Bahia Pra Você

Consciência negra no cinema

Leonardo Campos

Na esteira da Semana da Consciência Negra, apresento para os nossos leitores, em especial, os professores, algumas narrativas cinematográficas para discussão sobre racismo estrutural, lugar de fala, feminismo negro, dentre outros tópicos importantes para uma nação que infelizmente, ainda vive a utopia da democracia racial. Vamos nessa? Leia sobre os filmes, assista as narrativas e depois, caso seja possível, prepare a sua aula com debates. Se for estudante, aproveite a oportunidade para ganhar mais conhecimento. Bons estudos!

A Negação do Brasil

Basta olhar nas redes sociais para estabelecer a análise: o Brasil é um país muito racista. Diferente dos Estados Unidos e do seu debate mais caloroso, aqui a questão é maquiada por uma agenda de disfarces mais tenebrosa que o movimento Blackface, um dos alvos da crítica deste documentário conduzido de forma didática, mas não menos interessante, um material que exala as celeumas do preconceito racial por todos os poros de seu tecido narrativo.

Oriundo de uma investigação contundente e detalhes da sua memória, o cineasta Joel Zito Araújo traz para a linguagem cinematográfica o material do seu livro homônimo, A Negação do Brasil, editado pela Cosac & Naify, uma referência na seara dos estudos sobre os movimentos intelectuais dos negros em nosso país. Fruto de sua tese de doutorado, o estudo é um profundo e triste retrato do racismo que dominou as telenovelas brasileiras ao longo da história deste suporte narrativo-midiático.

O que antes víamos com ludicidade e afeto, pelo olhar crítico e investigativo de Joel Zito Araújo, torna-se uma denúncia bem realizada. A felicidade no final de A Escrava Isaura, adaptação do romance de Bernardo de Guimarães, com a libertação dos negros por um heroico homem branco; as vilãs negras que conduziam os espectadores ao ódio; as cartas que Zezé Motta recebeu ao trabalhar como par romântico de um galã global; estas são apenas algumas das histórias entre tantas outras cenas humilhantes e deprimentes, ao qual muito dos nossos atores brasileiros negros foram submetidos para conseguir manter-se dentro do esquema de produção.

E para os que acham que o assunto é balela ou parte de uma sociedade “mimizenta”, basta olhar atentamente para a programação televisiva contemporânea, em especial, a aberta, mais especial ainda, a poderosa Rede Globo. Ano passado, acordei sem vontade de causar polêmica, conduzido pela paz e vontade de não ter que levantar bandeira pelo menos por aqueles instantes. Mas a televisão, onipresente tanto na minha quanto em várias residências ao redor deste país, apresentava um personagem parte de um jogo de culinária no programa de Ana Maria Braga, vestido dentro do esquema Blackface, leia-se, com a pele pintada de preto.

Não estou alegando, com esta informação, que o rapaz tenha sido racista, mas no mínimo pouco informado e desorientado por uma equipe que deveria ser mais cuidadosa, pois não é o ato em si, mas o que ele representa. Sabemos que tal atitude nos remete a uma violência simbólica histórica que não deve ser ignorada. O que dizer de Sexo e as Negas, de Miguel Falabella? Interessante por trazer o debate? Sim, mas cheio de estereótipos que não foram bem trabalhados. Acredito, caro Joel Zito Araújo, que em tempos de Big Brother Brasil, seja a hora de A Negação do Brasil 2, o que acha?

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Selecionado para diversos festivais internacionais, o documentário fez bastante sucesso no Brasil, principalmente dentro da comunidade acadêmica. Ao longo dos seus 91 minutos, o cineasta dirige muito bem o seu roteiro, montado com o auxílio do editor Adrian Cooper, brilhantemente guiado através dos depoimentos emocionantes de Milton Gonçalves, Maria Ceiça, Zezé Motta, Léa Garcia, Ruth de Souza etc. Um filme que vai demorar muito tempo para envelhecer, infelizmente.

Cores e Botas

Privilegiados chamarão de vitimização, mas por que será que a representação negra nos programas ao estilo “Xuxa” sempre foi praticamente nula? Questionamento que vem na esteira da percepção de que estamos falando de uma atração exibida num país de contingente populacional tão multicultural?  Há algo muito racista nesta história. A dançarina “Bombom”, conhecida por sua postura lasciva e sensual, com figurino diferenciado das “Paquitas”, talvez seja a única referência que temos dentro desse espaço de representação.

No campo da literatura brasileira, algo muito parecido pode ser encontrado nas descrições de Isabel e Ceci em Loura ou Morena, quinto capítulo do romance O Guarani, de José de Alencar, trecho onde o escritor descreve as características da europeia pura, tratada por adjetivos conectados ao “puro”, enquanto no caso da mestiça, traçou um extenso vocabulário crítico, abordado numa lógica bem preconceituosa.

Sendo assim, Bombom, com toda sua exuberância, semelhante ao molejo de Isabel, era uma dançarina tratada tal como a mulher negra fora retratada ao longo da história midiática brasileira, herança de Rita Baiana e outras personagens do nosso rico e extenso panorama literário: objeto sexual ou alguém atrevida e exibida, adjetivos que presenciei ao longo da minha juventude enquanto espectador dos programas da apresentadora loira, exibidos nas tardes de sábado na televisão aberta, na sala de casa, juntamente com a parcela branca e privilegiada da minha família.

