante da tese de doutorado já mencionada. Na escrita acadêmica fluente da pesquisadora, temos como reflexão que as vítimas primárias em sinistros de trânsito podem sobreviver, mas adquirem uma deficiência física e psicológica que transforma as suas existências em momentos de dor e sofrimento, haja vista a necessidade de ruptura com o modo de vida anterior, muitas vezes impossível de ser retomado. Richard Gere e seu protagonista, neste caso, não ganham uma segunda chance, como fica claro logo na abertura, para aqueles que reclamam em torno da bobagem sobre spoilers. As personagens de Stone e Davidovich, quase ex-esposa e atual candidata a nova esposa, respectivamente, são o que o texto chama de (possíveis) vítimas secundárias, pessoas que vivenciam os impactos emocionais diante ao acidentado, indivíduo que na dinâmica de seu sofrimento, causa transtorno em torno de todos que dependem de alguma maneira, do acidentado.
Quando pensamos que o protagonista poderia ter evitado o incidente, pensamos também no quão impactante é a sua tragédia não apenas paras as mulheres de seus relacionamentos amorosos, mas também para a sua filha, interpretada por Jennifer Morrison em começo de carreira. É um feixe complexo de implicações que envolve uma série de pessoas, você sabia? Assim, a família também é vítima do acidente, pois a estrutura da vida de todos é modificada, afinal, as estratégias de enfrentamento são buscadas não apenas pelos acidentados, quando conseguem sobreviver. Há perdas econômicas e vulnerabilidade emocional, tópicos que devem ser levados em consideração quando o debate estiver em pauta. É um filme que também nos leva aos debates sobre a importância da Psicologia do Trânsito, uma área menos conhecida que os segmentos mais populares da psicologia, mas que nos remonta aos anos 1920, época dos primeiros exames de avaliação psicológica para orientação de pessoas condutoras de transportes. Este tópico, por sua vez, será apresentado mais adiante, após análise do filme.
Na trama, Vincent (Gere) é um arquiteto que divide a empresa com a sua esposa, a bela Sally (Sharon Stone). Enquanto ela organiza os negócios, ele assume o posto de diretor criativo, disperso depois que conhece a jornalista Olívia (Lolita Davidovich), misteriosa mulher que ocupa o espaço de amante. No meio disso tudo, temos a filha, uma jovem confusa no meio de tantas idas e vindas dos pais, além de alguns coadjuvantes que aparecem pouquíssimo entre um ponto e outro, numa narrativa que aposta todas as suas fichas no triangulo amoroso formado por Gere, Stone e Davidovich. Logo na abertura, o protagonista dirige freneticamente por uma sinuosa estrada, relativamente úmida por causa do clima chuvoso. Cheio de emoções fortes, o personagem flutua diante de uma decisão que saberemos apenas no desfecho, mas que logo na abertura, é capaz de transformar a sua existência. Ele se torna o centro nervoso de uma colisão cinematográfica, com perdão do trocadilho, tamanha a força empreendida pela colisão entre o seu Mercedes 280SL e os demais envolvidos no acidente.
Basicamente, o que temos por aqui é uma história de amor e paixão, com cenas razoáveis de erotismo e um protagonista indeciso, homem que não sabe se reconquista a sua esposa ou se entrega de uma vez para a amante que lhe oferece o “novo”, a sensação de liberdade tão desejada para alguém que parece saturado da vida que leva. Insatisfeito, ele reduz a qualidade no ambiente de trabalho e até mesmo na relação com a amante, sente o peso das pressões. É em seu automóvel que ele libera as suas emoções. O mencionado Mercedes 280SL, “máquina” desenhada por Paul Bracq e lançada por volta de 1963, carro conhecido por seu teto concavo e apelido da Pagoda, numa referência aos antigos templos orientais, serve aqui como válvula de escape de sua euforia que acaba em desastre. No momento da colisão, alguns flashes de sua vida são estabelecidos, “fios e rastros” de uma trajetória que funciona como uma espécie de quebra-cabeça que se completa apenas no final, sem deixar peças faltando. O que falta aqui é apenas a paciência do espectador que busca algo mais envolvente enquanto entretenimento.
Ademais, ainda sobre a estrutura narrativa, podemos dizer que Intersection – Uma Escolha, Uma Renúncia é uma produção cinematográfica conduzida adequadamente em seus quesitos estéticos. A trilha sonora de James Newton Howard colabora com as emoções, sem se tornar lacrimejante demais, o design de produção exala elegância e a direção de fotografia cumpre adequadamente o seu papel ao captar não apenas os personagens, mas os espaços, em especial, na surpreendente cena da colisão da abertura, também apresentada no desfecho, do filme e da vida de Vincent. Sem aderir ao que Daniel Goleman conceitua de Inteligência Emocional, o personagem de Richard Gere vacila ao assumir a direção de seu carro e por fim ao que seria uma vida, talvez, amena, ao lado de uma das escolhidas que você, caro leitor, saberá apenas se assistir ao filme, pois não pretendo contar, combinado?
