
Professor Leonardo Campos
O interesse pela prática geralmente é maior que o teórico, mas a autoescola, como sabemos, não é importante apenas por ser legalmente requisitada. Essa é uma oportunidade de preparo para aqueles que desejam algo além da aprovação no exame para condutor. É um momento de compreensão das leis, da comunicação verbal e não-verbal dos sinais e placas de trânsito, dentre outros pontos necessários para a direção segura, firme e livres de sinistros e multas. O texto que você começou a ler é uma reflexão sobre a autoescola, referenciada em três produções cinematográficas que retratam a habilitação como um elemento de formação da cidadania dos personagens que interagem nestas histórias. Cada narrativa parte de um viés diferenciado, mas todas, inclusive as mais cômicas e aparentemente só diletantes, fazem uma abordagem crítica da relação entre futuros condutores, mergulhados em situações de crise com essa etapa considerada cheia de obstáculos e desafiadora para muitos. Desejamos, desde já, boa leitura.
Sem Licença para Dirigir: a ausência de carteira de habilitação como ato de rebeldia
Muitas pessoas dedicadas aos ideais de liberdade supostamente conquistados pela carteira de habilitação se preocupam extensivamente com o desenvolvimento adequado do exame prático, última etapa do processo para se tornar um condutor devidamente registrado, deixando de lado outra fase também muito importante, a prova teórica, eliminatória ao se ofertar para os avaliadores como uma forma de observar se o candidato possui conhecimento sobre trânsito e mobilidade, adquiridos ao longo da vida, mas organizados durante os módulos estudados na autoescola. Les Anderson, personagem de Corey Haim na comédia Sem Licença Para Dirigir, é uma ilustração didática deste tipo de perfil. Como a maioria dos adolescentes, ele é um rapaz que projeta no automóvel que ganhará dos pais e no documento de habilitação, a liberdade tão almejada para ser considerado “irado” na escola, bem como conquistar a garota dos seus sonhos, uma jovem chamada Mercedes, alguém que o roteiro convenientemente deu o nome de um carro, para atender aos requisitos temáticos desta humorada narrativa de 90 minutos, lançada em 1988.
Logo nos créditos de abertura, o filme orquestrado pelo cineasta Greg Beeman trata de nos inserir na atmosfera de uma trajetória que tem no trânsito e na mobilidade urbana, os principais espaços para a construção dos conflitos enfrentados pelos personagens. São placas, sinalizações horizontais, semáforos e outras referências ilustrativas, presentes antes da história do jovem Les Anderson ter o seu início. Na trama, ele realiza o exame de seleção para conseguir o documento de habilitação, mas infelizmente é reprovado, situação que o afasta dos sonhos almejados com tanta ansiedade. Ele e seu amigo Dean (Corey Feldman) já vivem aventuras cotidianamente na rua, em casa e na escola. Com a possibilidade de assumir a direção de um automóvel, esses momentos de diversão prometem se tornar ainda mais emocionantes. Há, no entanto, o obstáculo legal já mencionado, algo que não é impeditivo para o rapaz pegar o carro do avô, emprestado para o seu pai por um tempo determinado. Ele assume o controle do sofisticado automóvel e segue numa aventura cheia de desafios eletrizantes, colocando não apenas a sua integridade física em jogo, mas também pondo em risco tudo e todos ao seu redor.
Tudo isso é movido por sua paixão pela bela Mercedes (Heather Graham), uma garota que provavelmente não lhe daria importância se não fosse a posse de um carro pelo rapaz. Ela é atraente e desejada por outros garotos da escola, alguém que salvaguardas as devidas proporções, pode namorar o jovem que quiser. Ele, no entanto, encontra numa breve oportunidade de flerte a chance de conquistar a moça que se torna o alvo de seu coração apaixonado. É quando começam os problemas. Ansioso e chateado, Les ainda precisa enfrentar o castigo estabelecido pelos pais, casal que o confina ao descobrir que ele voltou do exame de seleção e mentiu sobre a aprovação. Acuado, ele precisa enfrentar duas semanas de reclusão, mas já na primeira noite, pega o carro da família escondido e sai para uma aventura que mudará a sua vida para sempre. Os tais momentos eletrizantes envolvem a bebedeira de Mercedes, a perda da consciência, alguns atritos com outros carros na rua, o pagamento ilegal de uma taxa “por fora” para o motorista do guincho para se livrar de uma demanda, dentre outras situações.