Essas pessoas geralmente se posicionavam de maneira racista e, em quase todos os casos, nunca se deram conta disso, tamanha a extensão desta celeuma, espalhada como um rizoma em nossas práticas cotidianas. Creio que todos conseguiam imaginar Bombom como uma dançarina responsável pelos closes sensuais da câmera que a transformava em objeto para o telespectador, público que jamais a conseguiu olhar com o aspecto angelical das garotinhas meigas e brancas que acompanhavam a apresentadora da atração.

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Para refletir sobre o assunto, creio que seja viável conferir o curta-metragem Cores e Botas, lançado em 2010, pela cineasta brasileira Juliana Vicente. No roteiro há a história de Joana (Leonardo Campos), uma criança que tal como as tantas meninas que consumiam os produtos da televisão aberta dos anos 1980, sonhava em ser uma das paquitas do Show da Xuxa. A família assiste ao desejo um tanto reticente, pois mesmo diante da casa de porte médio, Joana carrega em suas características físicas a pele negra e o cabelo crespo, elementos que não dialogam com os padrões da atração exibida durante muitos anos na Rede Globo de Televisão.

Certo dia, a garota informa que fará o teste para a seleção das novas coadjuvantes do programa da apresentadora Xuxa. O irmão tece críticas, mas o pai repreende, alegando que na época dele, ninguém criticava o seu interesse pelo programa do Fofão. Mesmo ciente das possibilidades parcas, Joana se inscreve e parte para a seleção. No local, as ironias e deboches pululam constantemente, com perguntas do tipo: “será que teremos uma paquita exótica?”, “a sua mãe deixou você fazer o teste, mas você nem parece paquita?”.

Há um momento que Joana cola diversos pedaços de fita amarela na cabeça, interessada em se parecer tanto com as moças que parecem delinear o que a TV insiste em apontar como padrões de beleza. O que Joana precisará compreender, tão logo, é que para se sentir bonita não é preciso necessariamente ser loira, uma lição tratada de maneira poética pela cineasta Juliana Vicente.  No desfecho, realista, haja vista a noção do preconceito comum ao programa em questão, Joana arranja outra forma de significar a sua existência: a fotografia.

Para contar a história, a cineasta consegue emular bem os anos 1980: há uma cena com a família a assistir o famoso debate entre Lula e Collor, caso famoso de manipulação na história política brasileira; a direção de arte, assinada por Regina Célia Barbosa, cuidadosa, resgata objetos de cena valiosos para o mergulho histórico, juntamente com a peculiar cenografia da casa onde reside Joana e seus familiares.

Cores e Botas faz uma reflexão é muito valiosa. Provavelmente inspirado na trajetória da própria cineasta, o curta-metragem aponta o dedo para a falta de responsabilidade de um dos maiores ícones de diversas gerações de garotas brasileiras, isto é, a apresentadora Xuxa, celebridade que há alguns anos foi criticada por seu fetiche pela pobreza, ao fazer uma selfie com meninos negros num semáforo enquanto se deslocava de carro para realização de sua programação cotidiana. Representação da padronização típica da TV Globo, também responsável por criar outros “produtos fabricados”, tal como a língua portuguesa estática e “ideal” falada por William Bonner, Xuxa e sua equipe de produtores teceram, durante longo tempo, uma malha de exclusão e preconceito que fez muita garota negra, gorda e indígena sentir-se alijada da dinâmica social, alvos constantes de bullying e violência de outros tipos.

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A Invisibilidade do Negro na Educação

Há algo de muito verdadeiro em A Invisibilidade da Identidade Negra na Educação. Após assistir ao documentário, notável nas discussões sobre a presença do negro na educação brasileira, rememorei alguns debates fervorosos com profissionais de ensino no que tange aos momentos de coordenação pedagógica e seleção de temas para projetos educacionais. Num dos mais memoráveis, uma professora insistia na beleza e eficiência do romance A Escrava Isaura, de Bernardo de Guimarães.

Havia na educadora uma postura de resistência ao se permitir propor dialogar com os poemas e contos da coletânea Cadernos Negros, abordagem mais otimista e sem o olhar eurocêntrico em relação ao negro na história literária.  É o mesmo discurso dos profissionais de ensino que desejam refletir a trajetória indígena apenas com a leitura de Iracema, O Guarani e Ubirajara, “trilogia indianista” do romântico José de Alencar.

Na contra os romances apontados, mas é preciso que os professores e gestores saiam do viciado “plano subjetivo” que só enxerga o que bem quer, para olhar tais questões sob o prisma do plano geral, seguido de um travelling por outras possibilidades de abordagem do negro e do indígena na história da formação do Brasil enquanto nação. A Invisibilidade da Identidade Negra na Educação flerta com tal abordagem, sendo mais um dos produtos audiovisuais preocupados em debater um problema que aparentemente não tem fim.

O Brasil, como apontam as estatísticas e as notícias cotidianas, é um país de forte tensão racial. A ideia de um caldeirão multicultural sem a presença da violência física e simbólica no que tange ao posicionamento das posturas racistas diárias existe apenas para os que vivem no mundo da imaginação ou não acreditam que estamos inseridos no que Benedict Anderson chamou de “comunidade imaginada”.

