Bahia Pra Você

As pegadas de Caim

Marcus Borgón

Ia para o terceiro dia de ausência de meus pais. Com dores, minha mãe disse que voltaria com meu irmãozinho. Eu olhava para o berço dele montado, onde antes havia uma cômoda com minhas roupas. Com três anos de idade, o intervalo de setenta e duas horas parece uma pequena eternidade. Tia Benedita resolveu fazer um pudim de leite, para distrair a agonia que se apossava de mim com qualquer barulho de motor que vagamente lembrasse o do TL esverdeado de meu pai. Desde muito cedo descobriram que eu era facilmente fisgado pela boca, algo que se repetiria por toda a minha vida.

Minha mãe chegou quase se arrastando, e nos braços de meu pai aquele pacotinho que puseram ao meu lado no sofá. Os olhos de minha tia se encheram de lágrimas, “coitadinho, quase que não vinha pro mundo”. O rosto levemente afundado e a cabecinha toda arroxeada. Eu não entendia muito bem as conversas que diziam que no final a intenção era apenas salvar a mãe.

Aquele distanciamento de três dias se estenderia por anos. E com isso a minha curiosidade sobre aquele pequenino ser se convertia, dia a dia, em ciúme e revolta. Ninguém mais me notava ou achava graça das minhas estrepolias. Ele foi crescendo, e invadindo cada vez mais o meu espaço, mexendo nos meus brinquedos, andando no meu encalço. Ainda deu para ter os cabelos lisos, o que me deixava transido de inveja. Os meus, rebeldes e encaracolados, tinham que ser molhados constantemente e penteados para o lado para que se aprumassem.

Ele me seguia o tempo inteiro, e eu inventava brincadeiras perigosas que ele não conseguia imitar. E então se debulhava em lágrimas, e minha mãe intercedia em seu favor. Mas, ele dava trabalho para comer e chorava sem qualquer motivo, invariavelmente de madrugada. “O outro era tão quietinho, e esse abre o berreiro a troco de nada”. Enfim, eu gozava de uma pequena vingança que ele mesmo se encarregara de pôr em curso.

Meu pai praticamente não me enxergava mais, apenas o “cotozinho”, que era quase uma miniatura dele. Uma admiração narcísica, mostrando as fotos de criança para as visitas, “a mesma carinha do caçula”. Aos três anos ele também perderia o posto para a nossa irmã, que se aninhara no peito paterno de uma forma a não permitir qualquer mutualismo ou concorrência. Ele ainda contava com o afeto de nossa mãe, enquanto eu, acostumado ao desamparo de ambos, esgarçava ainda mais as relações com minha inaptidão às demandas práticas da vida. Ele desde pequeno se mostrava metódico e organizado. Um projetinho de administrador. Ao contrário de mim, que carregava a pecha de bagunceiro e relapso. Para a madre superiora, estas eram qualidades inconcebíveis a alguém com nossa condição. “Pobre relaxado deveria nascer morto”.

Eu ainda levaria tempo para conhecer Mário Quintana e seu “Da preguiça como método de trabalho”, mas era também a preguiça o meu combustível para não perder de ano na escola. Ter que repetir tudo de novo me apavorava. E por razões obscuras, dessas que o universo carrega em suas entranhas, meu irmão tinha um desempenho escolar bem abaixo do meu. Eu imagino o nó na cabeça de nossa mãe para sustentar sua tese sobre as pessoas que se davam bem na vida.

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De vez em quando, ele resolvia pegar as fotos da família, e, olhando-as numa sequência aleatória, empacava que havia sido abandonado na praia. E chorava. Ele ali, na sala de casa, reclamava que o deixaram lá sozinho. E numa das fotos em que aparece sorrindo, cismava que na verdade estava desesperado, sem ninguém em volta. Eu perguntava quem havia tirado a foto, e ele dizia que certamente algum estranho, com pena.

Um dia ele me chamou a atenção para uma música que tocava no rádio e dizia “venenosa êêêê”, e passamos a prestar atenção naquele estilo empolgante e de letras divertidas que invadiu o dial. Nos falava muito mais que os sambinhas de Vinícius e de Chico que a mãe ouvia à exaustão nas manhãs de domingo.

Com o nascimento de nossa irmã, e seu boletim cada vez mais pintado de vermelho, ele foi perdendo um pouco de moral em casa, e se aproximou mais de mim. Na hora de dormir, me pedia para contar o histórico do Brasil nas copas recentes. No dia seguinte, eu tinha de repetir, pois ele não lembrava de mais nada após o gol de Éder contra a União Soviética. E assim, passamos os anos a compartilhar os jogos, os discos, as revistas, as camisas dos Ramones, as agruras, e a combalida esperança num futuro melhor. Ele saiu de casa antes de mim, e o nosso quarto diminuiu, ao invés de ficar mais espaçoso. Parecia cada vez mais apertado, quase me expulsando dali. Eu descobri que quem me acolhia não era a casa.

A distância dos dias e os pleitos de sobrevivência nos tornaram uma lembrança pálida daquilo que fomos, como a fotografia em que estamos no sofá, ele recém chegado da maternidade, a cabecinha em meu colo. O seu olhar curioso e o meu sorriso largo diziam muito mais do que a palavra fraternidade é capaz de sugerir. E é esse passado em comum (o desatino não cometido, e em vez da fuga, a reconciliação) que afiança meu sentimento. Apesar de toda a polidez e das inexplicáveis mesuras com que nos tratamos hoje em dia. Na semana que vem ele faz aniversário, e eu me recordo que prestes a completar um aninho, ele só balbuciava coisas desconexas e ininteligíveis. Quando, de repente, uma palavra fluiu de forma cristalina: maninho.

Marcus Borgón colaborou com a revista de cultura
e literatura Verbo21. Publicou textos em jornais,
sites especializados em literatura, e coletâneas de contos.
É autor da novela ‘O Pênalti Perdido’ (P55 edições, 2016).
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