Para quem conhece o cinema dos anos 1980, consegue logo associar Sem Licença Para Dirigir com o estilo de produção da época, uma era cheia de especificidades, com um determinado personagem lidando com tudo e todos, além do enfrentamento do sistema, tendo o ideal estadunidense de liberdade a qualquer preço como combustível condutor de suas ações. Há um clima ao estilo Curtindo a Vida Adoidado, numa trama que observada diacronicamente, apresenta problemas que vão além dos problemas de trânsito e mobilidade segura, retratados em quase todas as cenas desta vertiginosa comédia. É de se espantar que uma trama com tantas insinuações sobre sexo na juventude não toque em um momento sequer no vocábulo “preservativo”, haja vista a ascensão do HIV e da AIDS no país ao longo de toda aquela década. Muito estranho, mas enfim, é uma narrativa de um período, com determinados maneirismos, coisa que observamos mais detidamente pelo descolamento temporal, ao olhar para algo de 1988 em pleno 2021, uma era com tantas transformações sociais a nos envolver.
Ademais, como narrativa de entretenimento, Sem Licença Para Dirigir funciona adequadamente. É um filme com momentos bobos, mas que nos permite compreender o que está por detrás da ânsia do público jovem por um automóvel. O que podemos perceber nitidamente é a ausência de um carro como sinal de fraqueza para o jovem que não o detém ou precisa dos pais para realizar deslocamentos em eventos e demais situações especificas de mobilidade. Como paquerar, ser autêntico e conquistador sem um automóvel, de preferência, sofisticado e veloz? Esse é o ideal que logo nos primeiros minutos de filme, a irmã do protagonista Les Anderson debate na mesa do jantar com a família. Indignada, a moça aponta a opressão que um carro representa para determinadas pessoas, debate aparentemente simples, mas que embasa algumas possibilidades de reflexão expostas pelo discurso de um filme que para muitos, poderia ser apenas uma narrativa de entretenimento mediano para o público.
Com direção de fotografia de Bruce Surtees e acompanhamento musical agitado de Jay Ferguson, Sem Licença Para Dirigir é burocrático em sua construção estética, sem grandes momentos memoráveis nos requisitos visuais e sonoros que o definem como filme. Isso, no entanto, não desmerece a produção enquanto narrativa que ainda funcione para os espectadores contemporâneos. Lançada há três décadas, a comédia brinca com o que a psicóloga clínica Maria Eduarda Cardoso Guedes, especialista em Terapia Cognitiva Comportamental, fala sobre os jovens e as suas ideias acerca da suposta liberdade adquirida com a habilitação, documento que representa para muitos deles, o passaporte para a vida adulta, o alcance da independência e a dissociação do contato obediente diante dos pais/responsáveis. O roteiro assinado por Neil Tolkin insere na trama, situações que impediriam um jovem brasileiro, regido por nosso Código de Trânsito, de atender ao que se pede no artigo 147, trecho que reforça a necessidade de realização das etapas de um processo de formação, isto é, a autoescola, para garantir o documento que lhe permite ser condutor.
Les Anderson é muito autoconfiante, mas não possui suporte emocional para ser um bom motorista, algo que a produção divertidamente celebra no desfecho, sem a habitual busca pelo reestabelecimento da ordem após tanto caos. O jovem, agora no carro da namorada, ganha as ruas da cidade de maneira aventureira sem ter conseguido a habilitação tão almejada. Essa é uma manobra diferente para os filmes hollywoodianos que geralmente gostam de manter tudo em ordem e conforme as regras sociais. Ele acena para a família, corre para o carro da garota, assume o volante e mesmo sem cinto de segurança, sai a cortar a rua feliz e radiante, tendo no carro a representação da sua vitalidade e autoconfiança, mesmo após uma exaustiva noite de trapalhadas de trânsito. É um final irônico, divertido, mas uma manobra bastante perigosa, tal como as ações realizadas na noitada com o amigo Dean e a namorada dos seus sonhos, a garota bêbada que lembra vagamente de tudo que viveu na saga que domina mais da metade da narrativa. Recentemente, um grupo de produtores anunciou o interesse por uma refilmagem desta história, agora, protagonizada por uma garota. Agora é aguardar para conferir os resultados.