O documentário A Invisibilidade da Identidade Negra na Educação, dirigido e escrito por Taís Amordivino, cineasta de uma nova geração de intelectuais negras na Bahia, reflete a questão racial por meio dos meandros da educação, reiterando como ainda estamos distantes de uma abordagem da cultura afro-brasileira menos focada em estereótipos e “coisificações”, oriundas do discurso hegemônico. Assim, a produção levanta questionamentos sobre as cotas, traça um paralelo entre educação pública e privada, dentre outros tópicos pertinentes ao tema geral.

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Com tom leve e depoimentos sutis, a produção traz estudantes negras em reflexões sobre o que desejam ser e como a sociedade não as deixam sonhar adequadamente, haja vista a ausência de referências para espelhamento. Entre os comentários das estudantes, a narrativa trafega entre o elucidativo depoimento da psicóloga Tainan Purificação, responsável por destacar a tal “falta de referências e os perigos da violência velada” e as colocações do professor Walter Passos, intelectual que problematiza “os livros didáticos sem a devida abordagem da cultura negra”, além da dificuldade em fazer a lei 10.639/05 funcionar.

Para Walter Passos, professor de História, importante componente curricular da grade educacional, há falta de abordagem mais substancial da religião africana, pois o que geralmente se encontra é a visão eurocêntrica da África, bem como a lacuna na história anterior ao continente sem a presença do explorador. A crítica, apesar de muito pertinente, pode também ser entregue aos professores, desinteressados em ir buscar tais itens para a devida discussão em sala de aula. O depoimento da estudante Lilian Santos traz isso muito bem delineado, pois reforça que há métodos muito questionáveis por parte de muitos educadores.

Esteticamente, A Invisibilidade da Identidade Negra na Educação se apresenta como material de iniciante, o que não deixa de ser interessante enquanto discussão, bem como ensaio para produções posteriores, tais como o poético Motriz, lançado este ano e com aceitação em festivais brasileiros e até mesmo internacionais. Igor Correia (áudio) e Danilo Garcia (fotografia) poderiam ter se empenhado mais em seus respectivos trabalhos, dando ao editor Luiz Henrique Pereira material audiovisual relativamente mais interessante para a finalização.

Os créditos iniciais pedem uma revisão de ordem gramatical, importante para a circulação do filme nos espaços que mais interessam, isto é, escolas, faculdades, congressos e seminários que abordem diretamente ou tangenciem o assunto.  Taís Amordivino, provavelmente envolvida apaixonadamente pelo assunto, deixa gravitar em seu roteiro algumas falhas minuciosas, também não prejudiciais na transmissão da mensagem, mas caso fossem “corrigidas”, garantiriam um documentário com maior potencial cinematográfico, não servindo apenas como panfleto sobre as práticas cotidianas de racismo na educação.

Uma das “falhas” é a ausência de depoimentos mais variados, algo que ampliaria a reflexão. No entanto, como apontado anteriormente, o filme funciona como um ensaio, uma provocação bem sucedida para um tema bastante debatido, porém praticado sem a devida eficiência nas dinâmicas cotidianas de sala de aula.

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Antônia

O cinema brasileiro sempre teve interesse pelos “excluídos”. Cidade de Deus, Carandiru, Última Parada 174 exemplificam, além da análise social de Nelson Pereira dos Santos em Rio, 40 Graus e Rio, Zona Norte, dentre tantas produções documentais e ficcionais sobre existências que trafegam pela vida em luta constante com a relação assimétrica entre a elite privilegiada e os silenciados ao longo da história da nação brasileira, “comunidade imaginada” que se ergueu com base na colonização errônea dos portugueses.

São muitas as narrativas que ilustram as mazelas da população pobre das favelas e da periferia dos quatro cantos do Brasil. Antônia, lançado em 2006, é uma das histórias edificantes que exploram esse universo. O resultado é aceitável, apesar de alguns pormenores narrativos que prejudicam o filme. Ao longo de seus 90 minutos, o filme é didático ao delinear questões de gênero em espaços que geralmente são apresentados numa perspectiva masculina no que tange ao protagonismo, a história emociona e demonstra como a questão do preconceito e da exclusão é ainda muito contemporânea, uma celeuma brasileira longe de ser regularizada.

Dirigido por Tata Amaral, cineasta constantemente preocupada com questões de gênero, também responsável pelo roteiro, em parceria com o escritor Roberto Moreira, Antônia expõe estilhaços dos universos de quatro jovens em busca de uma vida digna. Por dignidade, leia-se: ser respeitada ao fazer música na favela, atuar com hip-hop, gênero musical geralmente vinculado ao “masculino” como agente autoral. Na história, conferimos a união de Preta (Negra Li), Lena (Cindy Mendes), Barbarah (Leilah Moreno) e Maya (Quelyna), jovens negras de Brasilândia, zona periférica de São Paulo.

Com uma lista de problemas enorme para refletir, tais como gravidez, maridos infiéis e autoritários, violência e preconceito social, fome e habitação, dentre outras questões que acometem o quarteto protagonista, a cineasta precisa ser muito ágil ao abordar cada elemento que surge dos conflitos do roteiro, o que torna a sua tarefa hercúlea e em alguns momentos, relativamente bem sucedida, caso não enumeremos os problemas narrativos que não chegam a atrapalhar o desenvolvimento da história.

