Ícone do site Bahia Pra Você

Cabeça de papel

Interpretei o D. Pedro I na escola. No acanhado pátio havia um rio Ipiranga imaginário. Os cavalos ficaram de fora. Seria demais projetá-los. A diretora bancou o

Marcus Borgón – Escritor

Interpretei o D. Pedro I na escola. No acanhado pátio havia um rio Ipiranga imaginário. Os cavalos ficaram de fora. Seria demais projetá-los. A diretora bancou o Pedro Américo, e fez o quadro histórico do momento, com sua câmera Love. Nunca tive acesso a esta fotografia. O que salvou minha memória de mais um constrangimento. Afinal, eu declarara a independência do país, daqueles que eu mesmo representava. Fora a imensa costeleta que se juntava ao bigode, que acabou por zerar o lápis de olho da minha mãe. Ela praguejou contra toda a árvore genealógica dos Orleans e Bragança. No mesmo ano, em novembro, teve o desfile da pátria. Marchamos pelo bairro. Fui na frente segurando o brasão da aeronáutica. Eu que nunca tive destaque em nenhum dos âmbitos da meninice (futebol, traquinagens, valentia, etc.), era então colocado na dianteira das atenções. Os holofotes não me seduziram a vaidade, apenas me levaram à exaustão.

D. Pedro mandou que avisassem à nação que a independência estava proclamada, afinal, quase ninguém testemunhou o seu ato de “bravura”. Ondas cíclicas movimentam a História. Quase duzentos anos depois, novamente a liberdade é invocada por quem mais a deprime. Quase quarenta anos atrás fiz uma representação banal de uma passagem que nos fora ensinada. Assim como a coroa que me acoplaram na cabeça, nossos heróis oficiais também eram todos de papel. A história contada pelos vencedores e a distância dos fatos amenizavam a ignorância do nosso júbilo.

O cansaço que senti depois daqueles dias – só mais tarde pude entender – era um pouco de tédio. Os colegas que estiveram comigo naquela imberbe jornada, hoje pouco se recordam. Dá um certo alívio saber disso. Em geral, aventuras fajutas tendem a desaparecer na poeira do tempo.

Sete de Setembro é a avenida em que passo quase diariamente. Vou ao banco, faço compras, corto o cabelo. Sobretudo, observo o movimento. Exceto na data que lhe empresta o nome. Já fui o D. Pedro do quepe de cartolina. Até hoje sinto o fastio. Por isso guardo o feriado com o devido respeito (à minha sanidade). E distância de seus arautos.

Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
Sair da versão mobile