Um Trânsito Muito Louco: autoescola como punição e ressocialização
Conseguir a carteira de habilitação é um processo que deixa muita gente tensa. Alguns passam de primeira e outros dependem de oportunidades adicionais para a aprovação de algo que está cada vez mais burocrático, haja vista a necessidade dos órgãos de fiscalização e educação ampliarem as exigências para os candidatos ao posto de condução, um “trono” que pede muita responsabilidade e inteligência emocional para ser ocupado. Assim, para aqueles que conseguiram a aprovação e já conduzem os seus automóveis, perder a licença é algo talvez ainda mais doloroso. Por leviandade, muitos perdem não apenas pontos, mas zeram as chances de manter os seus respectivos documentos de habilitação, algo que parece representar o retrocesso para alguém que um dia, foi avaliado e recebeu liberação para dirigir. Esse é um tema que podemos observar presente por meio do humor escrachado em Um Trânsito Muito Louco, comédia estadunidense dirigida por Neal Israel, lançada em 1985. Será que mesmo após a experiência como condutores, os personagens dessa comédia vão desobedecer a sinalização semafórica, avançar sobre o meio-fio e bater nos cones nesta etapa inesperada de suas vidas?
Responsável pelo roteiro, escrito em parceria com uma ampla equipe de dramaturgos, composta por Pat Proft, Paul Proft e Paul Boorstin, o cineasta conduz os seus personagens ao longo dos 90 minutos desta trama sobre um grupo de indivíduos que perdem a licença e atravessam um longo e terrível pesadelo. O grupo é composto por um paisagista, uma mulher com graves problemas de visão, um hipocondríaco, um cientista de foguetes, dentre outros. Eles recebem a sentença da juíza Nedra Henderson (Sally Killerman), representante do Estado que os obriga a participar de um curso de direção para obter novamente as suas licenças. Como obstáculos, os envolvidos neste processo terão que enfrentar o instrutor Hank (James Keach), homem que possui planos burlescos para que todos eles falhem no processo, personagem catalisador das situações exageradas e humor que nos faz lembrar a atmosfera cômica do clássico moderno Loucademia de Polícia (o primeiro e todas as sequências).
É assim que em Birch County, cidade fictícia da Califórnia, uma turma de motoristas despreparados precisa lidar com as carteiras e automóveis apreendidos, pessoas que cometem tantos absurdos que infelizmente não fazem parte apenas da ficção, mas são na verdade, radiografados cotidianamente por câmeras ao longo das grandes metrópoles e zonas interioranas. Acompanhados pela trilha sonora de Ralph Burns, constantemente a fazer gozação dos sofrimentos desse de “aloprados”, os personagens circulam pelos espaços concebidos pelo design de produção de Virginia Field, profissional responsável por criar um ambiente de “educação para o trânsito” para permitir que o tema seja exposto não apenas nos diálogos, mas também na visualidade da narrativa. É um filme bobo, sem grandes momentos dramáticos, mas que visto pela ótica da educação como caminho para conscientização no trânsito, pode ser útil como recurso pedagógico, além de ter alguns momentos divertidos que prometem instâncias de diletantismo para o público que se coloca como espectador.
Ademais, a produção nos faz observar o quão rigoroso é um exame de aprovação para conseguir a carteira de habilitação, símbolo de liberdade para muita gente que não sonha apenas em atravessar estradas em busca de novos rumos para a vida, como a personagem de Patrícia Clarkson em Assumindo a Direção, mas também dependem da licença para exercício da cidadania e cumprimento dos planejamentos profissionais que levam renda para o sustento da família. Há, sim, um rigor, mas também é uma oportunidade para as pessoas testarem os seus limites, bem como a capacidade de conduzir a si e dividir o espaço da mobilidade urbana com os demais. Temida por muitos, o exame é considerado a última parte do processo, posterior aos exames e autoescola. Domínio de legislação, observação de placas, semáforos e circulação: esses são alguns requisitos avaliados, posteriormente ao deslocamento em vias públicas e realização das balizas removíveis, momentos que causam bastante tensão em muita gente. Tal como deve ser no cotidiano após a aprovação, esse é um momento para não exceder a velocidade regulamentada nas vias, tampouco cometer outras infrações, algo que na trajetória dos personagens de Um Trânsito Muito Louco, é uma situação corriqueira que passa por punição.