Narrado em off, para depois aparecer diegeticamente, a voz de Thaide revela o cotidiano sofrido, mas esperançoso das personagens. Como sabemos pela divulgação na época, o filme funciona como uma espécie de piloto, pois conflitos e situações passageiras, tal como a mãe de uma das garotas, interpretada por Sandra de Sá, desenvolve-se depois na versão televisiva, numa demonstração do constante consórcio entre TV e Cinema no Brasil, independente do ponto de partida e da chegada, pois ambos estão imbricados na produção mainstream contemporânea.

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Tecnicamente, a narrativa é conectada ao estilo documental. A direção de fotografia de Jacob Solitrenick faz seus milagres ao atravessar becos, vielas e escadarias íngremes trafegadas pelas personagens em suas jornadas diárias. A direção de arte de Rafael Ronconi é outro ponto forte, pois consegue emular as necessidades dramáticas das personagens e seus perfis por meio de objetos e cores bem selecionados. A trilha, assinada por Beto Villares, é bem conduzida, adorno para a edição cuidadosa e dinâmica Idê Lacreta.

Salvas as devidas proporções, Antônia é como Sex And The City, um quarteto de mulheres em busca de alcance das metas estabelecidas em seus sonhos. No entanto, diferente das necessidades das personagens brancas estadunidenses, isto é, mulheres bem sucedidas financeiramente, consumistas e constantemente questionadoras, privilegiadas dentro de um determinado ponto de vista, as jovens negras da narrativa brasileira lutam para ter acesso, direito e manutenção do básico, ou seja, comer, beber e viver, além do exercício de suas respectivas cidadanias, numa trajetória cheia de obstáculos.

Filhas do Vento

Depois do prestígio alcançado com o documentário A Negação do Brasil, o cineasta Joel Zito Araújo investiu em um projeto que trouxesse os mesmos conflitos do material documental, mas desta vez, no formato ficcional. Da ideia nasceu Filhas do Vento, um filme interessante e importante para a história recente do nosso cinema, mesmo que a sua narrativa seja cheia de conexões indevidas com o que se convencional chamar de linguagem televisiva.

Ao assumir direção e roteiro, o realizador nos oferta uma história de rancor, amor, família, sonhos e perdão, com camadas generosas de críticas ao racismo, situada em Lavras Novas, interior de Minas Gerais, cidade que fica a 19 quilômetros de Ouro Preto, espaço que já foi cenário para outra obra ficcional, A Garganta do Inferno, de Bernardo de Guimarães, o mesmo autor do famoso e polêmico romance A Escrava Isaura.

Com sua população majoritariamente negra, a cidade fundada por volta de 1716 possui laços estreitos com histórias de racismos e ecos da escravidão, temas que permeiam Filhas do Vento através dos diálogos dos personagens em constante confusão. A história começa com o encontro entre as irmãs no enterro de Zé das Bicicletas (Milton Gonçalves), pai das senhoras. Este reencontro é marcado por muita tensão, pois ambas não se comunicam há 45 anos.

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O título do filme é uma alusão ao que o personagem de Milton Gonçalves chama de “filhas do vento”, mulheres que não fincam as suas raízes, teimosas e interessadas em suas “tramas”, consideradas “irreais” pelos mais céticos, neste caso, ele mesmo, homem grosseiro, machista e ignorante.

Cida (Tais Araújo) e Ju (Thalma de Freitas) são as suas filhas. Ao contrário da irmã mais nova, Ju, Cida não se interessa pela vida no interior e sonha em ser atriz, graças aos românticos enredos das radionovelas que escuta durante a noite. Certo dia ocorre um mal entendido entre as irmãs. O pai, mais distante de Cida por conta da sua aparência com a mãe, mulher que no passado também foi dona de seu destino, acaba castigando a mais velha. Para piorar, a mais nova sequer assume a culpa do problema causado.

Entre idas e vindas, temos Ju, isto é, Dona Maura da Ajuda (Léa Garcia), mulher recebe a irmã no enterro do pai. Há tempos que ela só a via pela televisão, tendo em vista o conflito do passado. Tia Cida (Ruth de Souza), atriz que como os personagens do documentário A Negação do Brasil, também sofre os preconceitos de ser mulher negra na televisão brasileira, tem uma filha que é carrega vários conflitos por não ter conhecido o pai e cuida da sobrinha, filha de Ju, uma criatura totalmente distante do estilo de vida daquelas pessoas comuns do interior, numa postura comportamental bem parecida com a da sua tia.

Dentro deste ciclo de situações não resolvidas, elas precisarão encontrar uma forma de diálogo que dê um fim em suas “metralhadoras cheias de mágoas”. E para isso o filme conduz o espectador bem. A edição de Isabela Monteiro consegue conectar bem os tempos da história, mas o que deixa a trama balanceada na análise é mesmo o seu conteúdo. Há certo domínio da linguagem cinematográfica em alguns trechos, principalmente nas transições temporais, mas os enquadramentos e a direção de arte de Andréa Veloso parecem “sem ânimo”, formais demais ou apenas colocados para registrar uma história que tem o seu foco na postura militante do roteiro.

“Sou um novo estereótipo: figurante de filme do Spike Lee”, diz um personagem, enquanto outra profere que a sua mãe consegue alguns trabalhos na televisão, “uma escrava aqui, uma empregada ali, figuração em um terreiro de candomblé”. São louváveis as falas, parte de uma reflexão importante para um país como o Brasil, terreno onde o racismo é dissimulado, diferente, por exemplo, do caldeirão de tensões comuns aos Estados Unidos, presentes em tramas do referenciado Spike Lee.