Breve Panorama da Psicologia do Trânsito
O trânsito e a mobilidade urbana são segmentos do nosso sistema territorial e humano que envolvem relações de muita complexidade. Para melhor compreendermos algumas relações, a Psicologia do Trânsito é um campo que se faz necessariamente atuante, haja vista a junção de estrutura física e elementos humanos na condução dos mecanismos que engendram esse frenético e importante segmento da vida em sociedade, tantos nas grandes metrópoles quanto nas cidades interioranas. No mesmo dia que encerrei a revisão ao filme em questão, que Intersection – Uma Escolha, Uma Renúncia, dediquei-me ao livro sobre Psicologia e Trânsito, do doutor Fábio de Cristo, um respeitado estudiosa da área. Com capítulos curtos e elucidativos, sem se perder no pantanoso discurso técnico e hermético que explica apenas para os pares, mas não abre as questões para entendimento amplo do público, o livro expõe como a psicologia é uma ferramenta importante para o conhecimento dos humanos em relação ao ambiente que trafega, dando-lhes melhorias na qualidade de vida enquanto se deslocam, além de diminuir consideravelmente a chamada violência motorizada.
Importante setor da sociedade, o trânsito permite a troca de mercadorias, o desenvolvimento das cidades, o intercâmbio de conhecido, em linhas gerais, colabora com o trajeto cotidiano da vida. Nesta área em questão, isto é, a Psicologia do Trânsito, temos um estudo do comportamento das pessoas que participam diariamente dessa dinâmica, um sistema que tal como mencionado, é complexo e envolve motoristas, passageiros, pedestres, ciclistas, engenheiros de tráfego, instrutores, etc. Quando trazemos as suas considerações para iluminar as sequências de Intersection: Uma Escolha, Uma Renúncia, percebemos o quão este segmento se faz necessário para a existência de uma sociedade que se comunica, por diversos meios, pelas vias de tráfego, seja em qualquer uma das condições mencionadas anteriormente. No filme, logo em sua abertura, o protagonista dirige em alta velocidade, sem levar em consideração que atravessa uma estrada sinuosa, daquelas que cortam serras e outras manifestações geológicas que se ofertam como obstáculos para quem realiza uma travessia. O grande problema de trânsito aqui é que além da velocidade acima da média, temos também a dispersão, perigosa para o condutor.
Atordoado com a escolha que precisa fazer, isto é, continuar com o investimento em seu casamento ou ficar com a amante que lhe proporciona tórridos momentos de prazer e diversão, Vincent toma a direção de seu carro sem a condição adequada para isso. Com os pensamentos aflorados, emoções conturbadas e distraído ao manusear uma carta enquanto assume o volante, ele ilustra tudo de inadequado para um condutor em qualquer condição de trânsito. Ao retomar o filme e rever a cena de abertura, bem orquestrada para fins dramáticos, dando ao espectador uma breve ideia da impactante e destrutiva colisão, lembrei-me também de outro estudo, desta vez, uma pesquisa publicada pelo Portal do Trânsito em 2017, dados distribuídos em meio ao breve artigo que afirmava o perigo do estado emocional alterado na condução de um automóvel. Conforme explicitado pelo texto, embasado numa pesquisa do Instituto Virginia Tech, sentimentos como raiva, agitação, tristeza e correlatos aumentam para 10 vezes as chances de uma pessoa passar por situações de risco no trânsito.
Embasada também pelas afirmações do antropólogo Bernardo Conde, professor da PUC (Rio), as reflexões apontam que as pessoas manifestam as suas vontades individuais na cena pública, não sendo algo exclusivamente do âmbito da intimidade. Com isso, um espaço que deveria ser mais racional e menos emocional acaba se tornando uma zona de perigo, principalmente quando o carro é utilizado como válvula de escape das emoções. Tipo: quando eu consigo uma oferta de emprego novo tão sonhado ou reato uma relação que pensei ter acabado. O que muita gente faz? Acelera o carro, canta, vibra e põe a vida em risco. E temos também o outro lado: o sentimento de angústia após uma briga, acompanhado de lágrimas copiosas, podem também por a pessoa condutora em risco, pois o seu estado emocional está alterado, incapacitado de compreender cabalmente as situações que o trânsito pode colocar para alguém que dirige equilibrado. Quando o personagem de Richard Gere assume o volante, ele se encontra inabilitado, tomado por sentimentos fortes, associados ao descuido na direção para manusear documentos que deveriam ser lidos e conferidos quando estacionado.
Essa cena ilustradora pode parecer um ponto mínimo, mas como foi possível vislumbrar agora que chegamos ao desfecho do texto, percebemos que um breve descuido se tornou algo catalisador de uma situação que envolveu várias pessoas num processo que poderia ser evitado, caso os agentes de deslocamento na mobilidade apresentada pelo filme fossem mais cautelosos. Falta em Vincent, tal como em muitos motoristas da vida real, a inteligência emocional adequada para assumir um posto de tanta responsabilidade, banco que tal como o trono ficcional da série Game of Thrones, é carregado de poder, riscos, etc. Entende-se por inteligência emocional, a capacidade de entendermos os nossos próprios sentimentos e os dos outros, para que assim, tenhamos como gerenciar adequadamente as emoções que nos tomam cotidianamente. É por este caminho que poderemos melhorar as nossas relações. O autor do livro que leva no título, o próprio conceito, divide o seu esquema teórico em cinco habilidades. Prometi para o final, mas como um bom plot twist da ficção, vou deixar para a nossa próxima análise, um estudo sobre a mulher e o trânsito na comédia dramática Assumindo a Direção, combinado?