As Boas Intenções: autoescola e cidadania
Sob a direção de Gilles Legrand, cineasta que tem como ponto de partida, o roteiro escrito em parceria com Leonore Confino, As Boas Intenções é aquele tipo de filme que os espectadores professores se apaixonam de imediato, haja vista as suas potencialidades pedagógicas. Relacionamentos humanos, imigração, conflitos ideológicos, dentre tantos outros temas que abarcam as “humanidades”, podem ser contemplados num debate com esta produção de 103 minutos, lançada em 2018, drama francês sem letargia que nos conta a saga de Isabelle (Agnes Jaoui), uma professora que se dedica cotidianamente não apenas ao que lhe é a sua função principal, isto é, dar aula, mas é alguém também uma grande cidadã preocupada com o lado humanitário/social de sua função profissional. Ela atua como professora de francês para imigrantes e numa determinada ocasião, todos os seus estudantes precisam de uma carteira de habilitação para ter a possibilidade de trabalhar. Aqui, o aprender a dirigir e o ato de conseguir ser aprovado nos exames de uma autoescola representam a conquista por instâncias de cidadania pelos personagens. É a condução como o meio de sobrevivência.
Cada caso dentro da sala de aula é um exemplar de crise social. Para Isabelle isso é um transtorno, pois ela é o tipo de mulher com pensamentos e posturas críticas, alguém que considera os festejos natalinos, por exemplo, uma orgia ao capitalismo, encontros hipócritas onde muitos gozam dos privilégios de sua classe social e mesa farta, enquanto outros penam em situações de uberização e alijamento de maiores oportunidades educacionais e de acesso aos serviços de saúde. Com peculiaridades que definem a procedência geopolítica de cada indivíduo em sua sala de aula, a professora engajada inicia uma jornada pela quebra de determinados estereótipos, bem como projeta para si as questões pessoais de cada um dos integrantes da turma. Ela parece carregar uma culpa diante do cenário problemático de seus alunos, sensação que a faz ir além do possível dentro de suas limitações, tornando-se uma espécie de salvadora da pátria dos imigrantes que compõem o caldeirão cultural do território francês no contexto do filme, uma comédia envolvente, leve e logicamente, pretensiosa.
Os estrangeiros talvez pudessem ter mais espaço para driblar os clichês que os transformam em vítimas, mas o filme prefere deixar que Isabelle preencham o seu vazio ajudando os outros. Ausente com os filhos e a família, ela é o arquétipo da mulher preocupada demais com o mundo que coloca em risco a relação com os seus próprios pares cotidianos. Entre os risos com os preconceitos, o filme constrói um panorama de situações estereotipadas, indo na contramão, em alguns instantes, de seu próprio discurso. Isso, por sua vez, torna-se um paradoxo, mas algo que não estraga o desenvolvimento narrativo em As Boas Intenções. As personagens femininas, em sua maioria, irregulares, beiram ao que conhecemos por histerismo, salvaguardas as devidas proporções psicanalíticas desta comédia sobre tantos temas, dentre eles, o assistencialismo de Isabelle, personagem que deixa o marido, Adjin (Tim Seyfi), irritado e confuso diante de tantas missões de sua esposa, alguém que para ele, deveria se preocupar apenas em ministrar as aulas que lhe cabem e nada mais. Ela dá as suas aulas, mas traz o algo mais. Sempre muito mais.
Na escola de direção, Isabelle vai contar com a ajuda de um monitor (Alban Ivanov), colaborador que permitirá aos estudantes, aprender o código de trânsito do país, bem como as principais regras de conduta diante de um volante ou motocicleta, os meios de deslocamento para pessoas que precisam de tais aparatos para trabalhar e assim, exercerem as suas respectivas cidadanias ao trabalhar, consumir etc. Piadas com erros na condução de automóveis e maneiras inadequadas de estacionar e proceder na leitura e interpretação de placas fazem o filme ser humorado e leve, dramaticamente problemático nos pontos já mencionados, mas relevante para discussões sobre trânsito, educação e mobilidade urbana. É nessa jornada que eles aprendem a sinalizar, um gesto aparentemente simplório, mas que podem evitar tragédias, além de compreender as ações dos pedestres e de condutores de outros modais. Para acompanhar essa jornada, Armand Amar assume a trilha sonora, Pierre Cottereau a direção de fotografia e Riton Dupire o design de produção, setores que trazem características temáticas de trânsito ao conteúdo dramático que flerta com a educação como um dos pilares importantes para a formação de condutores preparados para atravessar as vias que cortam e conectam territórios.