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O problema não está, entretanto, em militar, mas em como o debate é estabelecido sem parecer acadêmico ou oriundo de cenas que parecem leitura dramática, literais, entoadas como num palco de teatro ou aula de literatura, isto é, como se estivéssemos escutando um texto escrito, sem a presença das emoções que devastam tais personagens pertencentes a um tecido narrativo tão cheio de conflitos. Por ter flertado durante tanto tempo com a dramaturgia televisiva em suas incursões intelectuais, Joel Zito Araújo traz este arsenal de gestos novelísticos que comprometem a trama enquanto cinema. No que diz respeito ao terreno conteudista, entretanto, o filme não oferece problemas, é até bem didático, o que pode agradar aos interessados em utilizá-lo como ferramenta pedagógica. Como dito por um crítico na época do lançamento, “não é preciso verbalizar o discurso político quando este já está visível”. Acho taxativo, mas de certa forma coerente. E você, caro leitor, o que acha?

A obra foi alvo de polêmica na 32ª edição do Festival de Gramado, em 2004. O crítico Rubens Ewald Filho, presidente do júri, alegou que os prêmios entregues ao filme faziam parte de uma agenda sociopolítica, algo aparentemente recorrente na contemporaneidade, época do pagamento de dívidas históricas. Acredito que haja um meio termo, mas é preciso pensar na colocação, pois ao menos o crítico foi sincero em seus apontamentos, sem necessariamente ter sido racista. Descuidado e tosco, talvez, haja vista a forma como levantou a polêmica. Independente dos problemas, Filhas do Vento passou por diversos festivais ao redor do Brasil e ganhou muitos prêmios de direção e desempenho dramatúrgico para alguns membros do elenco.

O Xadrez das Cores

Abandono e tristeza. O idoso como um fardo. Racismo e opressão. Se O Xadrez das Cores fosse um trabalho acadêmico, estas poderiam ser as palavras-chave. Lançada em 2004 e premiada em muitos festivais de 2005, a produção dirigida e escrita por Marco Schiavon nos apresenta Cida (Zezeh Barbosa), uma mulher negra na faixa dos 40 anos, funcionária de Maria (Mirian Pyres), uma senhora de 80 anos que representa a metonímia dos antepassados colonizadores: manipuladora, racista e muito preconceituosa.

Para enfrentar a sua empregadora, Cida propõe um jogo de xadrez, situação alegórica utilizada pelo roteiro para os devidos efeitos reflexivos em relação aos temas centrais (racismo e pobreza) e tangentes (superação de desafios, abandono e velhice, solidão). O filme também flerta com a submissão de muitas pessoas aos trabalhos que podemos designar como subempregos, tamanha a falta de boas condições de atuação. Cida, cotidianamente, precisa lidar com o preconceito e cinismo de Maria, uma senhora que tal como a “empregada”, também tem uma marca profunda do passado que ressoa constantemente no presente: a perda da filha.

Desta maneira, ambas serão desafiadas num enfretamento metafórico por meio de um jogo de xadrez, num debate sobre os obstáculos e desafios encontrados por dois segmentos da sociedade que são alvos de discriminação cotidianamente: o idoso e a mulher negra. Ao passo que a história avança, Cida e Maria deixam espaço para que o público as interprete adequadamente. Assim, compreendemos as suas necessidades dramáticas, delineadas por conta de seus perfis de ordem física, psicológica e social.

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Sem adquirir uma postura extremamente maniqueísta, ambas as personagens possuem traços de valor, devidamente aproximados e distanciados ao longo da evolução do enredo. Com uma abertura criativa, adornada pelos créditos artisticamente conectados com a temática da narrativa, O Xadrez das Cores segue para os diálogos objetivos de sua história. Há momentos inadequados, tal como a condução musical de José Lourenço, excessivamente melodramática, além do didatismo do roteiro, um pouco “acima do necessário”, elementos que não chegam a comprometer a “mensagem” do curta-metragem, mas que tornam a produção um exercício médio de linguagem cinematográfica.

Visualmente aprimorada, a narrativa traz Irene Black na direção de arte, cuidadosa na construção da ambientação doméstica onde o jogo de xadrez se desenvolverá. Gilberto Otero cumpre bem a sua função na direção de fotografia, funcional na captação de alguns detalhes, tais como gestos e olhares das personagens, fluídos na montagem de Fábio Gavião.

Debates sobre “Jesus ter sido um homem de olho claro” e “xadrez ser um jogo que preto só conhece na delegacia”, juntamente com cenas externas ilustrativas, de crianças “duelando” com armas de brinquedo na rua, enquanto Cida segue para o trabalho, nos revela o caráter de denúncia da narrativa, pouco discreta, mas longe de “gritar” para o público a sua mensagem. A personagem, longe dos arquétipos de coitadismo, distancia-se da vitimização para assumir uma postura de enfrentamento e embate, questionando o seu lugar dentro da sua própria história.

Sendo assim, em seu desfecho, O Xadrez das Cores deixa claro que o preconceito pode ser pensado como uma espécie de subproduto do racismo, representado na narrativa pela hostilidade sofrida por Cida no bojo do relacionamento interpessoal com Maria. Como sabemos, o racismo se revela quando um grupo (Maria, branca) afirma que outro (Cida, negra) é inferior ao seu, pautado por atribuições de características negativas que pretendem reforçar a invalidez do “outro” em relação ao “eu/nós”, modelo de relação de poder legitimada por eras na formação do povo brasileiro e ainda muito vigente na contemporaneidade, às vezes disfarçadamente, noutras escancaradamente estampada, para todo mundo ler, ver e interpretar.

