
Professor Leonardo Campos
Um encontro de bastante aprendizado e encantamento. É assim que podemos definir a edição do tradicional Roda Viva, na TV Cultura, programa que há 30 anos, entrevista personalidades notórias e, em sua última edição, teve a escritora Conceição Evaristo como parte de uma emocionante roda de conversa. Na atração, a premiada representante da literatura negra e feminina na contemporaneidade versou sobre temas diversos, conectados com o seu universo cheio de intensas palavras. Apresentado por Vera Magalhães, o programa deu espaço para a autora de Becos da Memória, Ponciá Vivêncio e Olhos D’agua traçar um painel sobre racismo estrutural na sociedade brasileira, bem como retratar temas como meritocracia, modo de produção literária, memória, oralidade, preconceito linguístico, reconhecimento internacional antes da aclamação nacional, Carolina de Jesus e Quarto de Despejo, o termo escrivivência, hoje um conceito amplo e bastante discutido, com espaço para traçar uma crítica do atual estado em que se encontra o Brasil, em especial, as suas tenebrosas representações políticas, assunto desolador que ressignifica o feriado da independência que antecedeu a sua presença no programa, exibido no dia 06 de setembro de 2021.
Durante cinco blocos divididos ao longo dos 90 minutos do programa, Conceição Evaristo sabiamente dialogou com os entrevistadores, tendo sempre a sua obra como elemento norteador dos tópicos abordados. Elisa Lucinda, atriz e também escritora, militante que há décadas atua ao lado da entrevistada, trouxe logo no começo um ponto assertivo sobre as questões raciais, apontando que no passado, as mulheres negras de outras gerações contavam histórias para ninar as crianças da Casa Grande, diferente de hoje, tempo em que elas escrevem para acordar os habitantes deste espaço de privilégios. Ela, por sinal, é uma das responsáveis pelas melhores perguntas destinadas para a escritora responder, convidada que aparentemente foi orientada a não se alongar muito com as respostas, direcionamento que não parece atrapalhar Conceição Evaristo, sempre muito pontual e assertiva em suas colocações.
Ela versou sobre a escrivivência, termo utilizado aleatoriamente e que acabou se tornando um conceito acerca das experiências coletivas dos afro-brasileiros, memória transformada em ficção; sobre o conto A Gente Combinamos de Não Morrer, da coletânea Olhos D’agua, abordou a questão que fecha a pequena história, isto é, a afirmativa “escrever sangra”. Nascida rodeada de palavras, Evaristo conta o quão teve influência da oralidade e do gestual das histórias contadas por seus tios e mãe, fundamentais para a sua formação e interesse pela literatura, comentando ainda sobre o seu processo criativo, lento, calmo, ameno, também envolto em muitas emoções, algo que inclusive a faz chorar quando escreve, tal como alguns de seus leitores alegam fazer enquanto consumidores de sua produção. Noutro trecho bem interessante, ela comenta sobre o reconhecimento por aqui após o sucesso de Becos da Memória na França, trecho que reflete a relação do brasileiro em valorizar o que tem apenas quando há legitimação externa, situação que dialoga muito com o nosso complexo de vira-lata.
Carolina de Jesus e Quarto de Despejo são os grandes destaques de sua participação. A escritora defende a autora do diário de uma favelada e aponta que o apagamento das marcas de escrita de “Carolina” não deve acontecer, pois até mesmo naquilo que consideramos “erro”, a curva sinuosa diante da norma, o texto do diário é carregado de elementos muito simbólicos, de extração desnecessária e perigosa para a autenticidade da escrita. O debate acaba se ramificando para o preconceito linguístico, um tema importante quando estamos diante de reflexões sobre apropriação cultural que envolve trocas linguísticas. Ademais, além de tocar em todos esses pontos já abordados em suas entrevistas em anos anteriores, a convidada destaca o complexo processo de candidatura para a Academia Brasileira de Letras e seu lugar de exceção que confirma uma regra, algo que a amedronta por causa da possibilidade de associarem a sua trajetória com a mitológica meritocracia. Em linhas gerais, um encontro formidável, com bastante aprendizagem, ponto de partida para você, caro leitor, que ainda não conhece a escrita de Conceição Evaristo, dedicar-se ao universo lírico e reflexivo da autora.