Os 12 Trabalhos

A trajetória de Hércules na mitologia grega é árdua, mas ele é dotado de algumas capacidades sobre-humanas que o permite ascender em sua caminhada repleta de desafios. Dentre as missões de sua penitência, séries de episódios que formam uma narrativa amarrada, ele precisa estrangular um leão peculiar, matar um monstro de várias cabeças, enfrentar um touro que lança chamas, dentre outros desafios complexos. Na versão brasileira, comandada por Ricardo Elias, o nosso herói recebe um feixe de missões, todas enfrentadas arduamente pelos corredores de São Paulo, espaço cênico que se comporta como um personagem.

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Com roteiro assinado por Ricardo Elias, em parceria com Hilton Lacerda, Claudio Yosida, Arthur Autran e colaboração de Luís Alberto de Abreu nos trechos de narração, em termos de premissa, Os 12 Trabalhos é objetivo. A trama nos apresenta Héracles (Sidney Santiago), jovem negro da periferia que saiu recentemente de um programa correcional, haja vista o seu envolvimento com tráfico no passado. Ele agora busca a sua redenção, a liberdade almejada para sair da condição opressora que o levou para os caminhos da marginalidade. Quem o ajuda é o primo Jonas (Flávio Bauraqui), amigos desde a infância e uma das pessoas que mais confiam no potencial do rapaz.

A oportunidade que surge é o trabalho como motoboy. Para demonstrar capacidade na execução dos serviços, Héracles é designado a realizar 12 tarefas, tal como o mito grego, no filme, transformado em 12 entregas, cada uma com sua dose de dificuldade, todas num único dia. Se conseguir, ganhará a vaga e terá alguns “privilégios”. Uma das necessidades dramáticas do protagonista é o seu desejo de corrigir a imagem anterior, numa busca incessante pelo devido exercício da cidadania. O trajeto, no entanto, não será fácil, pois Héracles precisará lidar com preconceitos, burocracias, grosserias e outras celeumas típicas dos relacionamentos humanos.

Ele é um dentre tantos jovens em condições desastrosas em nosso cotidiano. A sua luta e o trabalho a que é submetido, isto é, a função de motoboy, apresenta ao público o que muitos já sabem: a execução do trabalho sem oferta de segurança, a ausência de direitos trabalhistas, a precariedade das condições de deslocamento, dentre outros fatores internos e externos que refletem na saúde de tantos jovens em busca de oportunidades num sistema cada vez mais sufocante. Em sua jornada, precisará enfrentar leões, alegoricamente, mas nada que não seja desafiador. Dentre os desafios, há a moça que deseja ser modelo, a senhora aposentada e seu gato, o idoso solitário que lhe paga para ser companhia na busca por exames, etc.

A trilha sonora de André Abujamra entrega o clima musical ideal para o contexto, acompanhamento das imagens que captam a cenografia e direção de arte, assinadas por Patrícia Peccin e Ana Mara Abreu, respectivamente. Para nos contar essa história, Carlos Jay Yamashita desenvolve um apurado trabalho na direção de fotografia. Os seus filtros indicam o caos e a sujeira das zonas paulistas radiografadas pelo enredo. A fotografia, cabe ressaltar, é um dos elementos que contribui com a transformação de São Paulo, um espaço que se assemelha a um organismo vivo, intenso, febril, caótico e prestes a explodir de tanta tensão.

Em seu filme de estreia, Ricardo Elias já deixava tais questões latentes, com as vias urbanas apresentadas aos espectadores de maneira caótica. Em Os 12 Trabalhos, ele amplia as dimensões de circulação dos personagens em meio aos seus conflitos. Héracles, em busca por sua redenção, desenha as histórias que vive em seu caderno, como estratégia para desanuviar e evitar, assim, sucumbir diante de tantos problemas. Num diálogo com a atualidade, o filme retrata uma situação que desde o seu lançamento, não mudou para melhor, pois a precariedade do ambiente de trabalho ainda é gritante.

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Última Parada 174

Uma história inspirada em acontecimentos polêmicos e tensos, envoltos numa atmosfera de intensa crítica social, mas contada no bojo da ficção de maneira pouco magnética. Foi assim que a Última Parada 174 teve a sua recepção em minha primeira incursão, numa opinião que continua amalgamada tantos anos depois. Bruno Barreto, cineasta experiente na seara da produção brasileira, homem de tantos acertos no passado, dessa vez, deixou bastante a desejar.

A trama todo mundo praticamente já conhece. Um jovem infrator, chamado Sandro do Nascimento, com passado urdido em meio ao ambiente violento da favela, bem como a experiência da chacina da Candelária e outras celeumas sociais tipicamente brasileiras, toma um ônibus de assalto no Rio de Janeiro, no ano 2000, faz reféns e termina a sua trajetória de maneira trágica, levando consigo uma vítima que sequer imaginava participar de uma trama com personagens sociais tão incapacitados para lidar com conflitos humanos, isto é, “a despreparada polícia nossa de cada dia”.

O plano circular em torno da estátua do Cristo Redentor já nos situa no tempo e espaço onde a história de violência física e psicológica se desenvolverá: o fervilhante centro urbano carioca, cartão-postal para turistas e ponto demarcado no mapa da violência brasileira. Transmitido em rede nacional e em canais internacionais, o evento de grande repercussão é um dos maiores exemplos da negativa influência midiática no desenvolvimento de parte da opinião pública.

No documentário de José Padilha a história envolve e se destaca pelo nível de perplexidade que ficamos diante dos depoimentos colhidos, mas na seara ficcional, a tentativa oportunista de recriar a trama e inserir personagens para ampliar o feixe catártico da narrativa não ajudou, ao contrário, tornou o filme uma história visualmente interessante, mas dramaticamente estéril. A professora Geysa, por exemplo, uma das grandes vítimas da história, tem a sua trajetória anulada.

O que interessa a dupla formada por Bruno Barreto e Bráulio Mantovani é a suposta crítica social ao alijamento que tornou Sandro do Nascimento, aqui interpretado por Michel Gomes, um bandido perigoso. O ator entrega um desempenho dramático de grande esforço, haja vista o texto impreciso e a construção de um personagem esférico apenas porque sabemos da trama narrada por vias documentais na produção de José Padilha. O Sandro de Mantovani, no entanto, carece de empatia, o que nos distancia da catarse.

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Tudo acontece muito velozmente, o que impede o processamento dramático do espectador diante do que é apresentado. Sandro é o único membro da plateia de um espetáculo de sangue peculiar: o assassinato de sua mãe. Ele tenta viver dignamente com a tia, mas o marido da tal senhora não está interessado em abrigar o jovem em sua residência, o que faz Sandro se afastar e ganhar a vida nas ruas. Em poucos cortes, já nos deparamos com a chacina, com a primeira incursão sexual de Sandro, com os pequenos delitos e com a ida para o reformatório, local que trata de lhe arranjar um algoz logo de cara, para na cena seguinte, transformá-lo em melhor amigo.

Juntos, a dupla sai da cadeia e parte para uma vida de crimes e farra. Certo dia um assalto dá errado e a dupla se separa. O Alê Monstro (Marcello Melo Jr.), versão demonizada do personagem de Sandro, metáfora para o seu contraste angelical, criatura existente apenas na seara ficcional, torna-se por instantes o mentor de Sandro. É quem lhe ensina a matar e lutar para sobreviver na vida que ambos escolheram para si, ou como aponta o determinismo social do filme, a sobreviver diante das oportunidades que lhe são concedidas. Tal como os personagens do cortiço grotesco de Aluísio de Azevedo, Sandro e Alê são “frutos do meio”.

Diante do exposto, finalizo a reflexão reiterando que Última Parada 174 é um filme sem emoção que, ao adentrar num esquema narrativo desgastado, sem trazer um ponto de vista que acrescente algo ao assunto que na época, era parte de uma memória ainda muito recente e intensa, reforça o estereótipo da violência nas favelas, uma das temáticas prediletas dos filmes da chamada pós-retomada. Uma história que passava por um processo de cicatrização social encontra no esquemático roteiro de Bráulio Mantovani mais “um dedo na ferida”. O que podemos perceber é que faltou maior engajamento. Sobrou apropriação. Em resumo: um filme sem coesão interna e usuário de metalinguagem sem as devidas referências, isto é, um equívoco cinematográfico.

A postura dos realizadores nos remete ao que a pesquisadora Denise Silva Macedo reflete em Discursos nas Práticas Sociais, elucidativo livro que envolve o campo da comunicação social numa perspectiva crítica.   Ela afirma que a mídia se apodera de um suposto discurso neutro, aparentemente interessado em informar, de maneira objetiva, os fatos. A “informação-serviço” se confunde com a “informação-produto”, ou seja, tudo se torna objeto de venda de audiência, tendo a notícia como “valor de mercado”.

Levado para o campo do cinema, os realizadores de Última Parada 174 investem na mesma postura, interessados talvez na repercussão financeira de uma história que tem a polêmica como eixo gravitacional. Num cínico e entediante ponto de vista narrativo, construído com base em imagens já prontas em arquivos de dados da mídia brasileira, o filme se ergue em meio ao infértil roteiro que provavelmente agrada apenas aos que flertam com a linguagem dramática das produções da Rede Globo.

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Sobre o roteiro, há alguma humanização na assistente social Walquiria (Ana Cotrin) e uma necessidade dramática convincente no desenvolvimento de Marisa (Cris Vianna), mas como já apontado, a obviedade de outras situações e falta da mínima complexidade de outros personagens tornam o exercício narrativo pífio. Conforme relatos de entrevistas na época do lançamento, o cineasta afirmou que “ele e o Bráulio usaram a realidade só como ponto de partida, pois a proposta desde o início era a reflexão emocionada da realidade que deu origem a história”. As intenções foram as melhores, caro leitor, mas como reitera a fala popular, de boas intenções o inferno está cheio.

Maré – Nossa História de Amor

Abelardo e Heloísa. Tristão e Isolda. Dé e Nina. Ah, e Romeu e Julieta, uma das peças teatrais mais famosas de um dos maiores dramaturgos da história, segundo o crítico literário Harold Bloom e os seguidores do cânone literário ocidental. Entre 2007 e 2008, a história de amor entre famílias rivais e amores “impossíveis”, ganhou duas traduções intersemióticas (termo adequado para adaptação, tendo em vista que dentro do campo semiótico, a história sai de um suporte e se apresenta em outro). Era Uma Vez e MaréNossa História de Amor.

A primeira, um drama urbano situado entre a favela e a elite do Rio de Janeiro trouxe elos mais distantes com a peça em questão, mas não deixou de ser assumidamente uma releitura. No caso da história situada na favela Maré, local que há décadas começou como palafitas e passou por um processo de urbanização que aumentou vertiginosamente a sua população, e por sua vez, as tensões sociais, a pobreza e o tráfico de drogas, a presença de Shakespeare é mais notável, pois é citado em algumas passagens e possui um roteiro mais debruçado na tragédia renascentista.

Dirigido por Lúcia Murat, profissional que também assina o roteiro, em coautoria com Paulo Lins, Maré – Nossa História de Amor nos traz a história de amor entre Analídia e Jonatha. Eles desejam ser dançarinos e é numa ONG que ensina dança para pessoas carentes que eles se encontram. Ambos sabem os perigos de assumirem um relacionamento. Ela é uma garota de 16 anos, cheia de sonhos, prima do chefe do tráfico de um dos lados da favela. Ele, morados do outro lado, é um representante cultural do espaço, atua como MC e ainda é estudante de dança, o que desagrada o seu irmão, uma das pessoas que não o apoia. O rapaz ainda tem o sonho de gravar um CD. Amigo de infância de Dudu (Babu Santana), chefe do tráfico de um dos lados da favela.

Nessa história temos a intermediária entre a favela e o “outro” lado da cidade. É Fernanda (Mariah Orth em ótimo desempenho), bailarina no passado que aceita trabalhar com os jovens, mesmo que sem muito interesse inicialmente, mas ao passo que seu personagens evolui, ela se integra aos jovens e consegue dar corpo aos seus projetos no local, sempre no fogo cruzado entre os lados rivais, na tentativa de conseguir realizar algo diante de uma realidade tão desoladora.

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Os traficantes responsáveis por estabelecer os conflitos na trama são Bê (Jefchander) e Dudu, o já citado Santana, um dos melhores desempenhos dramatúrgicos do filme. No auge da sua juventude, Bê tem 20 anos e disputa o lado esquerdo, enquanto Dudu, líder do lado direito, é conhecido por seu comportamento destemperado e violento, o que ocasionalmente causa medo em algumas pessoas, exceto em Jonatha, rapaz que ele trata com carinho e esmero.

Alguns comentaram que os números musicais que comentam o que a cena em si já nos faz experimentar surge como um ruído narrativo. Prefiro discordar e ver como uma espécie de metáfora para o coro da tragédia, elemento cheio de significação e que não incomoda em nada. Ao passo que os 104 minutos avançam, você se afeiçoa pelo lado dos vermelhos (Analídia) e dos azuis (Jonatha), mergulha num caldeirão de representações culturais com direito a hip-hop, grafite, dança de rua e o prólogo do texto clássico recitado por rappers em um trecho, organizado dentro da montagem tão eficiente quanto a direção de arte.

Romeu e Julieta pode ser considerado um daqueles textos que parece ser adaptável para qualquer contexto, talvez por isso, seja tratado como “universal”, termo visto com desdém pelos estudos literários oriundos de correntes teóricas mais contemporâneas, mas o fato é que só no cinema brasileiro, a história de amor já apareceu diversas vezes. Em 1935, no Rio de Janeiro, a sua primeira versão foi levada aos cinemas, num formato curto com película preto e branco e 35mm. Como muitos registros do começo de nossa história cinematográfica, este é mais um de que só se tem notícias por documentos e críticas.

Em 1961, O Candango da Belacap, um dos ícones da chanchada, também se entregou ao texto de Shakespeare e trouxe a famosa cena da sacada, num tom paródico. Outras iniciativas já emularam a obra, tal como a comédia O Casamento de Romeu e Julieta e alguns programas televisivos, mas poucos tiveram a faceta crítica do romance musical ao estilo Amor Sublime Amor. Lúcia Murat, cineasta corajosa e militante no que diz respeito ao cinema autoral no Brasil, fez muito bem o seu trabalho.

O filme estreou comercialmente em abril de 2008, mas em 2007 passeou por alguns festivais, por sinal, muito premiado. Um crítico escreveu na época que se tratava de uma história de balas e beijos. A paródia com a música popular é interessante e certeira, pois o filme tem bastante disso. Entre beijos acalorados e desejo de mudança, há uma crítica social que descortina os males da política, da cultura e da educação no Brasil. Há o traficante “gente boa” que ajuda com dinheiro, mas no fundo os seus interesses territoriais falam mais alto. A fuga de Analídia e Jonatha não é apenas explosão dos hormônios da juventude, mas na verdade, representa uma vida longe daquela realidade, algo que nem sempre os jovens têm a oportunidade de escapar. Triste favela!

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Anote as nossas dicas e até a próxima, combinado?

Leonardo Campos é Graduado e Mestre em Letras pela UFBA.
Crítico de Cinema, pesquisador, docente da UNIFTC e do Colégio Augusto Comte.
Autor da Trilogia do Tempo Crítico, livros publicados entre 2015 e 2018,
focados em leitura e análise da mídia: “Madonna Múltipla”,
“Como e Por Que Sou Crítico de Cinema” e “Êxodos – Travessias Críticas”.
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